quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Whiplash: o gênio e a redenção


Se Whiplash é uma obra de arte? Se pode ser considerado um grande filme? Se deveria ter ganhado o Oscar? Se pretende defender que os fins justificam os meios? Se o filme faz apologia do bullying? Essas perguntas não me interessam. O que sei é que o filme foi para mim hipnotizante e conseguiu, na minha visão, compor a história de modo maravilhoso, sem perder o ritmo, sem cair em estereótipos ou forçar uma estética que tome o lugar da narrativa.

Como hoje o direito de falar bobagem foi consagrado para todos pela internet, é possível encontrar tantas opiniões sem ligação com a película que resolvi escrever uma coisa ou outra, para partilhar um pouquinho de minhas experiências e reflexões, a um só tempo dando vazão ao que guardei para mim e opondo-me aos chavões do homem-massa contemporâneo.

É bastante evidente, creio eu, que o filme é a respeito da superação humana. Mas não se trata de um elogio ao trabalho duro, numa espécie de exaltação do que alguns dizem ser a ideologia americana. De maneira distinta, se trata da história da superação do homem para que deixe de ser medíocre e venha a ser sublime. Em apertada síntese: é a história do nascimento de um gênio.

Ora, que os gênios nasçam com a criança, posso até concordar, desde que estejamos falando da potência para a genialidade, que certamente existe em poucos. Mas quem poderá sustentar que o gênio do homem sobrevém sozinho, independente de qualquer esforço consciente, de uma persistência tenaz, de uma determinação constante? Por acaso Mozart seria Mozart se o pai não o instruísse e guiasse desde a tenra idade? Aristoteles seria Aristoteles se não tivesse bebido na fonte de Platão e se esforçado por ser aluno e depois professor na academia antes de se tornar o mestre do liceu? Enfim, é uma ilusão, uma fantasia, uma ideia irrefletida acreditar que o gênio nasce assim, gênio por inteiro, sem tirar nem por, tão logo tenha saído de sua mãe. Não, para mim, o gênio nasce podendo ser gênio, e vem a sê-lo integralmente só depois, em seu segundo nascimento.

Justamente, Whiplash fala do nascimento de um gênio. Sim, é verdade que estamos falando de um gênio muito menor do que aqueles arquétipos citados no parágrafo anterior, um gênio contemporâneo, da vida atual, um gênio de uma parcela menor da música, do jazz, mas ainda assim, um gênio. Como a história termina com o mero nascimento, nem ao menos sabemos ao certo o que viria a partir de então, se a genialidade de Andrew seguirá e quais realizações ele logrará. Porém, isto também não importa. O filme não quer nos falar das grandes obras que o gênio fará, quer apenas que sejamos testemunhas de seu surgimento.

Neste caso, o nascimento é bastante interessante porque se dá em circunstâncias específicas. Não é a pobreza, não são os inimigos, não é um problema amoroso ou uma condição pessoal difícil, nenhum destes é o tema do enredo. O conflito existe com alguém em particular: Terence Fletcher, o professor do conservatório.

A personalidade de Fletcher é fascinante. Em primeiro plano, temos sua qualidade inquestionável. Em momento algum é possível vislumbrar de quem quer que seja a menor dúvida sobre a capacidade do maestro. Ele é o melhor professor, ponto final. Fletcher, contudo, é sádico e impetuoso. Humilha, ameaça e chega a agredir seus alunos se estes contrastam com a perfeição exigida. Ele pouco explica. Faz uma demanda e espera ser atendido. Se for frustrado, atacará seu aluno com toda força. Por outro lado, Fletcher também pode ser cativante, quando se expressa de modo dúbio, pois não sabemos ao certo se consiste em ironia ou em alguma humanidade que remanesce naquele inegável amor que ele tem à música. Ah, sim, não duvidem que Fletcher ama. Ele ama a música e este é um dos motivos para odiar o erro, que maculam seu campo sagrado. Como lidar com este mestre, com sua inegável competência, seu ar misterioso atraente, suas ironias e sua ira temível?

Andrew nos é apresentado com certa inocência. É o garoto que deseja ser músico, mas que apenas está sendo introduzido no mundo musical. Aos poucos, outros caracteres de Andrew vão sendo revelados. Seu orgulho crescente, que o faz desprezar seus pares e restar isolado, e que no início caminha ao lado de sua insegurança. Depois, sua fraqueza inicial, quando sai demolido após o primeiro ataque do mestre, seguida de uma súbita obstinação quase masoquista, em treinamentos ininterruptos e uma vida reclusa.

