quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Cântico negro

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros
de que seria bom que eu os ouvisse
quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
José Régio
(Pseudônimo de José Maria dos Reis Pereira)

A caminhança e o livre-arbítrio: proposta para uma reflexão


Os céus e a terra tomo hoje por testemunhas contra vós, de que te tenho proposto a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas tu e a tua descendência, Amando ao Senhor teu Deus, dando ouvidos à sua voz, e achegando-te a ele; pois ele é a tua vida, e o prolongamento dos teus dias; para que fiques na terra que o Senhor jurou a teus pais, a Abraão, a Isaque, e a Jacó, que lhes havia de dar.(Deuteronômio, 30: 20,21)


O findar de um ciclo e o advento de um novo período sempre nos convida à reflexão. Muitas vezes somos tentados a fazer um balanço do que se passou e projetamos em nossas mentes aquilo que gostaríamos que acontecesse em um futuro próximo, fato que nos enche de esperança e alimenta, ao mesmo tempo, nossas angústias.

Sinceramente, confesso que estou tentado a duvidar do tão propalado “livre arbítrio”. Ao analisar nossa breve caminhança, tenho a impressão de que nosso campo de decisão é tão amplo quanto ao de um trem que necessariamente caminha sobre seu próprio trilho, ou das águas de um rio que necessariamente correm sobre seu leito.

Quantas vezes, ao analisarmos como as coisas se passaram em nossas breves vidas, não temos a nítida impressão de que fomos conduzidos ao invés de “decidirmos” o rumo a ser seguido? Quantas vezes um turbilhão de inúmeras coincidências não conspiraram para que as coisas, por menores que fossem, ocorressem da forma como ocorreram?

Claro que qualquer pessoa poderia objetar: “Mas de fato, você tem livre arbítrio. Você poderia, por exemplo, matar o seu irmão”. Mas será que esta é, realmente, uma opção? Posso escolher entre comer arroz com feijão ou pizza no dia de hoje, mas não é dessas decisões menores a que me refiro. Refiro-me àquelas que de fato poderiam ter sido tomadas, e que de forma efetiva possuíram a aptidão para alterar o curso de nossas vidas, contribuindo para que nos tornássemos aquilo que somos no dia de hoje.

Tenho certeza de que não nos unimos por acaso. Não nos tornamos amigos por acaso. E nada em nossas vidas aconteceu que não fosse por vontade de nosso Pai, criador do céu e da terra. Tal como a passagem citada acima, a única decisão que podemos de fato tomar é abraçar a fé. O caminho, creio eu, já está há muito traçado, e tenho grande certeza de que nem um fio de cabelo de nossas cabeças cairá, que não seja por vontade Dele.

O caminho que Ele escolheu para nós, obviamente, eu não sei. No dia de hoje, vivendo o momento presente, apenas agradeço a Ele todos os dias por ter irmãos como vocês, caminhantes.

Sigamos em frente pelo caminho que acreditamos ter escolhido, mas que desconfiamos ter sido traçado por alguém maior que nos rege e nos orienta, não importa o tamanho das dificuldades.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Mensagem de Natal - 2010

Todo cristão digno do nome sabe que o cristianismo não é uma doutrina e nem mesmo tem origem em doutrina alguma. Nosso Senhor deixou isso bem claro quando Lhe perguntaram quem era: “Contem o que ouviram e viram: os cegos enxergam e os paralíticos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem e os mortos se levantam” (Mt. 11:1-6).
O cristianismo é a confiança em uma pessoa, não uma doutrina (que vem sendo formulada há séculos, com maior ou menor sucesso), e tem origem na narrativa de fatos miraculosos, a começar pelo nascimento de Jesus.
O natal, portanto, é tempo para recordarmos o início desta boa notícia, o começo de uma série de milagres que não cessaram quando da paixão, morte e ressurreição do homem-Deus. E recordar é uma palavra muito bonita. Vem de corde, do latim, que significa coração. Recordar é colocar algo novamente no coração.
Coloquemos novamente em nosso coração a lembrança dessa história que vem sendo transmitida há mais de dois mil anos. Uma história que contou com inúmeros fatos miraculosos, testemunhados por milhões de pessoas ao longo dos anos, fatos que quiçá alcançaram nossos avós, nossos pais, e talvez até nós mesmos.
Os milagres realizados por Jesus Cristo, por todo este tempo até os dias de hoje, nos aproximam d’Ele, fazem com que possamos confiar n’Ele com todo nosso coração, com toda nossa alma.
Mas nossa fé é inconstante, abalada pelas nossas falhas, pelas tragédias que nos acometem, pela nossa vulgaridade ao ver a vida voltados para as coisas inferiores. Somos, enfim, pecadores, ainda não alcançamos a graça plena. E é por isso que o natal é tão importante. Porque a celebração do nascimento miraculoso de Nosso Senhor reforça a fé, faz com que fiquemos mais confiantes em Jesus Cristo, em Deus.
E é por isso que desejo a todos vocês, mais do que um feliz, um santo natal!

domingo, 19 de dezembro de 2010

Presença

O homem se fecha na casa, mas não consegue ficar só.
O homem fecha as janelas da casa, mas não consegue ficar só.
O homem fecha as cortinas, passa cadeados e apaga a luz, mas não consegue ficar só.
Na casa ou em qualquer outro lugar, o homem não consegue ficar só.
Deita no chão, arranca as roupas, fica nu, apertando os joelhos ao peito, mas não consegue ficar só.
Aperta bem os olhos, congela a língüa, cerra os dedos e os braços, mas não consegue ficar só.
Afasta os pensamentos, ignora os sentimentos, repudia toda memória e não permite qualquer ação, mas não consegue ficar só.
Ele tenta e se esmera, faz de tudo e se esforça, sem cessar, por dias, por noites, por semanas e meses a fio, mas não consegue ficar só.
E, então, fugindo à toda companhia, recusando qualquer alheio, ele vive a solidão, o isolamento completo, mas jamais foi capaz, nem hoje, nem amanhã, nem em qualquer data pensável, de ficar, um instante sequer, só... não consegue ficar só.

Haicai - Experimento primeiro

No grito da noite
Ouço o silêncio cruel
Do abismo sem céu.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Da Bolsa ao bolso

O Bolsa Família já virou categoria intocável no imaginário político brasileiro. Ninguém pode fazer menção a criticá-lo que já aparecem inúmeros argumentos em prol do fim da miséria no país. Seja lá o que isso quer dizer: “são mais de 20 milhões fora da miséria!”. Falo isso dos ambientes de intelectuais atentos ao destino da nação, e preocupados com a igualdade social no Brasil. Intelectuais que nunca saíram dos corredores da universidade pública, acostumados a sua bolsa escola, bolsa de iniciação científica, bolsa de monitoria, bolsa do centro acadêmico, bolsa de pós, bolsa de pós-pós, enfim, todo tipo de vantagem com muito dinheiro público sem que se saiba ao certo quem é o seu dono... Se formos a um meio mais rotineiro, de pessoas que suaram desde cedo para conquistar a vida trabalhando, certamente não encontrarão uma pessoa sequer que defenda “o maior Programa de transferência de renda do mundo”, exatamente como está no site da Dilma, inclusive com o “P” maiúsculo, em clara alusão à divindade mítica assumida pelo conceito. Até a “oposição” o defende ardorosamente, propondo a criação de seu 13º, defendendo a paternidade dos primórdios do Programa, etc.

Ninguém nem mais percebe, todos já raciocinam diretamente com os bolsistas universitários, defensores de “algo muito maior”, seu próprio bolso. Isso, bolso com minúscula e no masculino, afinal, não se trata de uma entidade coletiva, mas de algo bem mais íntimo e pessoal, quase um órgão vital. É muito mais fácil comprar votos com essa Bolsa, para proteger meu bolso, do que mudar alguma coisa de verdade e, assim, ganhar o sufrágio popular. Arrisco: “o programa mais mesquinho de transferência de renda do mundo”.

Qual o futuro (e presente) está garantido a esses pobres coitados, bolsistas-família? Boa coisa não é, mas os outros bolsistas também não terão futuro brilhante. Mentira e ganância só barateiam a pessoa, levando a uma fossa de miséria muito mais suja e desesperadora.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Uma opinião sobre a verdade

O professor de processo civil se mete a falar em Verdade (assim mesmo, com letra maiúscula). Gaba-se de ter sido monitor de física no colégio, acreditem, um advogado bem sucedido, para contrariar a máxima de que advogado não entende nada de cálculos. Um racionalista nato, amante da lógica. Eu penso: Ora, professor, não se arrisque em perigo tão grande, guarde o entusiasmo para a hora certa, não se empolgue, por favor. Está certo que o senhor faz um espetáculo com seus raciocínios aplicados a técnica e deixa os confrades das humanas no chinelo. Mas estará pronto para um salto tão grande? O mestre insiste, quer dar o seu parecer. Com as mãos sobre a pilha de livros editados no último ano, oferece aos alunos a sua opinião autorizada. A verdade não existe. Sim, de fato é difícil reproduzir os fatos no processo, então buscar... Não! Você não me entendeu. A verdade não existe. Sim, entendi. Em nome da verdade muitos homens já padeceram tormentos para confessar o inconfessável, então... Não! O que digo é que a verdade não existe. É, acho que não entendi. Explique-se. Uma vez deparei-me com a epígrafe de um livro, um livro que não li de João Ubaldo Ribeiro, foi um êxtase para mim. Êxtase? É esta a palavra? Sim, dizia: “o segredo da verdade consiste em saber que não existem fatos, só existem histórias”. Que beleza! A frase é bonita, tem efeito. Mas você disse que não leu o livro? João Ubaldo... “Povo Brasileiro”... Não sei que pito toca, também nunca li. Mas... E se for uma ironia? Não é, claro que não é, evidente que não é. Tudo são histórias, sabemos lá o que aconteceu? Nada mais existe, além de histórias, versões, relatos parciais de gente humana, com a criatividade e a indecência de cada um. Verdadeira é a história que convence, no processo ou na vida, a peso de pau, de argumento ou de autoridade constituída. E o convencimento, ora, ora, o convencimento é um ato de fé: ou se acredita ou não, simples assim. Já diriam os Titãs, “não há amor, só há provas de amor”. Não há amor? Que maluquice é essa? Tudo são histórias? Tudo, tudo, tudo! Só histórias?! Inclusive eu e você, a cadeira em que você se senta, o nascer do sol desta manhã, a minha dor de dente, tudo, tudo mesmo? Tudo. Só histórias. Síntese perfeita. Veja bem. Se de fato o convencimento é um ato de fé, como de fato é, então, simples concluir que a verdade, igualmente, é um ato de fé: ou se acredita, ou não. E fé, todo mundo sabe, é a crença que cada um carrega no coração. Não há discussão, além do dever de respeitar e conviver. Minha nossa, você vai longe, difícil acompanhar. Eu avisei, ninguém me ouviu. A tudo quer dar um tratamento processual, mete-se a falar de coisas além, muito além da disciplina estudada. Por quê? É a pergunta que me faço, inconsolado. Olho ao redor, alguém o escuta, prestaram atenção? Terei eu mesmo que responder, que continuar a refutação? Por onde? Chateação, deve ser a ordem do mundo colocando minha fidelidade à prova, ou o meu orgulho querendo aparecer e dar sinal de pedante sabedoria. Por onde? Ele é o professor, eu o aluno. É com ele a opinião cientificamente autorizada, comigo só os ouvidos, a caneta e o papel: anote! E continua... Sim, respeitar e conviver. Veja bem. O sujeito escolhe a fé que quer ter: espiritismo, umbanda, candomblé, católico ou judeu. Cada um na sua. Sendo possível, inclusive, misturar, por que não? O sujeito que sabe de si. Pois há no Brasil, pense na Bahia, muitos católico-espíritas freqüentando o candomblé... Ora, ora. O sujeito vai, o sujeito gosta, o sujeito segue. Quem vai dizer que não? Igualzinho a verdade. Eu, por exemplo, acho uma beleza tudo isso, muito bonitas as manifestações artístico-religiosas. Justamente eu, que não acredito em nada. Isto é o respeito. Em nada? O senhor se esqueceu de citar a tolerância... É verdade! Acho que agora você me entendeu... Verdade? Não fale em verdade, professor, vai causar confusão. Concorde ou não. Mas em nada, nada mesmo? Nada, nada, nada! Só histórias. Pois eu acredito que o senhor acredita em algo sim: o senhor acredita no senhor mesmo, e isto é um fato. É verdade... Quer dizer, pode ser... Acredita, também, que tudo não passa de opinião, sendo que umas opiniões valem mais do que as outras, digo, convencem mais do que outras? Convencimento... É isto, isto mesmo, você, finalmente, me entendeu. Entendi? Bem, então, seguindo o raciocínio, a opinião de um professor é mais verdadeira que a de um aluno? Não, eu não disse isto. Que arrogância é esta? Mais autorizada, então? Não, eu falei em respeito, principalmente, em respeito e tolerância. Jamais afirmaria que a minha opinião vale mais ou é mais autorizada que a de um aluno. Isto afronta, claramente, a isonomia. Não ousaria, não ousaria... Isonomia? Ah, então está certo, professor! Agora acho que entendi, compreendi tudo perfeitamente... Tudo está claro como os fatos! Quer dizer... Ah! Deixa pra lá...

