terça-feira, 1 de julho de 2014

Johan Huizinga, Jane Austen e eu


Quando o mundo era cinco séculos mais jovem, tudo o que acontecia na vida era dotado de contornos bem mais nítidos que os de hoje. Entre a dor e a alegria, o infortúnio e a felicidade, a distância parecia maior do que para nós; tudo que o homem vivia ainda possuía aquele teor imediato e absoluto que no mundo de hoje só se observa nos arroubos infantis de felicidade e dor. Cada momento da vida, cada feito era cercado de formas enfáticas e expressivas, realçado pela solenidade de um estilo de vida rígido e perene. Os grandes fatos da vida – o nascimento, o matrimônio, a morte – eram envoltos, por obra dos sacramentos, no esplendor do mistério divino. Mas também os menores – uma viagem, uma tarefa, uma visita – eram acompanhados de mil bênçãos, cerimônias, ditos e convenções” Johan HuizingaO outono da idade média.
Este primeiro parágrafo do Outono da idade média, de Huizinga, soa como uma grande verdade que, no fundo, já conhecíamos e que, quando expressa pelo autor, acaba com uma ansiedade – embora esquecida, recôndita em algum lugar – por não conseguirmos dizer aquela ideia ou aquele sentimento fugidios, os quais passam por nosso ser sem que os possamos apreender.
Nenhuma novidade é dizer que a morte da forma no cotidiano caracteriza nosso tempo. Todavia, Huizinga coloca esta questão acentuando outros aspectos. Na verdade, o autor escreve no início do século XX, tendo por objeto de estudo as sociedades na área dos Países Baixos e França, aproximadamente, dos séculos XIV e XV. Isto torna a observação do autor ainda mais interessante, vez que então somos inclinados à conclusão de que a perda da forma no cotidiano vem desde tempos remotos, e já estava presente nas reflexões dos homens no início do século passado.
O nascimento, o matrimônio, a morte, todos aqueles fatos marcantes e significantes da vida possuem hoje em dia características tão díspares às daquela época que acaba sendo difícil encarar as solenidades então existentes com naturalidade.
Sem qualquer pretensão de examinar todo o tema, ou de salientar o aspecto mais importante, queria apenas compartilhar uma ou outra meditação que fiz sobre isso.
Chama-me a atenção que, nesta perda da forma, os aspectos que distinguem as situações da vida vão sendo aplainados, de maneira que tudo aquilo que marcava a diferença específica do momento é extirpado, e por consequência uma equiparação empobrecedora vai tomando os espaços. Daí porque, como já comentamos em outros textos, o casamento vira carnaval, a formatura vira carnaval, as datas comemorativas viram carnaval e o carnaval mesmo vira sei lá que misto de aberrações, promiscuidade e futilidades pretensamente culturais.
De bloco a bloco, de batida em batida, os acontecimentos biográficos perdem sentido, substituídos por entregas hedonistas pueris, a troca de alianças perdeu lugar para o confete.
Ainda não li as obras de Jane Austen. Mas assisti, com muito gosto, as produções da BBC que versaram em série Orgulho e preconceito, Emma e Razão e Sensibilidade.
Essas histórias ilustraram de modo contrastante a perda da forma. Diferentemente do que vemos atualmente, nenhum acontecimento de proporções históricas, apocalípticas ou fatais existe naqueles romances. É nos eventos considerados pequenos por nossa geração que surgem narrativas maravilhosas, elegantes e sensíveis, que revelam dilemas morais universais, resolvidos com inteligência e beleza pela escritora.
Os personagens amam e possuem intimidade, às vezes até mais profunda do que se tem hoje, mas não abrem mão das formas de tratamento, da cordialidade, dos minúsculos atos solenes que organizam os relacionamentos humanos. O marido e a esposa se chamam por sra. e sr., sem que isto signifique cumplicidade a menor. Pelo contrário, é justamente este contorno estruturado pela educação que permite a tessitura de uma comunicação altamente límpida e que avança no assunto, sem se perder em desencontros. A forma, ao invés de aprisionar, liberta.