O encontro com a garota Nicole é o ponto fraco do filme. Não teria certeza para dizer que é desnecessário na história, mas nos momentos em que figura o relacionamento entre eles o filme perde bastante de sua intensidade e chega até mesmo a perder o fio de ansiedade que talvez fosse a costura da narrativa. De qualquer modo, ali temos a lembrança de que Andrew é também um garoto qualquer, com seus problemas e interesses corriqueiros, e vislumbramos seu ego inflamado, que de modo equivocado pretende se afirmar imperturbável pelas trivialidades do que é comum, no momento preciso em que anuncia tacitamente precisar do banal. Todos podem perceber que Andrew está apaixonado pela garota e precisa de seu amor e carinho, todavia, ele faz um discurso pleiteando afastamento, sob a escusa de que seu projeto de vida acabará por machucar a pobre Nicole, que é comum, e então por verdadeira caridade interrompe o namoro precocemente. Na minha impressão, Andrew está agindo não por caridade e determinação, mas por medo e imaturidade. Ele não quer que Nicole perceba suas fraquezas e a incapacidade que ele tem de lidar com Fletcher e arruma uma desculpa para preservar sua imagem, sendo insensível aos sentimentos da garota cujo amor cultivara.

Olavo de Carvalho já escreveu que o ideal é a um só tempo fonte de força e de estrutura. O ideal nos motiva a seguir um caminho e também traça o percurso que devemos seguir. Andrew tem para si o ideal dos grandes músicos, estampados nos pôsteres de sua casa. Entretanto, ao longo do filme não sabemos se Andrew é o gênio a ser revelado ou se não passa de um jovem com exaltação imaginativa, que pensa ter agora as qualidades que apenas almeja. Afinal, Andrew será um grande músico realmente ou é somente um garoto orgulhoso que se vê muito maior do que verdadeiramente é?

Esta dúvida é acompanhada por outra, a respeito de Fletcher: o professor de fato está buscando a grande música e por isto flagela seus alunos ou é apenas cruel e aproveita as deficiências dos pupilos para desaguar seu ódio e quem sabe um rancor advindo de suas próprias frustrações?

O diretor acerta em cheio aqui. Quando estamos praticamente desistindo do mistério, para confortavelmente nos fiarmos no sadismo de Fletcher, eis que sobrevém a notícia da morte de um ex-aluno e a demonstração de uma ternura muito bonita do mestre, ao exaltar seu pupilo agora falecido. Então, quem sabe, Fletcher não é tão mau assim...

A fúria do maestro, porém, retorna com toda força de imediato. O grupo vai participar de uma competição em cidade próxima e na viagem o destino interpõe a Andrew agruras inesperadas. O ônibus quebra e o deixa atrasado. Ele insiste. Corre. Chega ao local ofegante e valente. Quer seu lugar. Fletcher o desafia uma vez mais. E ele, uma vez mais, aceita o desafio. Quando está para retomar as rédeas, sofre um acidente absolutamente não previsto por quem assiste. Nossa, o garoto se machucou... Mas ele volta e sai correndo, meio cambaleante e meio insano. Ensanguentado, ele pega suas baquetas e se senta na bateria. Não há tempo para Fletcher reorganizar sua banda e a música começa ou pelo menos deveria começar. Assistimos Andrew tentar e não conseguir, sua derrota inevitável se anuncia e vai chegando aos poucos, olhamos atônitos sua persistência, que se antes era admirável, agora nos parece incompreensível. Louco, Andrew parece louco. A atuação do grupo cessa e Fletcher, após polidamente se desculpar com a plateia, numa educação reservada apenas ao público, silenciosamente dá a Andrew o recado de sua ruína. Enfurecido e pela primeira vez contra-atacando, Andrew investe contra Fletcher e daí sabemos que tudo acabou e que o futuro de Andrew não mais existe.

A historia do gênio que poderia ter sido parece terminar. Voltamos à mediocridade contemporânea. As acusações jurídicas de aluno contra professor, tão banais, quase mesquinhas, entram em cena, e Andrew consente em servir de testemunha da brutalidade de Fletcher após ser informado de que o aluno que havia morrido sofria de depressão, possivelmente ocasionada pelas humilhações que lhe infligira o professor. Que Andrew não se preocupasse, pois seria testemunha anônima.

De futura estrela ao anonimato. Adeus aos pôsteres, às aulas em conservatório, à bateria, que é guardada no armário. Andrew deixa os sonhos de grandeza e se contenta com a vida que todos levam. Serve em uma lanchonete e vê um pedinte tocando uma bateria improvisada na rua, por alguns trocados. Num repente, um cartaz informa que no bar de jazz havia naquela noite um convidado especial: Terrence Fletcher.

Andrew ingressa para ouvir seu antigo professor ao piano, tocando muito bem, nos levando novamente a cogitar se Fletcher não fora incompreendido, tão bela e delicada sua performance. O olhar do mestre quase perde Andrew por pouco, mas o relance é suficiente para que o reconheça e, ao se dirigir à saída, Andrew é chamado por Fletcher e ambos se sentam para tomar um drink e conversar.

Segue-se um diálogo ameno e interessante. Fletcher finalmente confessa seu método e seu objetivo, pois de fato queria encontrar um grande músico nos tempos atuais e somente colocando à prova seus alunos, para que se superassem, poderia ter alguma chance de descobrir um novo gênio. Fletcher não sabe que Andrew foi o responsável por sua demissão e este aproveita para perguntar se não era possível que alguém promissor desistisse diante de tamanha pressão. Negativo, responde o mestre, um verdadeiro gênio jamais desistiria. Neste ponto, se concordamos com a filosofia de Fletcher, temos que concluir que, afinal de contas, Andrew não era o gênio que pensara inicialmente.