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Entre uns e outros

É estranho viver por entre as gentes. Talvez fosse mais fácil viver entre os animais. Eu gosto dos animais. Os animais são bons. Não bons como a bondade dos homens. Não, a bondade dos animais é diferente. Sim, os animais caçam, andam furtivamente, se arrastam na savana, espreitam, quem sabe cogitem os planos de ataque, e vão sem titubeio ao pescoço da vítima. Mordem, dão patadas, furam, matam, destroçam e comem. Ninguém diria que um ser humano que fizesse isso é uma boa pessoa. Mas os animais não podem ser boa pessoa, são apenas animais. E eles são bons, são bons animais. E digo isso para além de suas habilidades, para além de suas características tão gostosas de se ver e de se analisar. Realmente, é bom ver um leão deitado na selva, sem preocupações, apenas exercendo o ofício de estar ali, de ser leão: o rei de todos. É interessante ver como o elefante serpenteia sua tromba, como é imensa e ao mesmo tempo tão garboso, de uma elegância lenta, suave. A girafa é igualmente magnífica, desenhando uma corrida teatral, contorcendo os músculos devagar, devagar... que até pensamos estar vendo a Discovery Channel em slow motion. Os rinocerontes e seus chifres perigosos, sua carapaça dura e excessiva, descendo pelas beiradas; os medrosos filhotes dos babuínos, presos às barrigas das mães, de ponta cabeça; o enigma nos movimentos da black mamba, cobra de tamanho risco que nos deixa apreensivos mesmo longe, tudo isso é bom, é prazeroso de ver. Os animais são bons, mas não por isso. Sei lá, talvez eu esteja falando bobagens, pois não tenho exata consciência do por que os animais são bons. Que lhe parece? Os animais são bons? Fico matutando sobre esta impressão, este sentimento de que os seres da natureza são bons, que é agradável sua vida, que é certo que venham ao mundo, que façam o que fazem, enfim. Pode ser que uma reflexão assim seja fruto de um cansaço, de um descontentamento para com a vivência humana. Há momentos em que perdemos a paciência, em que ficamos com o saco cheio dos outros. Nessa horas tenho vontade de sair, de pegar uma trouxinha, juntar o essencial e debandar para o meio do mato. Ficar lá com os animais, tentar esquecer as ansiedades, as angústias, os problemas dos homens, e simplesmente permanecer ali, vivendo o dia-a-dia do acordar, comer, descansar, brincar e dormir. Mas tenho dúvida. Outro dia contaram-me que os animais têm lá seus entreveros. E não estavam falando das caçadas, mas de problemas de relacionamento mesmo. Imagine só! A girafa de pescoço pro lado, o elefante de bico, o rinoceronte grosseirão, o babuíno sacaneando os demais, o leão de cara feia... Que diabos! Não tem saída, não tem jeito, é ficar no mundo cão da humanidade ou na selvageria dos animais. E pensar que passei horas investindo nesse pensamento, para no fim dar zebra! Talvez fosse preciso procurar outro habitat, outras espécies, como os insetos ou os peixes. Os peixes, sim, talvez entre os peixes se tenha alguma paz ou então entre os crustáceos, os moluscos – aaaah, sei lá! Depois de refletir tanto não acho uma solução. Que maçada! Se ao menos eu fumasse, acenderia um cigarro. Mas não, dei para não gostar dessa porcaria e tentar me manter saudável. Vício miserável essa tal saúde! Melhor seria comer uma cenoura ou um pepino. Pepino é refrescante e este calor me dá nos nervos. Bom, mas comi pepino mais cedo. Estou enjoado desses malditos legumes. Ih, lembrei-me, já vem chegando o Natal e talvez minha esposa tenha comprado um panetone. Vamos à cozinha...
Graças ao bom Deus, uma coca-cola e um panetone. De que falava eu mesmo?

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Defesa da Legalização das Drogas

Blog Reinaldo Azevedo: "Sérgio Cabral, a defesa da legalização das drogas e o pacto com o capeta". Vídeo imperdível: alto nível intelectual, ético e moral no grande escalão brasileiro. Clique aqui

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O Natal de Alfredo Corriqueiro

Novembro termina. É tempo do advento. No coração de Alfredo se renova a mesma prece. Vale de fato a pena cargo e carreira e a pequena ilusão diária de que o mundo não é, assim, tão perigoso. Quanto ao ensaio de uma rebeldia vinda de dentro ou do grito que insiste em perturbar, Alfredo, corriqueiro, pratica caminhadas, prende-se a agendas, realiza tudo na hora marcada. Afinal, há uma forma não tão traumática de carrear os dias, de organizar os medos e administrar o pensamento. O preço da vida pacata, da miséria cotidiana, que não é externa, mas nasce de dentro, de um coração ainda mais pacato e cômodo. Talvez mais tarde, quando amadurecer, ou em outra vida, se houver. Salvação nesta é difícil acreditar. No mais, devem ser histórias, lendas fabricadas pelo remorso, a vida dos santos, dos mártires e dos heróis. Eu que sou feito do puro tecido humano, não mais que ossos, músculos e pele, animados por um espírito que lhes dá vida, não posso mais que a covardia e as pequenas alegrias nascidas do bem viver. Alfredo é um homem comum de seu tempo, dividido pelo conformismo e a sede de dizer: está tudo certo, tudo no devido lugar. Não merece aspiração mais alta que o emprego, a família e um jeitinho qualquer de sobreviver. Diariamente, assume o mesmo compromisso de calar diante do espelho algo que, todas as manhãs, renova um pedido para nascer. Tal qual um ritual, ele pondera por alguns segundos e se despede, convenientemente. A loucura não é um preço que convém. O espelho não serve mais que um instrumento para a fabricação de um perfeito nó de gravata e a preparação de um penteado usual. A escolha das roupas, o café da manhã, a relação com os colegas e mesmo as cervejas depois do expediente, tudo tende ao mesmo objetivo. A vida regular e garantida, racionalmente construída sobre as expectativas e os cálculos, como deve ser. Não que Alfredo ignore os riscos, as probabilidades e os acidentes. Todavia, os possui, também, sob controle. Nem mesmo a morte o surpreenderia, suficientemente acobertado que está por completos planos de seguro: até o acaso lhe é pontual. Sobre filhos e a relação amorosa com a esposa, Alfredo é um homem não mais que normal: escolhera uma digna mulher, de beleza sensual, porém recatada, com boa formação profissional e boa remuneração. Tivera dois filhos, muito educados e inteligentes. É fiel, a despeito de pequenas escapadelas com clientes, casas de massagem, alguns casinhos, nada que não seja socialmente tolerável e mesmo desejável, num ambiente profissional. A mulher, talvez fosse o caso de comunicá-la, os filhos, mas prefere fazer às escondidas, aceitando, inclusive, o fato de que não é improvável que ela também se permita a certas aventuras. Contraprestação que está disposto a pagar em nome da manutenção de seu casamento, um tanto esfriado e desapaixonado, é verdade, depois de tantos anos de convivência. Convém aos filhos, como aos pais e aos chefes que se mantenha. Afinal de contas, nada lhe poderá ser mais seguro e confiável do que uma relação estável. Os filhos, por fim, serão úteis na velhice. Tudo somado, ponderado e minuciosamente pensado, dá-lhe a conclusão necessária para o abandono do espelho, rumo aos mesmos horários. É feliz? Pergunta a qual não se dá o luxo de conceber. Felicidade é uma dessas lendas criadas em momentos de remorsos por homens fracos e inconformados. O que há de fato é a vida. E é sobre o chão da vida que Alfredo constrói sua história. Retilíneo e comedido, não se permite a sonhos e ilusões, horas perdidas. O que o tempo lhe trouxe aproveita, o que não está nas mãos dispensa. Ardiloso arquiteto das oportunidades, é um homem bem sucedido e com um talento especial para convergir tudo ao redor em seu próprio favor. A cartilha que o mundo lhe ensina segue à risca. É um bom homem, politicamente engajado, socialmente respeitado, economicamente ativo. Cogitado para prefeito, chefe de sessão, diretor, presidente. Admirado, honrado, intitulado. É doutor em universidade estrangeira, professor em faculdade pública, digníssimo mestre e exemplo a todos os seus pares. Bom filho, mensalmente encaminha uma mesada caprichada aos pais, que só têm a agradecer. Homem elegante, freqüenta os melhores alfaiates, eloqüente, rebuscado, capaz de entreter por horas uma platéia. Um cidadão sob medida. Este é Alfredo, o homem que poderia render muitas histórias, mas cuja história está, suficientemente, contida nestas linhas. O mais são fatos sem importância, pequenos encontros, viagens, homenagens, convites, nada de tão diferente e relevante que não possa ser extraído, logicamente, de tudo o que já se narrou. É fim de novembro, tempo do advento. Em dezembro, antes mesmo do Natal, Alfredo morrerá aos cinqüenta e dois anos. Ele não sabe. E mesmo que lhe dissessem não acreditaria. A expectativa de vida prevista pelos cientistas para os homens no ano de dois mil e onze é de oitenta anos e ele confia, de fato, nas estatísticas. Além do mais, mensagens do além-chão não lhe são aprazíveis: não há espaço para tal mistério na vida tão científica e previsível de Alfredo. O homem das decisões bem tomadas e seguras terá que enfrentar, em breve, este fato tão simples e corriqueiro da vida: a própria morte. Para ele, provavelmente, em suas divagações noturnas, não mais que um fato, que causará algum transtorno à família e ao trabalho, mas que logo passará, segurado que está pelos planos completos, como se disse. Mas aos cinqüenta e dois? Talvez, seja surpreendido quando perceber a inevitabilidade de seu destino. Na certa, ponderará as razões, calculará, rapidamente, os erros e acertos, sopesará as perdas e ganhos e, nos segundos que lhe sobrarem antes do suspiro final, chegará a uma última conclusão. Racionalmente perfeita e discreta a conclusão que lhe dará as forças para se decidir e se entregar, passo a passo, em segurança, ao seu leito definitivo. Todavia, tendo sob controle até o último segundo de vida, Alfredo fechará, talvez, os olhos, diante de sua derradeira cena. Quando, num ato de loucura impensada, saltará do chão em que esteve preso e libertará, porventura, um grito profundo. Sozinho numa sala escura, em que nada persiste, apenas o grito, ele estará pronto diante do mesmo matinal espelho. O corpo, corriqueiro, falecerá para sempre no chão duro e imóvel, e Alfredo se soltará, finalmente, seguindo o eco de seu ato de misericórdia. Talvez, então, não se pode saber, já será véspera de Natal.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

"O homem tem de se horrorizar consigo mesmo para chegar ao bom caminho"

"Pois assim como todos os dias precisamos respirar, assim como todos os dias precisamos de luz e de alimento, assim como, também todos os dias, precisamos de amizade e, na realidade, precisamos de determinadas pessoas, a relação com Deus pertence aos elementos que sustentam absolutamente a vida. Se, de repente, Deus não estivesse presente, eu não poderia respirar bem espiritualmente".

