segunda-feira, 19 de julho de 2010

Missão de Caipira

Às vezes eu fecho os olhos e imagino que o sonho delírio do nosso amigo João Augusto há de ter existido em algum lugar (ou, quem sabe, ainda existe?). Eu imagino o meu cantinho nesse mundão bonito imaginado pelo Jão: uma casinha branca, como aquela da canção, no alto de um morro e um lago para pescar de vez em quando, feito a lembrança de Pedro, o homem e seu barco no meio do mar. Mas esse mundo existe ou é invenção? Estrada de terra, rua de pedra, coreto na praça, música da banda, nem rádio, nem nada. Depois comida fresca, fogão de lenha, frutas do pomar, leite da teta da vaca Mimosa, haverá este lugar? Em mim ele mora, um lugar simples, caipirão, com sabedoria passada de ouvido e contar, em rodas de três gerações, pai, filho e avô. Por que é que tudo se modernizou? É demais algum pobre homem querer segurar o mundo e gritar: Calma! Cês correm pra onde minha gente! Onde é que vamo chegá? Ara! Que avenida mais doida é essa Avenida Paulista, já viram? Mas eu garanto, com toda certeza, que essa gente toda corre, corre, pra lá e pra cá, mas de verdade, nem sabe o que quer da vida, nem reconhece esse lugar. E pode haver coisa mais perigosa e triste que gente humana perdida, sem rumo, caída, e ainda sem um lugar pra chamar de seu? Ah! Porque essa terrinha dos meu olhos é muito minha, foi lá que eu nasci, lá que eu cresci, lá que conheço cada pedaço de chão e cada grão conta uma história. Lá não sou número, não sou pessoa, não sou cidadão: lá sou Eu mesmo, com meu nome e minha família, conhecida e reconhecida, amargada e festejada, a história triste-alegre de cada um. Lá quem conversa olha nos olhos, estende os braços, abre as portas da casa e as janelas do coração. Há o tempo das coisas, não há pressa ao que não precisa ser rápido. Namorar, por exemplo. Todo mundo sabe o ritual que já existe dentro da gente quando damos para nos encantar com alguma linda pessoa. Então, por lá, não inventamos nada, apenas deixamos as coisas andarem ao natural, em respeito a este momento tão raro que é o de se apaixonar. E com a mesma paciência com que esperamos as frutas amadurecerem nas árvores do pomar, as flores colorirem após uma necessária poda ou uma novilha estar pronta para ser ordenhada, assim também sabemos esperar o amor. Será que este pensamento esta preso num passado retrógado? Serei eu um menino velho e desdentado na flor da idade? Onde foi que deixamos a inocência e o respeito, as coisas simples e singelas, as caminhadas pelas ruas, as conversas com os vizinhos, as brincadeiras de roda, os almoços em família, o cortejo calmo e galante de uma mulher? Será saudade de um outro tempo, negação do mundo, tentação de ser feliz nesta vida que é só de passagem? Ou apenas a aparição de um antigo anseio humano que nasce agora em mim, como os românticos que cantavam a bucólica vida no campo? Anseio, sonho, medo, fuga, tentação, o que for. Algo existe, mais forte e verdadeiro, mais sincero que qualquer confissão, que pede, implora e deseja resistir ao "moderno" do mundo (e não ao mundo, bem que se diga...). Acusem-me do que quiserem, chamem-me utópico, bobo, desiludido da vida, Jeca Tatu. Nem que eu tenha que passar minha vida inteira na briga, expondo meu peito de caboclo que nunca capinou nem uma roça sequer para contar a estória e minhas mãos jamais calejadas de menino fresco de cidade e computador. Se for essa minha missão, que eu abraço com gosto e sina. Missão de caipira, caipira de moda de viola e cantadô. Não o caipira chique que anda se exibindo por ai, desde que ficou bonito falar do sertão. Que eu não caia nesta armadilha... E se tudo for feito por amor e por raiz, como acredito que é onde está costurada a minha alegria, não há perigo de armadilha nenhuma, não senhor. Por isso, desde agora e desde sempre, que assim me noto e me vejo, observando de longe minha pequena vida, hei de cantar cada dia, com a paciência que aprendo vinda do chão que nasci, este modo singelo e profundo de viver. E que meu canto não seja apenas feito de notas e palavras, mas, principalmente, de marcas fincadas pelas estradas que hei de passar. Que a esperança e a fé me dêem sabedoria, façam-me forte na contínua travessia, sem desvio grande que não possa retornar. Porque sei que este sonho não é só meu, que não caminho sozinho nesta via que escolhi ou o Pai me escolheu. Antes vou em romaria, com gente de primeira linha, caboclos moços velhos, cantadores, violeiros como eu. Caipiras de sangue e comoção, bichos bravos, guerreiros, presos a mesma missão. Neste laço que nos prende e guia, herdeiros de antiga e amada tradição, vamos passo a passo, com calma, fazendo do nosso mundo uma pequena vila, em que possamos, nós homens, repousar o cansaço e dar alegria ao coração.

Um comentário:

  1. O Miguel é um mediador por excelência! Uniu nossas cogitações, remendou-as, deu acabamento e tirou uma missão de caipira! Saiu do pessimismo com o mundo da canção do pântano e voou até a otimista missão caipira. Eu gostei dos dois, mas não podemos esquecer que o mundo é bem pantanoso mesmo, não é possível encontrar a felicidade plena na face da terra, se estamos buscando a algo assim, estamos no caminho errado, a luta do homem na terra é peleja, é maçada, envolve muitos momentos difíceis, até terríveis, só compreensíveis se temos a também terrível noção da Cruz e da situação do homem na terra. Não há paraíso aqui. Pode parecer pessimismo ou conformismo, não é isso, trata-se de realismo, sem deixar de acreditar que as coisas podem melhorar sempre, mas sem tentar modificar a natureza humana, que é imutável, o homem foi criado bom e se perverteu, possuindo até hoje essa tendência ao mal.
    De qualquer forma, concordo com as aspirações miguelianas, consciência do pântano em que estamos imersos, sem abandonar o otimismo de uma missão de caipira...

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