Quando vão se despedir, Fletcher comenta que vai se apresentar como regente de um conjunto em um festival de jazz e que precisam de um baterista. Andrew aceita o convite insinuado e fica empolgado com a ideia de voltar à música.

No dia do evento, os artistas estão reunidos nos bastidores e Fletcher dá um aviso: todas as pessoas importantes do meio do jazz estão ali, gravadoras, agentes, enfim, todos aqueles que detêm algum poder no meio musical. Quem fizer uma boa exibição poderá obter um bom contrato, boas ligações, fazer seu nome, em contrapartida, quem cometer um erro poderá abandonar a carreira de músico, pois aquelas pessoas não se esquecem.

Andrew se ajeita na bateria, está ansioso, mas sorridente (vejam a cena final aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Tkh5I9w4ySY). Tocarão as obras que Andrew treinara no conservatório com Fletcher. Todos já posicionados no palco, Fletcher se aproxima de Andrew e lhe diz baixinho: “você pensa que sou idiota? Sei que foi você”. Fletcher vai ao microfone e anuncia que vão começar com uma composição nova. A câmera dá um zoom em Andrew, revelando seu desespero, e volta a Fletcher, que lhe lança um olhar maldoso. Os demais têm suas partituras, menos Andrew, que jamais ouvira aquela música.

A banda começa a tocar e Andrew não faz ideia do que fazer, tenta improvisar alguma coisa, mas destoa terrivelmente do grupo. Os outros passam a olhar atônitos para ele, e um até mesmo o interpela: o que você está fazendo? Andrew acaba com a apresentação. Após deixar o fracasso de Andrew se arrastar por um tempo para assegurar sua completa humilhação, Fletcher interrompe o grupo e se desculpa com a plateia. As luzes iluminam Andrew, e todos agora sabem quem foi o baterista lastimável. Fletcher se aproxima dele e diz que talvez ele realmente não tenha o que é preciso.

Andrew encara a plateia alquebrado, engole em seco e se retira. Corre para a saída, onde seu pai o aguarda para consolá-lo. Pelo visto, Fletcher era muito pior do que pensávamos, era um verdadeiro demônio que preparou a tortura final a Andrew como vingança. Andrew abraça seu pai de olhos fechados, entretanto, de súbito retorna ao palco. Senta à bateria novamente. Fletcher o olha e, quando ia proclamar a próxima balada, quem sabe uma nova peça contra Andrew, este começa a tocar sozinho. Andrew se vira para o instrumentista ao lado e diz que dará a deixa para que este ingresse na melodia, e a banda então se vê obrigada a tocar caravan. Fletcher, a contragosto, tem que reger o conjunto. Ele tenta ameaçar Andrew, mas este rebate tocando o prato da bateria, quase um contragolpe. Andrew não vai desistir agora, está decido a lutar até o fim, e vai mostrar todas suas armas. Não tem mais medo. Aceita sua condição de hostilizado. Ele acredita em si. Ele sabe que é bom o bastante. O desempenho do grupo e de Andrew é magnífico.

Durante o espetáculo, vemos Fletcher se render aos talentos de Andrew, ele sorri e orquestra o diálogo entre a banda e a bateria. Fletcher faz seu gesto típico, punho cerrado da mão direita, para indicar o fim da música, mas Andrew não pára de tocar... Fletcher olha consternado. Andrew segue numa exibição solo. Fletcher vai até ele, mas agora é diferente. O mestre não vem para ameaçá-lo, para acusá-lo, para puni-lo. Ele simplesmente não compreende, está surpreendido e pergunta: “Andrew, o que você está fazendo, cara?”. Andrew responde que dará a deixa para ele e segue tocando. Fletcher assente com a cabeça. Este ponto é importantíssimo. É a primeira vez que Fletcher é desobedecido (pois Andrew não parou de tocar com o restante), mas não reage negativamente, e se dobra à vontade de Andrew, reconhecendo que a situação, portanto, é outra.

Por um momento, o som que Andrew toca desaparece e ouvimos um barulho de vento ou de mar, como se Andrew estivesse entrando em outra esfera, fora do tempo, fora daquele lugar, algo está acontecendo, algo grandioso, quase místico.

A câmera corta para o pai de Andrew, que assiste a tudo por uma abertura na porta dos bastidores. Sua expressão vai de incompreensão a atônita e depois a deslumbramento, como se estivesse vendo seu filho se tornar algo diferente, que inicialmente não entende, depois o assusta e finalmente o encanta.