"A menor força de amor já é maior do que o maior potencial de destruição".

"Eu creio! E no próprio ato de fé está incluído que isso vem d’Aquele que é a própria razão. Ao começar por me submeter com fé Àquele que não compreendo, sei que é precisamente assim que abro a porta para a verdadeira compreensão".

"Cada ser humano vive interiormente uma tensão entre múltiplos pólos [...]. Porque também os interesses que se tem, os talentos e a ausência deles, os conhecimentos e os desconhecimentos, a fé da Igreja no seu todo, não coincidem simplesmente de modo automático. Há, pois, em cada ser humano, também em mim, uma tensão interior. Mas não lhe chamaria dilaceração. Crer com a Igreja e o fato de saber que posso confiar neste saber, que os conhecimentos restantes recebem luz dele e, por outro lado, podem aprofundá-lo, isso é consistente. Sobretudo acontece que o ato fundamental de fé em Cristo e a tentativa de, a partir dele, dar unidade à vida harmonizam as tensões, de modo que não se tornem uma dilaceração, uma ruptura".

"Nessa medida, precisamos outra vez dessa confiança originária, que, em última análise, só a fé pode dar: que, no fundo, o mundo é bom, que Deus está presente e é bom. Que é bom viver e ser humano. Daí vem também a coragem para alegria, que, por sua vez, leva a que outros se alegrem e possam receber a Boa Nova".

"Creio firmemente que Deus de fato nos vê e nos deixa a liberdade – e, contudo, também nos conduz. [...] Isso significa que a minha vida não é composta de acasos, mas que Alguém prevê e anda, por assim dizer, na minha dianteira, antecipa-se ao meu pensamento e prepara a minha vida. [...] No entanto, isso não significa que o Homem seja completamente determinado, mas sim que esse destino é precisamente um desafio à sua liberdade. [...] Em todo caso, cada um tem a sua missão, o seu dom especial, ninguém é supérfluo, ninguém existe em vão. Cada um tem de procurar perceber qual é a sua vocação, e como responder melhor ao apelo que lhe é feito".

"A arte é fundamental. A razão sozinha, como se exprime na ciência, não pode ser toda a resposta do Homem à realidade e não é capaz de expressar tudo o que o Homem pode, quer e deve exprimir. Penso que Deus pôs isso no Homem. A arte é, com a ciência, o maior dom que Deus deu ao Homem".

"O Homem perde a própria dignidade quando não é capaz de conhecer a verdade; quando tudo não passa do produto de uma decisão individual ou coletiva".

"Digamos que a vida não é feita de contradições, mas de paradoxos. Uma alegria baseada num fechar de olhos perante os horrores da história acabaria por ser uma mentira ou uma ficção, uma maneira de fugir à realidade. Por outro lado, quem já não é capaz de ver que o Criador também transparece num mundo mau acaba por deixar de poder existir, torna-se cínico, ou então tem de se despedir da vida. [...] Precisamente quando se quer resistir ao mal, é tanto mais importante não cair num moralismo obscuro, que já não pode alegrar, mas que se veja realmente quanto há de belo, e que assim também se possa resistir ao que destrói a alegria".

"[...] o homem é um ser moral, responsável por si mesmo e pela humanidade, mas também é um ser que só pode receber de Deus os recursos para avançar".

"Mas é precisamente na arbitrariedade que a vida se torna vazia. A vida é séria demais para um mero jogo, em que somos confrontados com a morte e com o sofrimento. O Homem pode perder a própria identidade, mas não pode desfazer-se da própria responsabilidade, e, com ela, o seu passado sempre o alcança".

"Porque se não existe disponibilidade para uma subordinação a um todo conhecido e para se colocar a si mesmo a seu serviço, não pode haver uma liberdade comum; a liberdade do Homem é sempre liberdade partilhada. Tem de ser levada em conjunto e exige, por isso, o serviço. Claro que essas virtudes (o dever, a obediência e o serviço), se quisermos chamá-las assim, também podem ser mal empregadas, quando são atribuídas a um sistema errado. De um ponto de vista formal, não podem ser boas em si, senão quando ligadas ao fim para o qual estão orientadas. Esse fim, no meu caso, é a fé, é Deus, é Cristo, e assim tenho, em consciência, a certeza de que estão no lugar certo".

Sobre o casamento: "[...] encontramos a questão de uma decisão de vida definitiva no centro da própria personalidade: posso dispor já hoje, digamos, aos vinte e cinco anos, de toda a minha vida? É algo que se amolda ao Homem? Será possível agüentar isso e crescer vivamente e amadurecer _ ou não tenho antes de me manter constantemente aberto a novas possibilidades? No fundo a questão é a seguinte: faz parte do Homem a possibilidade do definitivo no âmbito central da sua existência? Pode suportar uma ligação definitiva, precisamente na decisão relacionada com o seu modo de vida? Diria duas coisas: Ele só pode isso quando se encontra realmente num grande enraizamento de fé; e, segundo, só então ele chega à forma plena do amor humano e da maturidade humana. Tudo o que não é casamento monogâmico é de menos para o Homem".

Sobre o sacerdócio: "Em Santo Agostinho pode-se ver isso muito bem. [...] que, na realidade, estava constantemente ocupado com as coisas do dia-a-dia, a lavar os pés ao próximo, e que estava disposto a desperdiçar, por assim dizer, a sua grande vida no que é pequeno, mas sabendo que desse modo não a desperdiçava. [...] Quando é corretamente vivido, não pode significar que se chega, finalmente, aos lugares de decisão do poder, mas que se renuncia a projetos de vida próprios e se põe ao serviço".
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(Papa Bento XVI, trechos do livro "O Sal da Terra")

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

"Quanto mais revoltado contra o mal no mundo o sujeito está, mais mal ele vai fazer"

“[...] A camada intelectual é constituída de pessoas frágeis, sempre foi assim... Pessoas que, às vezes, não tem uma posição definida na sociedade, muitas ambições e poucos meios de realização e que, portanto, trazem um grande ressentimento dentro de si. Então, o intelectual olha o mundo e vê o que lhe parece ser a vitória dos maus (que nem sempre são tão maus quanto ele imagina...). Diante desta revolta, ele vendo o poder do mal no mundo, ele se impressiona com o poder do mal. E se impressionar diante de um poder já é cultuá-lo, já é cair sobre o domínio dele. Então, o sujeito começa entrar na dialética do mal, ele lê Maquiavel, ele lê Nietzsche, e vai tentando elaborar a sua revolta, sem perceber que com isso está ele próprio se transformando num instrumento do demônio. Quanto mais revoltado contra o mal no mundo o sujeito está, mais mal ele vai fazer, isto é óbvio. De fato, o ser humano não nasceu para corrigir o mundo. A esfera de ação própria do ser humano é muito pequena. E, hoje em dia, todo mundo tem a ambição de criar um mundo melhor. Qualquer garoto de doze anos está criando um mundo melhor. É esta ambição de criar um mundo melhor que faz os camaradas entrarem numa luta pelo poder. Porque se você quer mudar o mundo, você tem que ter o poder de modificá-lo. Então, melhorar o mundo passa a ser o capítulo dois, o capítulo um é conquistar o poder. Então este pessoal cria uma obsessão de poder e todos eles se corrompem até o fundo da alma e se transformam, eles mesmos, em maiores propagadores do mal ainda. Então, isso não é porque o sujeito é um idealista, este papo de que o jovem entra nas lutas sociais porque é um idealista, isto é uma patacoada... Que garoto de quatorze ou quinze anos tem uma visão correta da sociedade, da pobreza etc.? Que garoto de quatorze anos está mais interessado nos outros do que em si mesmo? Isto é impossível... Um garoto de quatorze anos está lutando pela sua auto-realização... E se ele está revoltado com a injustiça no mundo é porque ele se sente injustiçado, embora na maior parte dos casos não o seja. Então, ele projeta este seu sentimento de injustiça nos outros e diz que ele está representando os pobres e oprimidos. Isto é uma mentira. Eu digo isto analisando a minha própria geração e a mim mesmo. O que eu sabia sobre a pobreza e a miséria no Brasil quando pela primeira vez me fascinei pelas idéias de esquerda? Não sabia coisíssima nenhuma... Eu sabia que eu estava me sentindo mal... Eu me sentia mal e oprimido, então odiava qualquer coisa que representasse, aos meus olhos, a autoridade. Então, estava lutando pelos meus próprios interesses, pela minha própria vaidade, como todos daquela época. Eu, inclusive, no partido comunista, se você me perguntar quem eu conheci que fosse uma pessoa piedosa, caridosa, que tivesse realmente piedade pelos pobres, que tentasse ajudá-los diretamente, eu não conheci nem um único. Eram todos corações secos. Todos eles. Então, o sujeito está lutando pela sua própria vaidade, mas como engana a si mesmo achando que ele é o salvador, que está lutando contra o mal, quanto mais ele pensa assim, mais ele se impregna do mal pela via da vaidade.”
(Olavo de Carvalho, programa True Outspeak do dia 23/11/2010: http://www.youtube.com/watch?v=rUp280iEpeI&feature=player_embedded#!)

