quarta-feira, 14 de julho de 2010

A Canção do Pântano

É num piscar de olhos que meu pensamento me trai e, num segundo, abandono minha aspiração mais alta, para, numa “crise de realidade”, conformar-me com a idéia triste e medíocre de construir minha vida pautada em um ofício fácil, com pouca preocupação e dinheiro suficiente para ter regalias. Como aquele menino d’A História sem Fim, que enfrenta a travessia do pântano negro, tendo que resistir à força destruidora do desânimo e do pessimismo que à aura terrível do lugar impele as pessoas, inclusive defrontando-se com a morte de seu cavalo amigo, pobre animal que sucumbe ao magnetismo de terror e acaba engolido pela lama maligna. Assim também somos nós conduzidos a contragosto ao heroísmo de resistir à força destruidora de um mundo que nos seduz perversamente a abandonarmos todos os nossos ideais para servirmos exclusivamente ao comodismo, ao dinheiro, à vaidade, à vida fácil, de mentira e ilusão, que dia-a-dia nos levará ao fundo do poço, como o cavalo de Artreiú. Numa espécie de masoquismo alienante, nos deliciamos de prazer e doçura, enquanto o veneno consome nossas entranhas, tal qual os meninos noiados da cracolândia.
No entanto, a realidade extravasa as dimensões deste mundo mundano e não estamos sozinhos perdidos neste pântano. Existe uma fonte de onde brotam todos os ideais e que, misteriosamente, nos atrai e nos chama. Como soldados para uma guerra urgente e necessária, somos convocados ao fronte, é preciso ter força e lutar. O general maior nos oferece as diretrizes e nos convida a viver segundo o seu exército: abracem a cruz! Abandonem tudo, não menos que tudo, e sigam-me! De pernas cansadas de tanto peregrinar pelo mundo, a beira de desistirmos de encontrar um sentido maior para nossas vidas, quase engolidos pela lama, encontramos a figura enigmática deste general. Como Madre Teresa pelas ruas de Calcutá, desencantada com sua vida de freira bem limpinha e protegida dentro dos muros do convento, quando num passeio pela cidade descobre nos olhos dos pobres mendigos indianos a voz do exigente general. Obediente, soldado fiel, parte com coragem rumo a sua missão, impelida apenas pela força desta voz que a sustenta como um touro indestrutível. Teresa sim, Teresa vai, Teresa luta. Pouco a pouco se torna um verdadeiro soldado da cruz, capaz de enfrentar e vencer o terrível pântano.
Não nos enganemos. É doce e deliciosa a nossos ouvidos humanos a canção do pântano. Facilmente e com bastante alegria negamos a cruz, renunciando-a em nome de uma vida mundana e prazenteira. Cegos e surdos, seguimos mortos-vivos a regra do mundo, sonhando com grandezas e poder, enquanto não somos engolidos completamente pela lama mortal. Todavia, dentro de cada um de nós, outra voz nos chama, o piedoso e fiel general. Com insistência e amor desmascara a terrível condição, revela-nos o campo de batalha e nos convoca a assumir uma guerra. Como um pai, nos guia, nos dá armas e nos prepara. Mas exige de nós um pequeno passo, uma pequena e singela decisão, a mais difícil de nossas vidas. Tal qual o menino Artreiú da história inventada, teremos que atravessar a hostilidade de um mundo pantanoso e demasiado mundano, para que possamos atingir a magnitude de uma vida verdadeira, profunda e cheia de sentido. Mas para isso precisaremos, como Madre Teresa, abandonar tudo e dizer sim às ordens desde amoroso general, para que nossos ouvidos sejam capazes de resistir a terrível e sedutora canção do pântano.

2 comentários:

  1. Largar tudo. Largar tudo? Tudo? Como seria isso, largar tudo? Mas como largar tudo, meu Deus? O que é esse tudo que precisamos largar?
    Não sei, não me parece certo que larguemos a vida assim para abraçar apenas uma outra forma, e que forma seria? Como Madre Teresa? Como São Francisco? Mas será que nosso Senhor inventou apenas esses dois caminhos: da entrega total e do pântano que engole?
    Pode ser medo, pode ser a névoa do pântano, ou outra coisa, mas no meu íntimo sinto que a cruz desses nossos santos amigos não é a mesma que a minha...

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  2. Largar tudo: não estar apegado a nada. Só é possível com a ajuda do próprio Deus, o homem, só com suas forças, é incapaz de se desprender de tudo, o próprio S. Francisco dizia que a soberba morre depois da morte da pessoa. Não se larga uma forma para abraçar a outra, para algumas pessoas pode até ser assim, mas a maioria basta largar tudo na sua própria forma de vida, ou seja, desprender-se de tudo no próprio estado em que se encontra. Existem inumeráveis caminhos, mas todos levam à casa do Pai e "na casa de Meu Pai existem muitas moradas". A Cruz não é a de Francesco ou de Tereza, a Cruz é a Santa Croce, a Cruz de Cristo.
    Aí está, só tentei responder de modo religioso às questões. Claro que ainda caberia fazê-lo sobre diversos enfoques, mas me parece que as perguntas estavam ligadas justamente a uma indagação de fé.

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