Fletcher volta à bateria com Andrew, para ajudá-lo. Ajeita um dos pratos. Assente com a cabeça, confirmando e incentivando. Sim, Andrew, muito bem, eu sei o que você está fazendo. Ele orienta Andrew, que segue a direção indicada pelo mestre, diminui o ritmo lentamente, depois o eleva, indicando o clímax. Fletcher faz um gesto vibrante com as mãos, indicando a força do baterista, e também algo de admiração; vai apontando a Andrew as variações, como que tocando junto com ele, ambos em sintonia, o tempo todo Fletcher assentindo com a cabeça. A cena abre para mostrar um dos instrumentistas, ao lado de Andrew, estupefato com a performance do surpreendente rapaz. Fletcher volta ao centro para reger a orquestra e até mesmo se despe do casaco para ficar com os braços livres, tamanha a excitação e a eletricidade daquele instante. Ele prepara o conjunto para o gran finale. Os olhares de Andrew e Fletcher se encontram. Andrew olha para o mestre a aguarda uma reação. Fletcher está com o olhar maravilhado e sorri para Andrew, que sorri de volta ante a aprovação. Fletcher dá o sinal para o final, em tutti orquestral, e com sua mão esquerda aponta para Andrew, mostrando a todos seu aluno, sua descoberta, que agora nasceu.

A busca deu frutos. A tensão foi resolvida. Os contrários se dissolveram. É como se o gênio de Andrew redimisse a brutalidade de Fletcher. É o sublime como redenção do violento. Parece-me que de alguma forma Fletcher ansiava desesperadamente por este instante de epifania. Toda sua sordidez, sua grosseria enraizada, seus pecados, enfim, poderiam ser diluídos acaso lhe sobreviesse um gênio, um pupilo exitoso, irrompendo a mediocridade e galgando as alturas do que, na sua perfeição, torna irrelevantes as deformidades periféricas. No fim, é Andrew que assume o papel de salvar Fletcher. Se olharmos para o início da história, tudo isto fica claro, mas somente porque Andrew teve a força, a coragem e a graça de rebentar as amarras do medo para encontrar o que é ilustre. Se Andrew tivesse desistido, Fletcher teria mais uma vítima na sua conta. Mas não. Andrew suportou o sofrimento que Fletcher lhe impôs e, por assim fazer, conseguiu despertar naquele uma natureza que estava recôndita muito profundamente. A entrega de Andrew é irresistível para Fletcher, que não apenas se curva ao brilhantismo do aluno, mas recebe deste o perdão de que carecia, e pode então retribuir o ato, formando um encontro que completa o quadro e coroa a harmonia fugidia, agora presente, e que permite aos então combatentes repousar e contemplar juntos, em triunfo e com amizade.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

A arte de ser cristão



“Posso estar enganado, mas a mim me parece que toda a arte de ser cristão repousa no equilíbrio tensional entre a fidelidade intransigente ao Credo dos apóstolos, à tradição, à Igreja, e aquela modéstia de pretensões que advém de uma compreensão realista das fraquezas humanas (as nossas próprias em primeiro lugar), da complexidade das situações concretas e da mutabilidade dos tempos. O cristão não é nem um reformador do Credo nem um doutrinário estufado de regras abstratas, disposto a impor ao outros, a ferro e fogo, um fardo que ele mesmo não suporta carregar. O mediador entre os dois extremos é o próprio Cristo, que pela ação do Espirito Santo guia sutilmente os nossos passos numa floresta de enigmas, perigos, tentações e ambiguidades.”   (Olavo de Carvalho) (Fonte: http://www.ocampones.com/?p=9960)

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Fundação





O
 muro que se estende sobre a paisagem que avisto da janela me interroga. Um muro com curvas familiares. A janela também, muito familiar. A ardósia escolhida como piso há alguns anos atrás, a vista do armazém ao fundo, a Igreja em que fui batizado. Brotam destes prédios alicerces invisíveis que rompem a linha do horizonte e do tempo. As horas continuam incessantes, porém sigo em meu ritmo e descubro que tenho margem. Não me deixo inundar pelo embalo indiferente dos segundos. Tenho a minha história, que corre pelo leito rasgado no chão em que nasci. Longe da aparência agitada e cosmopolita das grandes cidades, a vida se perfaz cotidiana, nos bairros, nas ruas, nas casas, tomadas pelos passos dos que ali moram. Em nenhuma outra estação pode um homem se reconciliar. Ainda que a inquietude o leve à aventura de correr o mundo, muitas vezes a longa jornada só termina quando, finalmente, ao encontrar uma terra amável em que decide ficar, surpreende-se ao reconhecer tão-somente a sua pátria. Diz-me o muro: sulca o teu caminho, crava a tua herança. Sem margem trasbordas no vazio. Marca, entalha, deixa rastro. Estes são os vestígios que te reconduzirão, na confusão do espaço e do tempo, até as raízes que te geraram. Para que sempre possas retornar a elas, como o tropeiro no entroncamento de estradas. Para ti sempre haverá um porto seguro aonde chegar e donde partir. Um misterioso lugar, a que os sábios dão o nome de lar.