Também não existe ali uma exaltação de todo e qualquer costume. Trata-se com bastante ironia – uma ironia pura, se assim pudermos qualificar – certas condutas equivocadas, realizando-se a crítica dos costumes em bom-tom.
Vejamos o trecho inicial de Orgulho e preconceito:
É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de uma esposa.
Por pouco que os sentimentos ou as opiniões de tal homem sejam conhecidos ao se fixar numa nova localidade, essa verdade se encontra de tal modo impressa nos espíritos das famílias vizinhas que o rapaz é desde logo considerado a propriedade legítima de uma das suas filhas.
_ Caro Mr. Bennet – disse-lhe um dia a sua esposa –, já ouviu dizer que Netherfield Park foi alugado, afinal?
Mr. Bennet respondeu que não sabia.
_ Pois foi – assegurou ela. – Mrs. Long acabou de sair daqui e me contou tudo.
Mr. Bennet não respondeu.
_ Afinal, não deseja saber que é o locatário? – gritou a mulher, impacientemente.
_ Você é quem está querendo me dizer e eu não faço nenhuma objeção a isso.
Esse convite foi suficiente”.
Em seguida, Mrs. Bennet conta que um rico homem solteiro residirá na propriedade, e tenta dissuadir Mr. Bennet a prestar-lhe uma visita, uma circunstância para abrir uma oportunidade, a fim de que o novo morador conheça e, ao final, tome a mão de uma de suas filhas. Mr. Bennet, entretanto, ironiza a ideia de sua esposa, mas diz que escreverá ao cobiçado morador, adiantando que, de suas filhas, Lizzy mereceria que fosse feito um elogio a mais em relação às irmãs.
“_ Nenhuma delas tem muito o que as recomende – respondeu Mr. Bennet. _ São tolas e ignorantes como as outras moças. Mas Lizzy é realmente um pouco mais viva do que as irmãs.
_ Como pode falar mal assim dos próprios filhos, Mr. Bennet? Você se compraz em aborrecer-me; não tem nenhuma pena dos meus pobres nervos.
_ Está enganada, minha cara. Tenho muito respeito pelos seus nervos. São meus velhos amigos. Venho escutando você falar a respeito deles com grande consideração, pelo menos durante estes últimos vinte anos.
_ Ah, você não sabe o que eu sofro!
_ Espero que você se restabeleça e viva bastante tempo para ver muitos rapazes com quatro mil libras anuais de rendimento se instalarem na vizinhança.
_ Pouco nos adiantará que venham vinte deles se você se recusar a visitá-los.
_ Pode ficar certa, minha querida, de que quando chegarem os vinte eu os visitarei a todos.
Mr. Bennet era um misto tão curioso de vivacidade, humor sarcástico, reserva e capricho que a experiência de vinte e três anos juntos tinha sido insuficiente para que a sua esposa lhe conhecesse o caráter. O espírito dela era menos difícil de compreender; tratava-se de uma senhora dotada de inteligência medíocre, pouca cultura e gênio instável. Quando se aborrecia imaginava que estava nervosa. A única preocupação de sua vida era casar as filhas. Seu consolo, fazer visitas e saber das novidades”.

Um excerto maravilhoso, não é mesmo? A crítica não é atenuada, mas é feita com elegância, em um diálogo que ilustra praticamente toda a vida familiar naqueles tempos, naqueles lugares.
Eu não conseguiria, sem passar por ridículo e ser comicamente artificial, chamar minha esposa de Sra. Xavier. Vou tentar caprichar um pouco mais na minha educação, na elaboração completa dos pensamentos e de minhas comunicações, não desleixar os cumprimentos, recordar-me das distâncias impessoais volta e meia necessárias. Não posso ser um homem de outro século, mas desejaria muito incorporar alguma coisa daquela sabedoria e daquela beleza, daquela forma que se perdeu e que devemos encontrar.

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