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

The Big Pussy

É o fim da picada! (Desconfio que esteja sob o efeito da leitura do “Imbecil Coletivo”: tolerância zero). Ah, tenha dó! O cara me expõe uma “big pussy” na Bienal e tem a coragem de chamar essa merda de arte. Não tem paciência que dê conta de interpretar a tal da instalação! O pior é que tem gente que tem coragem de levar os filhos para apreciar: que beleza! A família inteira, juntinha, penetrando o vaginão! Depois o professor de constitucional, pós-moderníssimo, vem contar que na Holanda foi fundada a Igreja do Culto ao Cigarro e aos deuses da fumaça (alguma coisa assim), para fugir da lei anti-fumo, afinal de contas está garantida a liberdade de culto e religião. Pode acreditar? Acho ótimo, inteligentíssimo por parte dos holandeses... Afinal, o que fizeram foi bastante lógico, segundo a lógica ilógica do oba-oba relativista. Ora, se toda opinião, qualquer que seja, tem o mesmo valor, porque não? Aliás, de fato não existe diferença nenhuma entre a Unip e a Universidade de Oxford, entre o Pão de Açucar e o mercadinho aqui perto de casa, entre o papel do homem e da mulher... É tudo a mesma coisa... E ai de quem disser que não! E tem mais... Hoje em dia tornou-se preciso fazer uma advertência aos pais. Srs. Pais: comunicamos que nem todos os filhos nasceram para serem líderes. Não se desesperem se o seu filho for imperfeito: isso é normal! Eu fico aqui quieto, pensando que se todo mundo for líder, não vai mais haver líder nenhum. Sim, porque hoje em dia está todo mundo querendo ser líder e sonhando com a gerência. Além de ser rico, bonito, bem sucedido e absolutamente feliz. Estamos fabricando uma horda de frustrados... Converse com um jovem. A chance dele reclamar da própria vida é de 9 em 10. Por quê? Simplesmente porque o mundo em que ele vive é como político populista: promessas irreais e, obviamente, não cumpridas, com uma boa dose de subterfúgios carismáticos e esmolinhas ao gosto popular. O sujeito abraça a causa, sem nem desconfiar que é justamente daí que brotam todos os seus males: luta, luta, sonha, perde a vida a procura de algo que simplesmente não existe! Sobra a desilusão... e o ressentimento invejoso (porque, querendo ou não, existem sim pessoas muito bonitas, existem líderes verdadeiros e também os que conseguiram enriquecer... e daí?). É vergonhoso, irritante, triste pra valer. E tem paciência que dê conta? Não tem. Já tentou conversar com louco de hospício? No fim da conversa ele continua louquinho como sempre, nem se abala, e você sai se perguntando se o louco não é você... E se não tomar cuidado acaba se convencendo que “aquele” mundo existe de verdade. Então meus caros, na base do diálogo não funciona, não. Com louco só tem um jeito de lidar. Você pode até respeitá-lo, com uma boa dose de piedade, inclusive. Mas deve deixá-lo quietinho no canto dele, falando sozinho (ele não vai nem perceber), enquanto você cuida de tocar a vida para frente. Sim, minha gente, tocar a vida pra frente! E com os pesinhos no chão! Está na hora de acertar o prumo, de pôr o navio na direção correta! Sim, existe sim uma direção correta e outra incorreta, como existem o bem e o mal e a gente pode sim errar... E errar feio... E se dar muito mal por isso! Santa paciência! Santa paciência!

sábado, 9 de outubro de 2010

Sob a égide do Princípio da Igualdade: "tutti buona gente"

Outro dia concluí que estamos nos acostumando demais a considerar tudo “à luz da igualdade” (em linguagem grosseiramente jurídica). Quase uma epidemia, em tempos de democracia e luta por direitos, da bandeira da tolerância hasteada sobre tudo. Durante uma caminhada rotineira pelas ruas da cidade, soou bastante estranho aos meus olhos a feiúra de uma pessoa. Esquisito e assustador de repente ter que aceitar que de fato existe gente feia, e muito feia, andando por ai. Em minutos muitas das certezas que tenho trazido, tranquilamente, como muletas, sabe-se lá há quanto tempo, foram abaixo. E, em seguida, me dei conta de que se um dia for brigar com um cara forte, desses que passam o dia na academia e vivem a base de suplementos alimentares, será preciso correr, e correr muito, porque direito nenhum dará conta de me defender (contando com o fato de que o excesso de músculos, em geral, é acompanhado de uma correspondente falta de agilidade...). A burrice, por exemplo. Existe mesmo, minha nossa! Não tem direito à educação que dê conta desta constatação tão óbvia: tem gente estúpida no mundo. E o mais grave é que as pessoas convivem perfeitamente com a estupidez, assim como sobrevivem os feios. Ou alguém será capaz de dizer que a beleza vale tanto quanto a feiúra? Ora, então que se case com uma mulher horrorosa, porque eu prefiro algo, digamos, mais bonito... Digo isto, porque foi quase insuportável perceber que não há luta que inverta esta realidade. Não tem suor ou argumento que dêem conta deste fato tão óbvio e absurdo. Por exemplo, agora temos esta mania de querer todo mundo sendo doutor e universitário. Maluquice quase igual a querer todo mundo rico, ridículo! (eu sei, já não posso fazer parte do clubinho... a cada dia que passa torno-me mais indesejável... mas é que é tão evidente... como faço?). Fico pensando no pobre coitado que não tem muito jeito com o estudo e que preferiria mil vezes, e com muito mais eficiência, outra ocupação, mas que se vê obrigado a ser chique e respeitado, afinal de contas, todos querem dinheiro e algum sucesso. Onde é que vão colocar tanto doutor ninguém diz, nem para quê servirá tanto letrado. É perverso, tão perverso ou mais, do que um doido que decide matar alguns pela cor da pele. E alguém escolheu a cor da pele quando nasceu? Deprimente, triste mesmo, como a menininha gorda que se mata em dietas, perde horas em frente ao espelho e se envenena com remédios de emagrecer. Quase igual Michel Jackson tentando descorar a pele e ficar branco. Ou essas velhinhas de saia curta e a pele esticada, a orelha encostada à nuca e os peitos inchados até a boca. Tão patético quanto ler livro de auto-ajuda e se convencer que basta mentalizar. Não basta, minha gente, não basta! Sem tragédia ninguém se comove. E é importante demais a comoção. Que sirva de consolo que nesta seara não tem discussão, nem privilégio. A regra é de outra ordem, não é humana, como aquela que cria a bolsa família. Não adianta se valer de uma balança de desgraças: a uns deu isso e tirou aquilo. Nem o pensamento mesquinho de dizer: é inteligente, mas em compensação, coitado, é tão bobo... Para não dizer de comentários mais ácidos... Porque esta é a nascente da fofoca e do maldizer: uma pitada de inveja e outra bem grande de própria desilusão. Porque é triste demais e libertador descobrir a própria pequenez, consolador desistir de ser grande. Terrível demais ter o orgulho ferido, desesperador almejar à vida dos outros. É quase como descobrir que a guerra, apesar de indesejável, é necessária, porque tem vezes que o diálogo é inútil. Não acha, não? Então, vá trocar umas figurinhas com Fernandinho Beiramar... Quem sabe ele não te entende (ou não te convence...)? Que tal discutir a democracia com Hitler ou Stalin? Lembra o maníaco do parque ou o traficante do seu bairro? “Tutti bona gente”! Porque seria lindo se tudo fosse azul e todos estivessem automaticamente dispostos. Que bastasse o direito ao voto e a democracia ideal para que a vida fosse uma flauta, como acreditam os pacifistas. Seria perfeito se toda opinião merecesse ser ouvida, com o mesmo valor da pessoa que a exprimisse. Mas convenhamos... Sem inventar bobagens em elucubrações tóxicas e viagens psicodélicas de filosofiazinhas da moda... Vamos à base do “pão-pão, queijo-queijo”, que já dá trabalho demais. De resto, também aceitemos de uma vez por todas que não viemos do nada, que não somos tão donos assim de nossas próprias vidas, que corremos o risco do insucesso e que somos definitivamente, completamente, até as vísceras, desiguais! Por fim, não custa lembrar o anúncio cortante do nosso amigo de caminhança (durmamos com esta...): “Mas não se engane! Nem sempre tudo dá certo no final... Sem a batalha diária, tudo pode convergir para o caos...”

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Uma Descoberta Inusitada

Quis escrever uma história inventada. Criei uma personagem estranha, a quem, aos poucos, seria apresentado. Inventei uma vida, um lugar para nascer e um sonho. Era tudo fora de mim. Ou era para ser. Porque o sujeito precisava sentir e pensar para ganhar vida, para ser uma personagem de verdade, senão pareceria um fantoche e a minha história uma pura invenção. Acontece que a partir daí a história se complicou. Com o tempo de convívio passei a notar certas coincidências, reconhecendo no tal sujeito alguns traços e idéias que eram bastante familiares. Para a minha grata surpresa, em certo dia não tive mais dúvidas: vi a mim mesmo na pele daquele outro. Talvez não fosse, é verdade, exatamente aquele que costumava a andar por ai, no dia-a-dia, apresentando-se com meu nome. Talvez não fosse o homem arrumado e conveniente que meus amigos costumavam reconhecer, nem aquele que diariamente cumpria seu trabalho e retornava à casa. Mas era preciso confessar, a mim mesmo não podia enganar. De fato, eu jamais tivera total consciência da existência daquele ser dentro de mim. Todavia, as palavras o tinham trazido a vida, como se finalmente tivesse encontrado uma porta de saída para existir. Eu estava ali, em cada palavra, em cada gesto, em cada reação.

Então passei a criar outras histórias. A inusitada descoberta havia desencadeado uma seqüência de eventos até então imprevistos. Como um vício, uma obsessão, fiz passar pela porta aberta por aquele primeiro sujeito muitos outros homens e meninos, velhos, mulheres e loucos. E nesta brincadeira de descobrir outros eus, de investigar personagens e dar-lhes vida é que me perdi. Sem perceber fui aos poucos penetrando num labirinto profundo, seduzido por tantas histórias, por descobertas novas e possibilidades infinitas. Inebriado, não era capaz de perceber que a cada nova pessoa inventada, estranhamente, me enfraquecia. E segui de história em história, até que cansado e sem mais energias, sucumbi, caindo sobre a escrivaninha. Foi então que, obrigado a parar, deparei-me com meu total esgotamento. Estava esvaziado, dilacerado, como a um cadáver em aulas de anatomia. As folhas de papel se avolumavam sobre a mesa. Páginas e mais páginas, centenas de histórias, personalidades incansáveis. Mas afinal de contas, onde estaria eu? Quem afinal estava sentado naquele quarto, escrevendo aquelas folhas de papéis? Quem é que obcecado inventava aquelas vidas? Que vida dentre aquelas era verdadeiramente a minha? Como se eu mesmo fosse apenas mais uma personagem, de alguma história, que alguém inventava naquele instante, olhei-me fixamente no espelho do quarto e gritei: Mentira! Mentira!

Deitei-me na cama na esperança de me recompor. Era tarde demais. Agora eram vidas criadas, todas ferozmente reais. A cada uma dei um nome, era tarde demais. Ergui-me num salto, assustado com constatação tão absurda. Algo era preciso ser feito, antes que outros os descobrissem, antes que fossem revelados ao resto do mundo. Tomado de ira e desespero, agarrei as folhas de papel sobre a mesa e as levei até o quintal. Postas dentro de uma enorme bacia, despejei sobre elas o litro de álcool. A caixa de fósforos tremia em minhas mãos, era impossível conter as lágrimas. Risquei o palito e, como ato reflexo, soltei um grito rouco e longo, como um guerreiro que impele seu exército contra o inimigo. O fogo ergueu labaredas, tomou completamente as folhas, devorando a tinta e as letras. Estavam todos mortos. Recolhi os restos da cerimônia fúnebre, todos mortos e cremados. Era domingo. Do alto da janela do apartamento as cinzas se espalharam no ar, misturadas a poluição dos carros da avenida. E se perderam. Fui dormir cedo. Ao acordar estava recomposto. Saí pelas ruas, caminhei ao trabalho, voltei à casa. Todos me reconheceram. O mesmo homem conveniente e trivial, aquele que escolhi para apresentar ao mundo.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A Mensagem de Viktor Frankl

No dia 2 de setembro [de 1997] morreu, aos 92 anos, um dos homens realmente grandes deste século. Acabo de escrever isto e já tenho uma dúvida: não sei se o médico judeu austríaco Viktor Frankl pertenceu mesmo a este século. Pois ele só viveu para devolver aos homens o que o século XX lhes havia tomado - e não poderia fazê-lo se não fosse, numa época em que todos se orgulham de ser "homens do seu tempo", alguém muito maior do que o século.