terça-feira, 1 de julho de 2014

Johan Huizinga, Jane Austen e eu


Quando o mundo era cinco séculos mais jovem, tudo o que acontecia na vida era dotado de contornos bem mais nítidos que os de hoje. Entre a dor e a alegria, o infortúnio e a felicidade, a distância parecia maior do que para nós; tudo que o homem vivia ainda possuía aquele teor imediato e absoluto que no mundo de hoje só se observa nos arroubos infantis de felicidade e dor. Cada momento da vida, cada feito era cercado de formas enfáticas e expressivas, realçado pela solenidade de um estilo de vida rígido e perene. Os grandes fatos da vida – o nascimento, o matrimônio, a morte – eram envoltos, por obra dos sacramentos, no esplendor do mistério divino. Mas também os menores – uma viagem, uma tarefa, uma visita – eram acompanhados de mil bênçãos, cerimônias, ditos e convenções” Johan HuizingaO outono da idade média.
Este primeiro parágrafo do Outono da idade média, de Huizinga, soa como uma grande verdade que, no fundo, já conhecíamos e que, quando expressa pelo autor, acaba com uma ansiedade – embora esquecida, recôndita em algum lugar – por não conseguirmos dizer aquela ideia ou aquele sentimento fugidios, os quais passam por nosso ser sem que os possamos apreender.
Nenhuma novidade é dizer que a morte da forma no cotidiano caracteriza nosso tempo. Todavia, Huizinga coloca esta questão acentuando outros aspectos. Na verdade, o autor escreve no início do século XX, tendo por objeto de estudo as sociedades na área dos Países Baixos e França, aproximadamente, dos séculos XIV e XV. Isto torna a observação do autor ainda mais interessante, vez que então somos inclinados à conclusão de que a perda da forma no cotidiano vem desde tempos remotos, e já estava presente nas reflexões dos homens no início do século passado.
O nascimento, o matrimônio, a morte, todos aqueles fatos marcantes e significantes da vida possuem hoje em dia características tão díspares às daquela época que acaba sendo difícil encarar as solenidades então existentes com naturalidade.
Sem qualquer pretensão de examinar todo o tema, ou de salientar o aspecto mais importante, queria apenas compartilhar uma ou outra meditação que fiz sobre isso.
Chama-me a atenção que, nesta perda da forma, os aspectos que distinguem as situações da vida vão sendo aplainados, de maneira que tudo aquilo que marcava a diferença específica do momento é extirpado, e por consequência uma equiparação empobrecedora vai tomando os espaços. Daí porque, como já comentamos em outros textos, o casamento vira carnaval, a formatura vira carnaval, as datas comemorativas viram carnaval e o carnaval mesmo vira sei lá que misto de aberrações, promiscuidade e futilidades pretensamente culturais.
De bloco a bloco, de batida em batida, os acontecimentos biográficos perdem sentido, substituídos por entregas hedonistas pueris, a troca de alianças perdeu lugar para o confete.
Ainda não li as obras de Jane Austen. Mas assisti, com muito gosto, as produções da BBC que versaram em série Orgulho e preconceito, Emma e Razão e Sensibilidade.
Essas histórias ilustraram de modo contrastante a perda da forma. Diferentemente do que vemos atualmente, nenhum acontecimento de proporções históricas, apocalípticas ou fatais existe naqueles romances. É nos eventos considerados pequenos por nossa geração que surgem narrativas maravilhosas, elegantes e sensíveis, que revelam dilemas morais universais, resolvidos com inteligência e beleza pela escritora.
Os personagens amam e possuem intimidade, às vezes até mais profunda do que se tem hoje, mas não abrem mão das formas de tratamento, da cordialidade, dos minúsculos atos solenes que organizam os relacionamentos humanos. O marido e a esposa se chamam por sra. e sr., sem que isto signifique cumplicidade a menor. Pelo contrário, é justamente este contorno estruturado pela educação que permite a tessitura de uma comunicação altamente límpida e que avança no assunto, sem se perder em desencontros. A forma, ao invés de aprisionar, liberta.
Também não existe ali uma exaltação de todo e qualquer costume. Trata-se com bastante ironia – uma ironia pura, se assim pudermos qualificar – certas condutas equivocadas, realizando-se a crítica dos costumes em bom-tom.
Vejamos o trecho inicial de Orgulho e preconceito:
É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de uma esposa.
Por pouco que os sentimentos ou as opiniões de tal homem sejam conhecidos ao se fixar numa nova localidade, essa verdade se encontra de tal modo impressa nos espíritos das famílias vizinhas que o rapaz é desde logo considerado a propriedade legítima de uma das suas filhas.
_ Caro Mr. Bennet – disse-lhe um dia a sua esposa –, já ouviu dizer que Netherfield Park foi alugado, afinal?
Mr. Bennet respondeu que não sabia.
_ Pois foi – assegurou ela. – Mrs. Long acabou de sair daqui e me contou tudo.
Mr. Bennet não respondeu.
_ Afinal, não deseja saber que é o locatário? – gritou a mulher, impacientemente.
_ Você é quem está querendo me dizer e eu não faço nenhuma objeção a isso.
Esse convite foi suficiente”.
Em seguida, Mrs. Bennet conta que um rico homem solteiro residirá na propriedade, e tenta dissuadir Mr. Bennet a prestar-lhe uma visita, uma circunstância para abrir uma oportunidade, a fim de que o novo morador conheça e, ao final, tome a mão de uma de suas filhas. Mr. Bennet, entretanto, ironiza a ideia de sua esposa, mas diz que escreverá ao cobiçado morador, adiantando que, de suas filhas, Lizzy mereceria que fosse feito um elogio a mais em relação às irmãs.
“_ Nenhuma delas tem muito o que as recomende – respondeu Mr. Bennet. _ São tolas e ignorantes como as outras moças. Mas Lizzy é realmente um pouco mais viva do que as irmãs.
_ Como pode falar mal assim dos próprios filhos, Mr. Bennet? Você se compraz em aborrecer-me; não tem nenhuma pena dos meus pobres nervos.
_ Está enganada, minha cara. Tenho muito respeito pelos seus nervos. São meus velhos amigos. Venho escutando você falar a respeito deles com grande consideração, pelo menos durante estes últimos vinte anos.
_ Ah, você não sabe o que eu sofro!
_ Espero que você se restabeleça e viva bastante tempo para ver muitos rapazes com quatro mil libras anuais de rendimento se instalarem na vizinhança.
_ Pouco nos adiantará que venham vinte deles se você se recusar a visitá-los.
_ Pode ficar certa, minha querida, de que quando chegarem os vinte eu os visitarei a todos.
Mr. Bennet era um misto tão curioso de vivacidade, humor sarcástico, reserva e capricho que a experiência de vinte e três anos juntos tinha sido insuficiente para que a sua esposa lhe conhecesse o caráter. O espírito dela era menos difícil de compreender; tratava-se de uma senhora dotada de inteligência medíocre, pouca cultura e gênio instável. Quando se aborrecia imaginava que estava nervosa. A única preocupação de sua vida era casar as filhas. Seu consolo, fazer visitas e saber das novidades”.

Um excerto maravilhoso, não é mesmo? A crítica não é atenuada, mas é feita com elegância, em um diálogo que ilustra praticamente toda a vida familiar naqueles tempos, naqueles lugares.
Eu não conseguiria, sem passar por ridículo e ser comicamente artificial, chamar minha esposa de Sra. Xavier. Vou tentar caprichar um pouco mais na minha educação, na elaboração completa dos pensamentos e de minhas comunicações, não desleixar os cumprimentos, recordar-me das distâncias impessoais volta e meia necessárias. Não posso ser um homem de outro século, mas desejaria muito incorporar alguma coisa daquela sabedoria e daquela beleza, daquela forma que se perdeu e que devemos encontrar.

quarta-feira, 21 de maio de 2014




“Uma das qualidades singulares e intransferíveis da religião cristã é poder conduzir e consolar quem quer que, em qualquer circunstância, sob qualquer pretexto, a ela recorra. Se há remédio para o passado, ela o prescreve e aplica, vivifica e ilumina, para colocá-lo em prática, custe o que custar; se não há, ela acha um jeito de tornar real e efetivo o que o provérbio diz, e ‘da necessidade faz virtude’. Ensina a continuar com sabedoria o que começou com leviandade; incita a abraçar livremente o que foi obra da tirania; e tolda uma escolha temerária, porém irrevogável, de toda a santidade, de toda a sensatez, e, digamo-lo francamente, de todas as alegrias da vocação. É um caminho tal que, se o homem passar por ele, e nele andar alguns passos, vindo de quaisquer labirintos, de precipícios quaisquer, pode caminhar com segurança e boa vontade doravante, e chegar ledo a um ledo fim.” (“Os noivos”, Alessandro Manzoni)



terça-feira, 22 de abril de 2014

Olavo de Carvalho, transcrição de trecho da aula IV do Curso Raízes da Modernidade