Viktor Emil Frankl, nascido em Viena em 26 de março de 1905, foi grande nas três dimensões em que se pode medir um homem por outro homem: a inteligência, a coragem, o amor ao próximo. Mas foi maior ainda naquela dimensão que só Deus pode medir: na fidelidade ao sentido da existência, à missão do ser humano sobre a Terra.

Homem de ciência, neurologista e psiquiatra, não foi o estudo que lhe revelou esse sentido. Foi a temível experiência do campo de concentração. Milhões passaram por essa experiência, mas Frankl não emergiu dela carregado de rancor e amargura. Saiu do inferno de Theresienstadt levando consigo a mais bela mensagem de esperança que a ciência da alma deu aos homens deste século.

O que possibilitou esse milagre singular foi a confluência oportuna de uma decisão pessoal e dos fatos em torno. A decisão pessoal: Frankl entrou no campo firmemente determinado a conservar a integridade da sua alma, a não deixar que seu espírito fosse abatido pelos carrascos do seu corpo. Os fatos em torno: Frankl observou que, de todos os prisioneiros, os que melhor conservavam o autodomínio e a sanidade eram aqueles que tinham um forte senso de dever, de missão, de obrigação. A obrigação podia ser para com uma fé religiosa: o prisioneiro crente, com os olhos voltados para o julgamento divino, passava por cima das misérias do momento. Podia ser para com uma causa política, social, cultural: as humilhações e tormentos tornavam-se etapas no caminho da vitória. Podia ser, sobretudo, para com um ser humano individual, objeto de amor e cuidados: os que tinham parentes fora do campo eram mantidos vivos pela esperança do reencontro. Qualquer que fosse a missão a ser cumprida, ela transfigurava a situação, infundindo um sentido ao nonsense do presente. Esse senso de dever era a manifestação concreta do amor - o amor pelo qual um homem se liberta da sua prisão externa e interna, indo em direção àquilo que o torna maior que ele mesmo.

O sentido da vida, concluiu Frankl, era o segredo da força de alguns homens, enquanto outros, privados de uma razão para suportar o sofrimento exterior, eram acossados desde dentro por um tirano ainda mais pérfido que Hitler - o sentimento de viver uma futilidade absurda.

Frankl tinha três razões para viver: sua fé, sua vocação e a esperança de reencontrar a esposa. Ali onde tantos perderam tudo, Frankl reconquistou não somente a vida, mas algo maior que a vida. Após a libertação, reencontrou também a esposa e a profissão, como diretor do Hospital Policlínico de Viena.

Assim ele registra, no seu livro Man's Search for Meaning, uma das experiências interiores que o levaram à descoberta do sentido da vida:

"Um pensamento me traspassou: pela primeira vez em minha vida enxerguei a verdade tal como fora cantada por tantos poetas, proclamada como verdade derradeira por tantos pensadores. A verdade de que o amor é o derradeiro e mais alto objetivo a que o homem pode aspirar. Então captei o sentido do maior segredo que a poesia humana e o pensamento humano têm a transmitir: a salvação do homem é através do amor e no amor. Compreendi como um homem a quem nada foi deixado neste mundo pode ainda conhecer a bem-aventurança, ainda que seja apenas por um breve momento, na contemplação da sua bem-amada. Numa condição de profunda desolação, quando um homem não pode mais se expressar em ação positiva, quando sua única realização pode consistir em suportar seus sofrimentos da maneira correta - de uma maneira honrada -, em tal condição o homem pode, através da contemplação amorosa da imagem que ele traz de sua bem-amada, encontrar a plenitude. Pela primeira vez em minha vida, eu era capaz de compreender as palavras: 'Os anjos estão imersos na perpétua contemplação de uma glória infinita'."

Frankl transformou essa descoberta num conceito científico: o de doenças noogênicas. Noogênico quer dizer "proveniente do espírito". Além das causas somáticas e psíquicas do sofrimento humano, era preciso reconhecer um sofrimento de origem propriamente espiritual, nascido da experiência do absurdo, da perda do sentido da vida: "O homem, dizia ele, pode suportar tudo, menos a falta de sentido."

Das reflexões de Frankl sobre a experiência do absurdo nasceu um dos mais impressionantes sistemas de terapia criados no século dos psicólogos: a logoterapia, ou terapia do discurso - um conjunto de esquemas lógicos usados para desmontar os subterfúgios com que a mente doentia procura eludir a questão decisiva: a busca do sentido.

Mas o sentido não teria o menor poder curativo se fosse apenas uma esperança inventada. A mente não poderia encontrar dentro de si a solução de seus males, pela simples razão de que o seu mal consiste em estar fechada dentro de si, sem abertura para o que lhe é superior. Em vez de criar um sentido, a mente tem de submeter-se a ele, uma vez encontrado. O sentido não tem de ser moldado pela mente, mas a mente pelo sentido. O sentido da vida, enfatiza Frankl, é uma realidade ontológica, não uma criação cultural. Frankl não dá nenhuma prova filosófica desta afirmativa, mas o caminho mesmo da cura logoterapêutica fornece a cada paciente uma evidência inequívoca da objetividade do sentido da sua vida. O sentido da vida simplesmente existe: trata-se apenas de encontrá-lo.

Universal no seu valor, individual no seu conteúdo, o sentido da vida é encontrado mediante uma tenaz investigação na qual o paciente, com a ajuda do terapeuta, busca uma resposta à seguinte pergunta: Que é que eu devo fazer e que não pode ser feito por ninguém, absolutamente ninguém exceto eu mesmo? O dever imanente a cada vida surge então como uma imposição da estrutura mesma da existência humana. Nenhum homem inventa o sentido da sua vida: cada um é, por assim dizer, cercado e encurralado pelo sentido da própria vida. Este demarca e fixa num ponto determinado do espaço e do tempo o centro da sua realidade pessoal, de cuja visão emerge, límpido e inexorável, mas só visível desde dentro, o dever a cumprir.

Em vez de dissolver a individualidade humana nos seus elementos, mediante análises tediosas que arriscam perder-se em detalhes irrelevantes, a logoterapia busca consolidar e fixar o paciente, de imediato, no ponto central do seu ser, que é, e não por coincidência, também o ponto mais alto. Eis aí por que é inútil buscar provas teóricas do sentido da vida: ele não é uma máxima uniforme, válida para todos - é a obrigação imanente que cada um tem de transcender-se. Discutir o sentido da vida sem realizá-lo seria negá-lo; e, uma vez que começamos a realizá-lo, já não é preciso discuti-lo, porque ele se impõe com uma evidência que até a mente mais cínica se envergonharia de negar.

A logoterapia tem uma imponente folha de sucessos clínicos. Porém mais significativa do que suas aplicações médicas talvez seja a função que ela desempenhou e desempenha - a missão que ela cumpre - no panorama da cultura moderna. Num século que tudo fez para deprimir o valor da consciência humana, para reduzi-la a um epifenômeno de causas sociais, biológicas, lingüisticas, etc., Frankl nadou na contracorrente e ninguém conseguiu detê-lo. Ninguém: nem os guardas do campo nem as hostes inumeráveis de seus antípodas intelectuais - os inimigos da consciência. Frankl apostou no sentido da vida e na força cognoscitiva da mente individual. Apostou nos dois azarões do páreo filosófico do século XX, desprezados por psicanalistas, marxistas, pragmatistas, semióticos, estruturalistas, desconstrucionistas - por todo o pomposo cortejo de cegos que guiam outros cegos para o abismo. Apostou e venceu. A teoria da logoterapia resistiu bravamente a todas as objeções, sua prática se impôs em inúmeros países como o único tratamento admissível para os casos numerosos em que a alma humana não é oprimida por fantasias infantis mas pela realidade da vida. Por isto mesmo a crítica cultural de Frankl, parte integrante de uma obra onde o médico e o pensador não se separam um momento sequer, tem um alcance mais profundo do que todas as suas concorrentes. Desde seu posto de observação privilegiado, ele pôde enxergar o que nenhum intelectual deste século quis ver: a aliança secreta entre a cultura materialista, progressista, democrática, cientificista, e a barbárie nazista. Aliança, sim: seria apenas uma coincidência que o século mais empenhado em negar nas teorias a autonomia e o valor da consciência também fosse o mais empenhado em criar mecanismos para dirigi-la, oprimi-la e aniquilá-la na prática? Dirigindo-se a um público universitário norte-americano, Viktor Frankl pronunciou estas palavras onde a lucidez se alia a uma coragem intelectual fora do comum:

"Não foram apenas alguns ministérios de Berlim que inventaram as câmaras de gás de Maidanek, Auschwitz, Treblinka: elas foram preparadas nos escritórios e salas de aula de cientistas e filósofos niilistas, entre os quais se contavam e contam alguns pensadores anglo-saxônicos laureados com o Prêmio Nobel. É que, se a vida humana não passa do insignificante produto acidental de umas moléculas de proteína, pouco importa que um psicopata seja eliminado como inútil e que ao psicopata se acrescentem mais uns quantos povos inferiores: tudo isto não é senão raciocínio lógico e conseqüente." (Sêde de Sentido, trad. Henrique Elfes, São Paulo, Quadrante, 1989, p. 45.)

Com declarações desse tipo, ele pegava pela goela os orgulhosos intelectuais denunciadores da barbárie e lhes devolvia seu discurso de acusação, desmascarando a futilidade suicida de teorias que não assumem a responsabilidade de suas conseqüências históricas. Pois o mal do mundo não vem só de baixo, das causas econômicas, políticas e militares que a aliança acadêmica do pedantismo com o simplismo consagrou como explicações de tudo. Vem de cima, vem do espírito humano que aceita ou rejeita o sentido da vida e assim determina, às vezes com trágica inconseqüencia, o destino das gerações futuras.

Frankl era judeu, como foram judeus alguns dos criadores daquelas doutrinas materialistas e desumanizantes que prepararam, involuntariamente, o caminho para Auschwitz e Treblinka. Se ele pôde ver o que eles não viram, foi porque permaneceu fiel à liberdade interior que é a velha mensagem do Sentido em busca do homem: "SE ME ACEITAS, Israel, Eu sou o Teu Deus."