[...] Com a progressiva formação da sociedade moderna, como sociedade técnica, industrial, altamente burocratizada, na qual as relações naturais vão sendo cada vez mais substituídas por relações legais, o sentimento de participação comunitária das pessoas vai desaparecendo. [...] Na medida em que o conjunto das relações sociais era [na Idade Média] ao mesmo tempo constituído de relações pessoais diretas, então não existia um abismo entre o indivíduo e a sociedade. Todas as emoções eram compreensíveis, todas as experiências humanas eram transparentes, mesmo aquilo que você odiava não lhe era incompreensível. [...] Ninguém é estranho, as pessoas são diferentes, mas não estranhas. [...] A medida em que estas relações sociais baseadas na pessoa humana direta vão sendo substituídas por relações legais e burocratizadas, tudo muda completamente. Por exemplo, o funcionário que é obrigado a exercer a sua função implacavelmente a despeito de todos os interesses e emoções pessoais envolvidas , não terá tempo de participar das emoções das outras pessoas, pois senão ele não vai aguentar. Isto significa que ele tem que tomar decisões cada vez mais impessoais. Como se o regulamento burocrático fosse uma realidade e as pessoas envolvidas não fossem realidades. Por exemplo, a cobrança de uma dívida. Se um sujeito fosse cobrar uma dívida na Idade Média, ele até poderia ser implacável na sua cobrança, mas ele entendia perfeitamente a situação do outro. Não lhe era completamente alheio. Mas, numa situação já definida pela organização burocrática da convivência, as emoções do outro já não interessam, porque não é uma pessoa, é uma ficha, um número no computador. Isto quer dizer que você pode agir de maneira brutal sobre as pessoas sem ter nenhum sentimento brutal. Na I. Média o cobrador de uma dívida podia até bater ou matar o devedor, mas ele teria que fazer isso pessoalmente. E ele não poderia fazer isso sem estar com raiva do outro. Mas na situação moderna você pode destruir vidas inteiras por uma providência administrativa, tomada com a maior neutralidade, com a maior tranquilidade, sem pensar nas consequências. [...] Por exemplo, certas operações bancárias como estas feitas por grandes investidores, que do dia para noite desgraçam milhões de pessoas, que eles não conhecem, contra as quais ele não têm absolutamente nada e que se pudessem, talvez até ajudariam. Isto quer dizer que entre os seres humanos se interpõe toda uma estrutura de determinações que não tem nada a ver com as pessoas envolvidas, que são literalmente impessoais. Mas este elemento impessoal é o que constitui a nossa experiência cotidiana quase que o tempo todo. Acontece que o mundo da experiência direta humana, o mundo das emoções humanas diretas não tem lugar na estrutura administrativa. E se não tem lugar não pode ser objeto de uma discussão pública, não tem como ser discutido. Só é possível discutir aquilo que está enquadrado nos conceitos gerais, nos dados estatísticos, etc.  Então, na mesma medida em que a convivência na sociedade moderna se despersonaliza, aparece como refúgio a convivência pessoal direta. Mas vivida em termos que não podem corresponder inteiramente às categorias sociais admitidas. Isso que dizer que não havendo mais aquele sentimento de participação comunitário no qual as emoções dos personagens envolvidos são translúcidas para todos e todos sabem o que todo mundo está sentindo, não sendo possível isto, existe como compensação a necessidade de uma aproximação maior entre as pessoas fora do quadro social admitido e legítimo. Então, aparece, por exemplo, a busca do amor pessoal numa intensidade e quantidade que as épocas anteriores desconheceram. Há necessidade de mais experiência amorosa, mais vivência amorosa na situação moderna do que em qualquer outra época. E isto explica “sexo livre”, adultérios, movimento gay, etc. [...] Se vermos o tempo que o cidadão moderno dedica a pensar em sexo e comparar isso com o cidadão da I. Média, chegaríamos a conclusão de que o cidadão é tarado, é louco, só pensa nisso. Se pensarmos que oitenta por cento do movimento da internet são sites de sacanagem, veremos que se criou um monstruoso aparato técnico e ele é usado por pessoas desesperadas, que buscam ali um contato carnal por via eletrônica. Isto é o extremo do desespero. Os indivíduos não estão aguentando viver dentro daquele quadro de impessoalidade mecânica e burocrática e elas querem um alívio para isso. É inteiramente compreensível. Quando as pessoas imbuídas de um sistema moral mais antigo, por ex, são cristãos, se voltam contra isso com uma linguagem condenatória, estão fazendo buraco n´água. O que pregações morais podem fazer contra uma necessidade premente criada pelo próprio artificialismo da situação? [...] De certo modo isto se tornou um dos poucos canais onde as pessoas podem ter uma experiência pessoal efetiva, real, podem se sentir vivas. As pessoas buscam refúgio na convivência pessoal. Porque na sociedade, no trabalho, no exercício das funções públicas, não são pessoas, são apenas funções. Por exemplo, vamos supor uma empresa grande com 20.000 empregados. É possível dentro de uma circunstância dessas prestar atenção nos problemas de cada um? [...] De fato, a tendência geral da sociedade moderna é de tratar os indivíduos apenas pela sua função e não como individualidades concretas e diferenciadas. A pressão das necessidades emocionais humanas, não podendo ser descarregada na vida social pública oficial, ela tem que encontrar outros canais. Um canal são as psicoterapias, grupos de psicoterapias. Se você observar as psicoterapias de grupo você vai observar que a maioria das pessoas não têm nenhum problema clínico, elas simplesmente não tinham com quem