(Olavo de Carvalho, Publicado na revista Bravo! de novembro de 1997, e reproduzido em "O Imbecil Coletivo II")

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Aposentadoria - Capítulo Oitavo

_ Sabe, Gabriel, uma das coisas que mais me intriga nos seres humanos é essa tal aposentadoria?
_ Aposen... o quê?
_ APO-SEN-TA-DO-RIA.
_ Nunca ouvi dizer, Rafael.
_ Ora, mas é algo muito falado, pelo menos entre os humanos...
_ Mesmo assim, acho que nunca tinha ouvido antes.
_ Bom, talvez entre nós o tópico apareça em outras roupagens, você bem sabe que divergimos na nomenclatura de quase tudo com relação aos homens.
_ É, pode ser isso.
_ Enfim, trata-se de um acontecimento muito curioso, esta tal aposentadoria. Veja bem, todos aqui sabemos que uma das aflições mais constantes no espírito humano é a incapacidade crescente para escutar o chamado Dele, não é?
_ Sim, eu vejo isso sempre, é fato corriqueiro, Rafael.
_ Mas também sabemos que muitos acabam por atender ao chamado, ainda que de forma inusitada. Eles embarcam horas e horas do dia em afazeres estranhos, recebendo por isso um instrumento que lhes permite a sobrevivência, mas que também atrai o pecado de forma assustadora.
_ Ah, sim, conheço bem o tipo. Não têm a menor consciência de que algemam as próprias mãos. Certa vez eu cuidei de um deles que agregou uma quantia exageradamente grande dessa coisa e depois, quando a perdeu, simplesmente...
_ Espere um pouco, Gabriel, desculpe-me interrompê-lo, mas não quero perder o foco. Sei que suas histórias são bastante empolgantes e que em seguida traria uma lição de altíssimo valor. Porém, deixe-me terminar o raciocínio, e depois voltamos a isso.
_ Pois não, meu caro, a paciência é a maior das virtudes.
_ Onde eu estava mesmo? Ah, sim, as horas perdidas. Os humanos, dessa forma, embarcam numa atividade perigosa e de frutos potencialmente venenosos, mas, ao mesmo tempo, aproximam-se do chamado Dele.
_ Os dois lados, sempre unidos.
_ Sim, sim, mas aqui a contradição é digna de nota. Pois se o caminho que leva à perdição igualmente traz a observância do chamado, então, o perdão pode ser alcançado mais facilmente, não acha?
_ Pode ser, precisaria meditar sobre a questão, mas provisoriamente aceito seu argumento.
_ Então, concordamos que o labor dos homens, muito nocivo de uma parte, revela no seu reverso a quase aceitação dos desígnios do Alto, correto?
_ Sim, acredito que seu pensamento é claro e verdadeiro.
_ E é neste ponto que entra a aposentadoria.
_ Explique-me melhor, pois não percebo onde deseja chegar.
_ Veja bem, após um breve período dedicado a essa tarefa de esforços mundanos, os homens rebelam-se contra sua obra e deixam de cumprir as obrigações que haviam assumido. Todavia, permanecem angariando o suco da empreitada, e entregam-se sem pudor e sem demora a um banho de delícias, de regalos.
_ Compreendo. E isso é a aposentadoria?
_ Exatamente, é a consagração dos efeitos terrestres do dito trabalho, mas sem os benefícios do alto, porque a vocação deixa de ser atendida.
_ Que tenebroso! Deve ser coisa do Inominado, com certeza que é!
_ Não sei, não sei, talvez o seja; perguntaremos depois a Miguel, mas antes me deixe terminar.
_ Sim, é claro, pensei que já tivesse acabado.
_ Apenas mais um minuto, meu amigo. O mais fantástico de tudo é que há uma grande luta, intensa e incessante, feita por cada um deles para que esse momento chegue o mais rápido possível, como se houvesse um desejo de recolher o fruto mundano antes mesmo de aproximar-se do chamado.
_ Agora entendo, muito interessante.
_ E, mais paradoxalmente ainda, eles...
_ Eu não gosto de paradoxos, lembram-me de guerras passadas, que até hoje não consegui compreender muito bem.
_ Foco, Gabriel, foco!
_ Perdão, meu amigo, às vezes me perco no pensamento.
_ Para sempre perdoado. O paradoxo, a contradição estranha do fenômeno, está na força que atua contrariamente a esse desejo.
_ Bom, deve ser nossa, ou de nossos aliados.
_ Nada disso, Gabriel. Quem hoje afasta este tempo de deserto, de aridez vocacional, e de efeitos descontrolados, é o Estado!
_ Não!
_ Sim, o Estado, ele mesmo, o Estado vem criando embaraços para os humanos atingirem a aposentadoria, e acaba protelando os tempos escuros.
_ Curioso, sem dúvida, curioso.
_ Não sei o significado de tais absurdidades. Talvez Miguel nos ajude...
_ Com certeza algo haverá para dizer, sempre há. Agora, desculpe-me a mudança brusca, querido Rafael, mas peço para iniciar minha narrativa.
_ Pois diga, amigo, eu falei e agora devo escutar.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Cem anos de Madre Teresa de Calcutá

HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II
DURANTE O SOLENE RITO DE BEATIFICAÇÃO
DE MADRE TERESA
NO DIA MISSIONÁRIO MUNDIAL
Domingo, 19 de Outubro de 2003

1. "Quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se servo de todos" (Mc 10, 44). Estas palavras de Jesus aos discípulos, que ressoaram há pouco nesta Praça, indicam qual é o caminho que leva à "grandeza" evangélica. É o caminho que o próprio Cristo percorreu até à Cruz; um itinerário de amor e de serviço, que inverte qualquer lógica humana. Ser o servo de todos!
Madre Teresa de Calcutá, Fundadora dos Missionários e das Missionárias da Caridade, que hoje tenho a alegria de inscrever no Álbum dos Beatos, deixou-se guiar por esta lógica. Estou pessoalmente grato a esta mulher corajosa, que senti sempre ao meu lado. Ícone do Bom Samaritano, ela ia a toda a parte para servir Cristo nos mais pobres entre os pobres. Nem conflitos nem guerras conseguiam ser um impedimento para ela.
De vez em quando vinha falar-me das suas experiências ao serviço dos valores evangélicos. Recordo, por exemplo, as suas intervenções a favor da vida e contra o aborto, também quando lhe foi conferido o prémio Nobel pela paz (Oslo, 10 de Dezembro de 1979). Costumava dizer: "Se ouvirdes que alguma mulher não deseja ter o seu menino e pretende abortar, procurai convencê-la a trazer-mo. Eu amá-lo-ei, vendo nele o sinal do amor de Deus".
2. Não é significativo que a sua beatificação se realize precisamente no dia em que a Igreja celebra o Dia Missionário Mundial? Com o testemunho da sua vida, Madre Teresa recorda a todos que a missão evangelizadora da Igreja passa através da caridade, alimentada na oração e na escuta da palavra de Deus. É emblemática deste estilo missionário a imagem que mostra a nova Beata que, com uma mão, segura uma criança e, com a outra, desfia o Rosário.
Contemplação e acção, evangelização e promoção humana: Madre Teresa proclama o Evangelho com a sua vida inteiramente doada aos pobres mas, ao mesmo tempo, envolvida pela oração.
3. "Quem quiser ser grande entre vós faça-se Vosso servo" (Mc 10, 43). É com particular emoção que hoje recordamos Madre Teresa, grande serva dos pobres, da Igreja e do Mundo inteiro. A sua vida é um testemunho da dignidade e do privilégio do serviço humilde. Ela escolheu ser não apenas a mais pequena, mas a serva dos mais pequeninos. Como mãe autêntica dos pobres, inclinou-se diante dos que sofriam várias formas de pobreza. A sua grandeza reside na sua capacidade de doar sem calcular o custo, de se doar "até doer". A sua vida foi uma vivência radical e uma proclamação audaciosa do Evangelho.
O brado de Jesus na cruz, "Tenho sede" (Jo 19, 28), que exprime a profundidade do desejo que o homem tem de Deus, penetrou no coração de Madre Teresa e encontrou terreno fértil no seu coração. Satisfazer a sede que Jesus tem de amor e de almas, em união com Maria, Sua Mãe, tinha-se tornado a única finalidade da existência de Madre Teresa, e a força interior que a fazia superar-se a si mesma e "ir depressa" de uma parte a outra do mundo, a fim de se comprometer pela salvação e santificação dos mais pobres.
4. "Sempre que fizestes isto a um destes Meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes" (Mt 25, 40). Este trecho do Evangelho, tão fundamental para compreender o serviço de Madre Teresa aos pobres, estava na base da sua convicção, cheia de fé, que ao tocar os corpos enfraquecidos dos pobres tocava o corpo de Cristo. O seu serviço destinava-se ao próprio Jesus, escondido sob as vestes angustiantes dos mais pobres. Madre Teresa realça o significado mais profundo do serviço: um gesto de amor feito aos famintos, aos sequiosos, aos estrangeiros, a quem está nu, doente, preso (cf. Mt 25, 34-36), é feito ao próprio Jesus.
Ao reconhecê-l'O servia-O com grande devoção, exprimindo a delicadeza do seu amor esponsal. Assim, no dom total de si a Deus e ao próximo, Madre Teresa encontrou a sua satisfação mais nobre e viveu as qualidades mais elevadas da sua feminilidade. Desejava ser um "sinal do amor de Deus, da presença de Deus, da compaixão de Deus" e, desta forma, recordar a todos o valor e a dignidade de cada filho de Deus "criado para amar e para ser amado". Era assim que Madre Teresa "levava as almas para Deus e Deus às almas", aliviando a sede de Cristo, sobretudo das pessoas mais necessitadas, cuja visão de Deus tinha sido ofuscada pelo sofrimento e pela dor.
5. "Porque o Filho do Homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos" (Mc 10, 45). Madre Teresa partilhou a paixão do Crucificado, de modo especial durante longos anos de "obscuridade interior". Aquela foi a prova, por vezes lancinante, acolhida como um singular "dom e privilégio".
Nos momentos mais difíceis ela recorria com mais tenacidade à oração diante do Santíssimo Sacramento. Esta difícil angústia espiritual levou-a a identificar-se cada vez mais com aqueles que servia todos os dias, experimentando o sofrimento e por vezes até a recusa. Gostava de repetir que a maior pobreza é não sermos desejados, não ter ninguém que se ocupe de nós.
6. "Dai-nos, Senhor, a Vossa graça, em Vós esperamos!". Quantas vezes, como o Salmista, também Madre Teresa, nos momentos de desolação interior, repetiu ao seu Senhor: "Em Vós, meu Deus, em Vós espero!".
Prestemos honra a esta pequena mulher apaixonada por Deus, humilde mensageira do Evangelho e infatigável benfeitora da nossa época. Aceitemos a sua mensagem e sigamos o seu exemplo.
Virgem Maria, Rainha de todos os Santos, ajuda-nos a ser mansos e humildes de coração como esta intrépida mensageira do Amor. Ajuda-nos a servir com a alegria e com o sorriso todas as pessoas que encontramos. Ajuda-nos a ser missionários de Cristo, nossa paz e nossa esperança. Amém!

Aposentadoria - Capítulo Sétimo

Eu me aposentei muito cedo. Fui pára-quedista do exército, por isso pude me aposentar aos quarenta anos. O que tenho feito desde então? Bem, tenho vivido ao meu modo. Procuro ter uma rotina, ajudar nas tarefas de casa, fazer alguma atividade física. Há alguns anos comprei uma sonhada casa na praia e descemos para o litoral quase todo fim de semana. Às vezes estendo um pouco mais os dias, invado a semana, mas é raro, porque minha mulher trabalha e sozinho não tem muita graça. Aliás, talvez este seja um dos meus grandes problemas. Aposentar-se cedo é um pouco solitário: de repente você deixa de ser um cidadão comum, os amigos acham estranho, sua mulher começa a não gostar de te ver em casa todo dia, ninguém pode te acompanhar em atividades fora de hora, enfim. Mas, em compensação, eu tenho bastante tempo livre e dinheiro suficiente para viver bem sem ter que derramar uma gota de suor. Isso é o paraíso, é o sonho de qualquer um, não é? Assim eu oriento meus filhos: todos para o serviço público, senão vão acabar como a sua mãe! Rárárá... Um deles consegui convencer a seguir a carreira militar, mas o outro também se prepara para prestar algum concurso público. Eu digo para eles: tem que se encostar ao Estado, tem que encostar... Tem espaço para todo mundo conseguir o seu pedacinho de mordomia... Ora, ora... A vida não pode ser só trabalhar, tem que aprender a aproveitar o que ela nos dá de bom! Outro dia me perguntaram se eu era feliz. É claro que eu sou! Não gosto dessa gente que fica reclamando da vida... Eu lá posso reclamar da minha? Não reclamo, não. Também... Vou reclamar do que? Rárárá... Tem vezes que até sinto falta de um probleminha para resolver... Minha mulher fica doida comigo... Mas no fundo, no fundo me inveja, eu sei. É que a gente acaba se sentindo um pouco inútil, sabe? Mas logo passa... Eu arranjo algum serviço em casa, saio beber alguma coisa na rua, logo passa. É verdade que andei um tempo não muito bem... Comecei a perder a vontade de fazer as coisas... Qualquer coisa, desde tomar banho, até ter de levar meu filho ao curso ou mesmo comer. Sei lá o que foi que me deu, perdi a vontade de viver... Justamente eu, que sempre fui tão alegre, sempre aproveitei tanto meu ócio e fui presenteado pela vida com uma aposentadoria tão prematura! Acabei entrando na moda, certo? Não dizem que a depressão é doença da moda? Pois bem, acabei caindo no consultório de um psiquiatra... Foi a minha salvação! Ah! A piedosa medicina... Afinal de contas, a vida tem os seus percalços... Mesmo para quem não trabalha, acreditem... Rárárá... Depois deste terrível incidente, consegui virar a página e voltar à antiga forma: hoje vivo de gozar minha querida aposentadoria, presente que a vida me deu... E que os santos comprimidos médicos me garantem!

Aposentadoria - Capítulo Sexto

Eu considero este negócio de aposentadoria uma bobagem. Já bastam todos os impostos que esses filhos da mãe nos fazem pagar, ainda querem me tirar mais um tanto do meu bolso? Dizem que trabalhamos três meses por ano para o governo, porque vou querer trabalhar mais algum? Em minha opinião esse papo de governo, estado, democracia, é tudo uma enorme bobagem, um lero-lero para enganar trouxa. É só olhar para a história, isso nunca funcionou bem... É teoria e teoria para explicar o inexplicável: tem sempre o que manda e aproveita, e os que obedecem e se estrepam! E tem mais: temos que aceitar que com a humanidade vai ser sempre assim, na sujeira, não tem solução... E tem gente que ainda tem coragem de ser partidário, ter ideologia, ir atrás de voto. Para mim, das duas uma: ou entra para tirar proveito e se dar bem ou cai fora! Como não tenho estômago, nem paciência para política, prefiro ficar de fora. Sou daqueles que ainda precisa de algum sentido nas coisas que faz e, definitivamente, não sou capaz de acreditar em nada que venha da política. Isto tudo eu digo para justificar a razão pelo qual eu simplesmente não penso em aposentadoria, nem quero pensar. Faço minha vida a meu modo e o que desejo é ser cada vez mais livre. Por que é que vou ficar atrelado a mais uma “teta” do governo? Quero fugir a tentação. Comida em casa é meu suor que põe. E quando for velho, não há de faltar um filho que me acolha. Sofrer? Não tenho medo, não. Sofrimento a gente sofre, depois passa. Felicidade na velhice é para os covardes. Eu quero estar vivo, bem vivo, até o dia da minha morte.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Aposentadoria - Capítulo Quinto

_Precisamos pensar já na aposentadoria, isto não pode ser deixado para depois. Quanto antes planejarmos mais nos garantimos...
_Eu estou tranqüilo, meu pai começou a pagar a previdência quando eu tinha cinco anos, assim posso parar de trabalhar logo, logo.
_Mas depois de parar de trabalhar, o que você vai fazer da vida?
_Sei lá, viajar, conhecer o mundo, curtir por ai...
_Hum... Mas é melhor não contar com o governo... Você já viu as previsões dos especialistas? A previdência está quebrada... Você vai passar a vida inteira contribuindo e no final não vai conseguir receber nada... Pelo menos é o que dizem... Há um risco muito grande...
_E você vai acreditar nisso? Pode até estar quebrada, mas sempre vão pagar... O que você sugere? Arriscar é deixar isso para muito tarde... Muito perigoso... Tem que se garantir, tem que se garantir...
_Ora, hoje em dia tem a aposentadoria privada, escolha um banco... Ou invista em imóveis...
_E banco é mais confiável que o governo? Toda hora algum banco quebra e todo mundo se dá mal...
_Sei lá... O que eu quero mesmo é prestar concurso público... Pelo menos a aposentadoria é integral...
_Está maluco? Isso já acabou... E tende a piorar... Vai ficar igual a todo mundo...
_Por isso preciso entrar logo e garantir o meu...
_Mas eu pensei que você quisesse exercer a engenharia... Quando você prestou vestibular você sonhava em construir pontes, viadutos...
_Os tempos são outros... A gente amadurece... Eu preciso pensar no meu futuro... O mercado é muito violento, a concorrência é grande, preciso de algo mais garantido.
_Mas na engenharia não é possível?
_O que eu quero é emprego estável, trabalhar pouco, não ter chefe... Pelo menos não um que possa me mandar embora... E de brinde ainda levo uma gorda aposentadoria... Tem coisa melhor? Por que é que vou enfrentar entrevista, dinâmica em grupo, carreira em empresa?
_Mas e se você não gostar do que fizer? E se a aposentadoria demorar demais para vir?
_Ora, quem está falando... Isso a gente dá um jeito depois... Você mesmo... Se gostasse tanto do que faz não ia querer se aposentar tão cedo...
_Não, não é isso... É que trabalhar cansa... Todo dia a mesma coisa, acordar cedo, resolver problema... Passear é melhor, não? Por isso prefiro fazer tudo para esse dia chegar mais rápido...
_E se você morrer antes disso? Digo, morrer antes da aposentadoria?
_Morrer? Está maluco? Que pessimismo é esse? Só você, mesmo... Morrer...
_Ué, todo mundo morre um dia... E a gente nunca sabe a hora...
_Sai pra lá! Isso dá azar! Mas sabe que, mesmo pensando assim, você só reforça a minha teoria... É mais uma razão para eu me aposentar logo... Não quero estar velho e indisposto, muito menos morrer antes de curtir a tão sonhada aposentadoria.
_Bem, eu já penso diferente. Com meu cargo público pretendo não ter que esperar a aposentadoria para curtir a vida... Sim, porque com hora para entrar e para sair, salário fixo, estabilidade, trinta dias de férias, vou ter mais tempo livre, vou poder aproveitar muito mais. Nada de horas extras... Nada de ter medo de perder o emprego... Nada de ficar implorando aumento...
_Mesmo assim você terá que passar no mínimo oito horas trabalhando... Vai sobrar pouquíssimo tempo... Não é melhor se aposentar mais depressa?
_Isso não existe... Aposentaria é só depois de 35 anos de serviço...
_E se você morrer antes disso?
_Agora vem você falar em morrer... Nem sei por que disse isso... É claro que isso não vai acontecer tão cedo... Agora não é hora de pensar nisso... Antes de bater as botas eu quero curtir bastante a minha aposentadoria integral, nem que eu esteja velhinho...
_Sei lá, às vezes eu acho que você devia esquecer esse negócio de concurso, esta esperança de aposentadoria integral e ir atrás das suas pontes, dos seus prédios... Já pensou? Você pode ser um Niemayer! Ah! Se eu tivesse alguma coisa que eu gostasse pra valer de fazer, se tivesse um sonho assim... Talvez o trabalho não fosse tão ruim...
_É gostoso dar opinião na vida dos outros, não? Deixa que do meu sonho cuido eu... Niemayer, Niemayer... Os tempos são outros... Jamais conseguiria uma coisa dessas no mundo de hoje... Prefiro não trocar o certo pelo duvidoso... Vou é garantir o meu concurso, meu carguinho de hoje e a minha aposentadoria gorducha de amanhã!
_Só espero que você não se arrependa... Assim, quando você já estiver aposentado, sentado na poltrona da sala, fazendo o balanço da sua vida...
_Ora, ora... Eu? E você, sabichão!? Como estará quando estiver nesta mesma poltrona? Eu acho que você devia era parar de ficar obcecado com essa idéia de aposentadoria prematura e se preparar para ter que trabalhar... Afinal de contas, bem ou mal você terá que trabalhar. E não por pouco tempo... Viver a vida depositando tudo no futuro? Isso sim é que é loucura! No seu lugar arrumava um emprego melhor, que te permitisse ir curtindo a vida desde já... Depois que venha a aposentadoria e, daí, você curte mais ainda...
_Isso se eu não morrer antes...
_Morrer? Agora é você que está com essa história... Rárárá... Não é engraçado dois jovens como nós falando da morte? Vamos cuidar é da vida, que ela já nos dá bastante “trabalho”... Ou melhor... Vamos cuidar é de aproveitar a vida e esquecer o trabalho!
_É isso mesmo! Esse papo já estava ficando sério demais...

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Aposentadoria - Capítulo Quarto

Ah! Aposentadoria... Vou simplesmente vestir o pijama! É pegar meus proventos integrais e não fazer mais nada! Ah! Aposentadoria... A realização da espécie humana em seus instintos mais comezinhos... Posso acordar lá pelas dez ou onze...não precisa ser muito tarde não... Tomo um bom café na padaria, leio meu jornal, vou pagar as contas, vou ao banco... Almoço com calma, tiro minha soneca em seguida (de pijama, é óbvio)... Lá pelas cinco, é só partir para a TV e esperar as horas passarem... Ah! Aposentadoria... Mas ficar tanto em casa deve cansar. Imagine ficar todas essas horas com a patroa buzinando na minha orelha, me mandando fazer as coisas, arrumar isto e aquilo. É preciso diversificar, posso arranjar uns “bicos” pra fazer, um ou outro trabalhinho, nada demais, nada que me desgaste demais, dá até pra ganhar mais uns trocados. Ou, então, um trabalho filantrópico, mas que não me exija demais, não tenho condições... Ou um fixo menos exigente... Bom, mas nada disso tirará o brilho, nem de perto, de poder dizer a todos: “- Eu sou aposentado!” Ah! Aposentadoria...