conversar. [...] John Carrow, no seu livro sobre o humanismo, mostra que em grande parte a vida real das pessoas fugiu para o mundo dos sonhos. Ou seja, o indivíduo só é ele mesmo no instante em que ele está dormindo. Ali ele diz o que realmente quer, se comporta como ele mesmo e depois acorda, veste o uniforme e volta a ser o mesmo tipo impessoal que era na véspera. Este refluxo da vida interior humana para o mundo dos sonhos já começa no Século XIX e é anterior ao surgimento da psicanálise. Então me pergunto se Dr Freud teria a idéia de procurar a realidade da alma no mundo dos sonhos se ela não estivesse realmente lá? Ou seja, se ela não tivesse sido empurrada para lá por fatores sociais que não tem nada a ver com a psicanálise? Imaginemos a quantidade de tempo que se concedeu no século XX a análise de sonhos. [...] Numa época anterior, ainda na Renascença ou na I. Média, se se dissesse que apareceria uma profissão em que o sujeito fica o tempo todo falando de sonhos, pareceria a coisa mais esquisita do mundo. Então vemos a fuga para a intimidade, a fuga para os sonhos, a fuga para os contatos através de internet, a fuga para a pornografia, a fuga para o sexo livre etc. [...]. Miguel Reale, em seu livro Introdução a Ciência do Direito, inventa um termo horroroso mas que descreve bem, que é o da progressiva jurisfação da vida social. Ou seja, tudo vai saindo do campo das relações naturais e entrando no campo das relações legais. E este processo é absolutamente avassalador, não tem limite. Um dos elementos fundamentais da democracia moderna é a existência de um poder legislativo soberano em relação aos outros poderes e cujas decisões literalmente tem poder de lei sobre os outros.  O que representa haver em cada nação uma corporação de quinhentas, seiscentas pessoas que estão fazendo leis o tempo todo? Quantas leis são feitas em um ano? Vinte, trinta mil? E estas leis vão regulando cada vez mais coisas que antes não eram reguladas. [...] E nós nos acostumamos de tal modo a tantas proibições que elas nos parecem, muitas vezes, a própria garantia de nossos direitos e nossas liberdades, quando na verdade elas são uma tremenda restrição. [...] A importância dos documentos, por exemplo, foi crescendo cada vez mais, até chegar ao ponto de terem mais realidade do que a própria realidade (lembrar o romance de Luigi Pirandello, O Falecido Matias Pascal). Nos acostumamos te tal modo com isso que a posse dos documentos, de certo modo, reforça a nossa identidade, mas é uma identidade que não existe evidentemente. Como é possível o Estado me dizer quem eu sou? Se a identidade oficialmente admitida começa a prevalecer sobre os dados da experiência direta, a consequência disso é imediata. Começa-se a imaginar que a sua identidade é aquela que a sociedade te deu e não aquela que você efetivamente tem por natureza. Automaticamente, se torna difícil conceber que uma pessoa humana seja algo por si mesma e sem o reconhecimento da sociedade. O indivíduo só adquire o estatuto humano pela sociedade e a cultura que lhe conferiram a identidade (este é, alías, o argumento do movimento abortista). É uma idéia falsa, mas se tornou irresistível porque ela não traduz a natureza das coisas, mas traduz a situação efetiva na qual nós vivemos na sociedade moderna. Por isso, é muito difícil argumentar contra o aborto para pessoas que não enxergam a sua identidade em si mesmas, mas naquela figura projetiva que a sociedade colou sobre elas. [...] Por isso, um sentimento de revolta, de ódio contra essas aberrações da sociedade moderna, frequentemente, não se justifica, porque as pessoas estão pensando e acreditando não naquilo que elas deveriam pensar e acreditar, mas naquilo que, de certo modo, são forçadas a acreditar. Não se pode dizer que elas têm culpa disso. Elas não têm idéia de como entraram naquilo. Se uma convicção do sujeito está baseada no próprio sentimento de identidade que ele tem,  não adiante eu mudar a ideia sem mudar a identidade, e mudar a identidade de uma pessoa não é fácil. Fazer o indivíduo perceber que ele tem uma identidade inerente, inata e, por assim dizer, eterna, se ele está persuadido de que ele é um papel social determinado pelo estado, é muito difícil. Este mundo, esta superestrutura burocrática que se sobrepôs às individualidades concretas ela retroage sobre a individualidade e cria novos tipos de individualidade que antes não existiam.  Por exemplo, o funcionário impessoal, não existe isso em parte alguma da história. [...] Os regimes totalitários, por exemplo, não são senão o aperfeiçoamento extremo da burocratização, onde todas as pessoas são conhecidas não por aquilo que elas são na realidade, mas por uma posição social que os outros lhe atribuem, frequentemente, uma posição imaginária. [...] O genocídio é a expressão natural da despersonalização. [...] É sempre um crime de lógica e não de paixão (Albert Camus). Ninguém vai matar 70 milhões de pessoas por que está com raiva delas. Está matando apenas um número, uma entidade abstrata. E isso vai se tornando cada vez mais fácil, porque vai se criando os meios técnicos de se cometer violência sem que o impacto dela retroaja sobre a sua alma. Por exemplo, é possível bombardear todo um acampamento assistindo tudo por satélite. Onde aparecerão algumas figurinhas sendo bombardeadas, como num vídeo game. Não parece realidade. É um efeito desrealizante. Este efeito chega ao ponto em que alguns filmes de ficção, em que assistimos batalhas, parecem mais reais do que um documentário sobre batalhas. [...] Este processo de desrealização e de dessubstancialização da individualidade humana e de substituição por uma entidade abstrata criada legalmente é sem dúvida uma das raízes da modernidade.