Aposentadoria - Capítulo Terceiro

Não vou me aposentar, quero morrer trabalhando, consumido pelos meus afazeres diários. Adoro o que faço, além de que não posso mais deixá-lo, dependo de meu trabalho financeira e psiquicamente. Não vou me aposentar. Ainda que ganhe uns trocos do INPS, não posso deixar meu trabalho, quem vai fazê-lo por mim? Claro que sempre tenho meus altos e baixos, mas minha vida só faz sentido se meu trabalho estiver presente. Não vou me aposentar. Os anos trouxeram-me uma experiência que pode ser muito útil em meu trabalho, claro que não tenho mais a mesma agilidade de antes, claro que o vigor físico não é mais o mesmo, que o cansaço é maior, mas a experiência, meu caro, a experiência me permite largar na frente, como no caso da lebre e da tartaruga, se lembra? Queimarei meu resto de lenha e pronto, o trabalho é a finalidade do homem ter sido posto na face da Terra. Não vou me aposentar.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Aposentadoria - Capítulo Segundo

Quando eu me aposentar... Nada disso! O importante é o poder do agora! Não quero nada que me traga deveres. É urgente viver o momento, viajar, curtir, cair na noite. Quando eu me aposentar, pode ser tarde demais! Amanhã, pode ser tarde demais! Preciso pensar mais em mim, pensar nos outros também, mas desde que isto me beneficie... Nada como o já démodé custo-benefício! Trabalhar de segunda a sexta só para ser eu-mesmo a partir da sexta à noite! Trabalhar para gastar nas próximas férias em um lugar exótico da moda. Relacionamentos descolados, abertos, pluri, multi, extra, ultra. Quando for casar, que cafona! Vai ser para cada um continuar com sua vida! Filhos...se algum escapar, paciência, mas no máximo dois, para quando já estiver tudo estável, quando já tivermos feito o pé de meia... Quando eu me aposentar, a medicina já terá avançado muito, viverei cem anos! Cem anos muito bem vividos! Quero chegar lá bem conservado, não vou ser como esses velhos rabugentos...eu não! Vou ser um velhinho bem simpático, agradável, higiênico, ninguém pode com esses velhos de hoje... Mente jovem, pra frente, otimismo! Quando eu me aposentar, já terei realizado todos os meus projetos, serei tudo isso que sempre quis... Uma pessoa em sintonia com o mundo, consciente das grandes questões, informada, informatizada...com um curso superior, uma pós (talvez duas...) e um curso de inglês! Consciente da importância da sustentabilidade, da mundialização, do voto consciente. Aí está a razão de tudo o que faço, viver cada segundo sem deixar de ser autêntico, assim, quando eu me aposentar, cada segundo terá tido seu sentido na obra completa de minha vida.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Aposentadoria - Capítulo Primeiro

Ah, quando eu me aposentar... Ah aí sim, terei tempo para tudo que sempre sonhei... Farei trabalhos sociais, viajarei o mundo, lerei os livros que sempre desejei. Isso porque o trabalho me deixa enfadonho – canso, reclamo, um dia após o outro é sempre muito enfadonho! Escreverei livros, cuidarei da saúde, conversarei com os outros, praticarei esportes, me divertirei, enfim, serei uma pessoa realizada! Hoje, nada disso é possível, faltam-me tempo, habilidades, ânimo... Mas quando eu me aposentar sim, serei outra pessoa, uma pessoa pronta para a completude, já despida dos despistes da juventude, plenamente convicto de minhas potencialidades. Ah, quando eu me aposentar... Hoje, é preciso ter uma profissão, construir uma casa, ter fontes de renda, educar os filhos, rezar, pagar meus impostos, tirar férias, ir ao shopping, ao supermercado, ao cinema... Mas quando eu me aposentar...

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Missão de Caipira

Às vezes eu fecho os olhos e imagino que o sonho delírio do nosso amigo João Augusto há de ter existido em algum lugar (ou, quem sabe, ainda existe?). Eu imagino o meu cantinho nesse mundão bonito imaginado pelo Jão: uma casinha branca, como aquela da canção, no alto de um morro e um lago para pescar de vez em quando, feito a lembrança de Pedro, o homem e seu barco no meio do mar. Mas esse mundo existe ou é invenção? Estrada de terra, rua de pedra, coreto na praça, música da banda, nem rádio, nem nada. Depois comida fresca, fogão de lenha, frutas do pomar, leite da teta da vaca Mimosa, haverá este lugar? Em mim ele mora, um lugar simples, caipirão, com sabedoria passada de ouvido e contar, em rodas de três gerações, pai, filho e avô. Por que é que tudo se modernizou? É demais algum pobre homem querer segurar o mundo e gritar: Calma! Cês correm pra onde minha gente! Onde é que vamo chegá? Ara! Que avenida mais doida é essa Avenida Paulista, já viram? Mas eu garanto, com toda certeza, que essa gente toda corre, corre, pra lá e pra cá, mas de verdade, nem sabe o que quer da vida, nem reconhece esse lugar. E pode haver coisa mais perigosa e triste que gente humana perdida, sem rumo, caída, e ainda sem um lugar pra chamar de seu? Ah! Porque essa terrinha dos meu olhos é muito minha, foi lá que eu nasci, lá que eu cresci, lá que conheço cada pedaço de chão e cada grão conta uma história. Lá não sou número, não sou pessoa, não sou cidadão: lá sou Eu mesmo, com meu nome e minha família, conhecida e reconhecida, amargada e festejada, a história triste-alegre de cada um. Lá quem conversa olha nos olhos, estende os braços, abre as portas da casa e as janelas do coração. Há o tempo das coisas, não há pressa ao que não precisa ser rápido. Namorar, por exemplo. Todo mundo sabe o ritual que já existe dentro da gente quando damos para nos encantar com alguma linda pessoa. Então, por lá, não inventamos nada, apenas deixamos as coisas andarem ao natural, em respeito a este momento tão raro que é o de se apaixonar. E com a mesma paciência com que esperamos as frutas amadurecerem nas árvores do pomar, as flores colorirem após uma necessária poda ou uma novilha estar pronta para ser ordenhada, assim também sabemos esperar o amor. Será que este pensamento esta preso num passado retrógado? Serei eu um menino velho e desdentado na flor da idade? Onde foi que deixamos a inocência e o respeito, as coisas simples e singelas, as caminhadas pelas ruas, as conversas com os vizinhos, as brincadeiras de roda, os almoços em família, o cortejo calmo e galante de uma mulher? Será saudade de um outro tempo, negação do mundo, tentação de ser feliz nesta vida que é só de passagem? Ou apenas a aparição de um antigo anseio humano que nasce agora em mim, como os românticos que cantavam a bucólica vida no campo? Anseio, sonho, medo, fuga, tentação, o que for. Algo existe, mais forte e verdadeiro, mais sincero que qualquer confissão, que pede, implora e deseja resistir ao "moderno" do mundo (e não ao mundo, bem que se diga...). Acusem-me do que quiserem, chamem-me utópico, bobo, desiludido da vida, Jeca Tatu. Nem que eu tenha que passar minha vida inteira na briga, expondo meu peito de caboclo que nunca capinou nem uma roça sequer para contar a estória e minhas mãos jamais calejadas de menino fresco de cidade e computador. Se for essa minha missão, que eu abraço com gosto e sina. Missão de caipira, caipira de moda de viola e cantadô. Não o caipira chique que anda se exibindo por ai, desde que ficou bonito falar do sertão. Que eu não caia nesta armadilha... E se tudo for feito por amor e por raiz, como acredito que é onde está costurada a minha alegria, não há perigo de armadilha nenhuma, não senhor. Por isso, desde agora e desde sempre, que assim me noto e me vejo, observando de longe minha pequena vida, hei de cantar cada dia, com a paciência que aprendo vinda do chão que nasci, este modo singelo e profundo de viver. E que meu canto não seja apenas feito de notas e palavras, mas, principalmente, de marcas fincadas pelas estradas que hei de passar. Que a esperança e a fé me dêem sabedoria, façam-me forte na contínua travessia, sem desvio grande que não possa retornar. Porque sei que este sonho não é só meu, que não caminho sozinho nesta via que escolhi ou o Pai me escolheu. Antes vou em romaria, com gente de primeira linha, caboclos moços velhos, cantadores, violeiros como eu. Caipiras de sangue e comoção, bichos bravos, guerreiros, presos a mesma missão. Neste laço que nos prende e guia, herdeiros de antiga e amada tradição, vamos passo a passo, com calma, fazendo do nosso mundo uma pequena vila, em que possamos, nós homens, repousar o cansaço e dar alegria ao coração.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

A Canção do Pântano

É num piscar de olhos que meu pensamento me trai e, num segundo, abandono minha aspiração mais alta, para, numa “crise de realidade”, conformar-me com a idéia triste e medíocre de construir minha vida pautada em um ofício fácil, com pouca preocupação e dinheiro suficiente para ter regalias. Como aquele menino d’A História sem Fim, que enfrenta a travessia do pântano negro, tendo que resistir à força destruidora do desânimo e do pessimismo que à aura terrível do lugar impele as pessoas, inclusive defrontando-se com a morte de seu cavalo amigo, pobre animal que sucumbe ao magnetismo de terror e acaba engolido pela lama maligna. Assim também somos nós conduzidos a contragosto ao heroísmo de resistir à força destruidora de um mundo que nos seduz perversamente a abandonarmos todos os nossos ideais para servirmos exclusivamente ao comodismo, ao dinheiro, à vaidade, à vida fácil, de mentira e ilusão, que dia-a-dia nos levará ao fundo do poço, como o cavalo de Artreiú. Numa espécie de masoquismo alienante, nos deliciamos de prazer e doçura, enquanto o veneno consome nossas entranhas, tal qual os meninos noiados da cracolândia.
No entanto, a realidade extravasa as dimensões deste mundo mundano e não estamos sozinhos perdidos neste pântano. Existe uma fonte de onde brotam todos os ideais e que, misteriosamente, nos atrai e nos chama. Como soldados para uma guerra urgente e necessária, somos convocados ao fronte, é preciso ter força e lutar. O general maior nos oferece as diretrizes e nos convida a viver segundo o seu exército: abracem a cruz! Abandonem tudo, não menos que tudo, e sigam-me! De pernas cansadas de tanto peregrinar pelo mundo, a beira de desistirmos de encontrar um sentido maior para nossas vidas, quase engolidos pela lama, encontramos a figura enigmática deste general. Como Madre Teresa pelas ruas de Calcutá, desencantada com sua vida de freira bem limpinha e protegida dentro dos muros do convento, quando num passeio pela cidade descobre nos olhos dos pobres mendigos indianos a voz do exigente general. Obediente, soldado fiel, parte com coragem rumo a sua missão, impelida apenas pela força desta voz que a sustenta como um touro indestrutível. Teresa sim, Teresa vai, Teresa luta. Pouco a pouco se torna um verdadeiro soldado da cruz, capaz de enfrentar e vencer o terrível pântano.
Não nos enganemos. É doce e deliciosa a nossos ouvidos humanos a canção do pântano. Facilmente e com bastante alegria negamos a cruz, renunciando-a em nome de uma vida mundana e prazenteira. Cegos e surdos, seguimos mortos-vivos a regra do mundo, sonhando com grandezas e poder, enquanto não somos engolidos completamente pela lama mortal. Todavia, dentro de cada um de nós, outra voz nos chama, o piedoso e fiel general. Com insistência e amor desmascara a terrível condição, revela-nos o campo de batalha e nos convoca a assumir uma guerra. Como um pai, nos guia, nos dá armas e nos prepara. Mas exige de nós um pequeno passo, uma pequena e singela decisão, a mais difícil de nossas vidas. Tal qual o menino Artreiú da história inventada, teremos que atravessar a hostilidade de um mundo pantanoso e demasiado mundano, para que possamos atingir a magnitude de uma vida verdadeira, profunda e cheia de sentido. Mas para isso precisaremos, como Madre Teresa, abandonar tudo e dizer sim às ordens desde amoroso general, para que nossos ouvidos sejam capazes de resistir a terrível e sedutora canção do pântano.