quarta-feira, 27 de agosto de 2014

A arte de ser cristão



“Posso estar enganado, mas a mim me parece que toda a arte de ser cristão repousa no equilíbrio tensional entre a fidelidade intransigente ao Credo dos apóstolos, à tradição, à Igreja, e aquela modéstia de pretensões que advém de uma compreensão realista das fraquezas humanas (as nossas próprias em primeiro lugar), da complexidade das situações concretas e da mutabilidade dos tempos. O cristão não é nem um reformador do Credo nem um doutrinário estufado de regras abstratas, disposto a impor ao outros, a ferro e fogo, um fardo que ele mesmo não suporta carregar. O mediador entre os dois extremos é o próprio Cristo, que pela ação do Espirito Santo guia sutilmente os nossos passos numa floresta de enigmas, perigos, tentações e ambiguidades.”   (Olavo de Carvalho) (Fonte: http://www.ocampones.com/?p=9960)

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Fundação





O
 muro que se estende sobre a paisagem que avisto da janela me interroga. Um muro com curvas familiares. A janela também, muito familiar. A ardósia escolhida como piso há alguns anos atrás, a vista do armazém ao fundo, a Igreja em que fui batizado. Brotam destes prédios alicerces invisíveis que rompem a linha do horizonte e do tempo. As horas continuam incessantes, porém sigo em meu ritmo e descubro que tenho margem. Não me deixo inundar pelo embalo indiferente dos segundos. Tenho a minha história, que corre pelo leito rasgado no chão em que nasci. Longe da aparência agitada e cosmopolita das grandes cidades, a vida se perfaz cotidiana, nos bairros, nas ruas, nas casas, tomadas pelos passos dos que ali moram. Em nenhuma outra estação pode um homem se reconciliar. Ainda que a inquietude o leve à aventura de correr o mundo, muitas vezes a longa jornada só termina quando, finalmente, ao encontrar uma terra amável em que decide ficar, surpreende-se ao reconhecer tão-somente a sua pátria. Diz-me o muro: sulca o teu caminho, crava a tua herança. Sem margem trasbordas no vazio. Marca, entalha, deixa rastro. Estes são os vestígios que te reconduzirão, na confusão do espaço e do tempo, até as raízes que te geraram. Para que sempre possas retornar a elas, como o tropeiro no entroncamento de estradas. Para ti sempre haverá um porto seguro aonde chegar e donde partir. Um misterioso lugar, a que os sábios dão o nome de lar.


terça-feira, 1 de julho de 2014

Johan Huizinga, Jane Austen e eu


Quando o mundo era cinco séculos mais jovem, tudo o que acontecia na vida era dotado de contornos bem mais nítidos que os de hoje. Entre a dor e a alegria, o infortúnio e a felicidade, a distância parecia maior do que para nós; tudo que o homem vivia ainda possuía aquele teor imediato e absoluto que no mundo de hoje só se observa nos arroubos infantis de felicidade e dor. Cada momento da vida, cada feito era cercado de formas enfáticas e expressivas, realçado pela solenidade de um estilo de vida rígido e perene. Os grandes fatos da vida – o nascimento, o matrimônio, a morte – eram envoltos, por obra dos sacramentos, no esplendor do mistério divino. Mas também os menores – uma viagem, uma tarefa, uma visita – eram acompanhados de mil bênçãos, cerimônias, ditos e convenções” Johan HuizingaO outono da idade média.
Este primeiro parágrafo do Outono da idade média, de Huizinga, soa como uma grande verdade que, no fundo, já conhecíamos e que, quando expressa pelo autor, acaba com uma ansiedade – embora esquecida, recôndita em algum lugar – por não conseguirmos dizer aquela ideia ou aquele sentimento fugidios, os quais passam por nosso ser sem que os possamos apreender.
Nenhuma novidade é dizer que a morte da forma no cotidiano caracteriza nosso tempo. Todavia, Huizinga coloca esta questão acentuando outros aspectos. Na verdade, o autor escreve no início do século XX, tendo por objeto de estudo as sociedades na área dos Países Baixos e França, aproximadamente, dos séculos XIV e XV. Isto torna a observação do autor ainda mais interessante, vez que então somos inclinados à conclusão de que a perda da forma no cotidiano vem desde tempos remotos, e já estava presente nas reflexões dos homens no início do século passado.
O nascimento, o matrimônio, a morte, todos aqueles fatos marcantes e significantes da vida possuem hoje em dia características tão díspares às daquela época que acaba sendo difícil encarar as solenidades então existentes com naturalidade.
Sem qualquer pretensão de examinar todo o tema, ou de salientar o aspecto mais importante, queria apenas compartilhar uma ou outra meditação que fiz sobre isso.
Chama-me a atenção que, nesta perda da forma, os aspectos que distinguem as situações da vida vão sendo aplainados, de maneira que tudo aquilo que marcava a diferença específica do momento é extirpado, e por consequência uma equiparação empobrecedora vai tomando os espaços. Daí porque, como já comentamos em outros textos, o casamento vira carnaval, a formatura vira carnaval, as datas comemorativas viram carnaval e o carnaval mesmo vira sei lá que misto de aberrações, promiscuidade e futilidades pretensamente culturais.
De bloco a bloco, de batida em batida, os acontecimentos biográficos perdem sentido, substituídos por entregas hedonistas pueris, a troca de alianças perdeu lugar para o confete.
Ainda não li as obras de Jane Austen. Mas assisti, com muito gosto, as produções da BBC que versaram em série Orgulho e preconceito, Emma e Razão e Sensibilidade.
Essas histórias ilustraram de modo contrastante a perda da forma. Diferentemente do que vemos atualmente, nenhum acontecimento de proporções históricas, apocalípticas ou fatais existe naqueles romances. É nos eventos considerados pequenos por nossa geração que surgem narrativas maravilhosas, elegantes e sensíveis, que revelam dilemas morais universais, resolvidos com inteligência e beleza pela escritora.
Os personagens amam e possuem intimidade, às vezes até mais profunda do que se tem hoje, mas não abrem mão das formas de tratamento, da cordialidade, dos minúsculos atos solenes que organizam os relacionamentos humanos. O marido e a esposa se chamam por sra. e sr., sem que isto signifique cumplicidade a menor. Pelo contrário, é justamente este contorno estruturado pela educação que permite a tessitura de uma comunicação altamente límpida e que avança no assunto, sem se perder em desencontros. A forma, ao invés de aprisionar, liberta.
Também não existe ali uma exaltação de todo e qualquer costume. Trata-se com bastante ironia – uma ironia pura, se assim pudermos qualificar – certas condutas equivocadas, realizando-se a crítica dos costumes em bom-tom.
Vejamos o trecho inicial de Orgulho e preconceito:
É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de uma esposa.
Por pouco que os sentimentos ou as opiniões de tal homem sejam conhecidos ao se fixar numa nova localidade, essa verdade se encontra de tal modo impressa nos espíritos das famílias vizinhas que o rapaz é desde logo considerado a propriedade legítima de uma das suas filhas.
_ Caro Mr. Bennet – disse-lhe um dia a sua esposa –, já ouviu dizer que Netherfield Park foi alugado, afinal?
Mr. Bennet respondeu que não sabia.
_ Pois foi – assegurou ela. – Mrs. Long acabou de sair daqui e me contou tudo.
Mr. Bennet não respondeu.
_ Afinal, não deseja saber que é o locatário? – gritou a mulher, impacientemente.
_ Você é quem está querendo me dizer e eu não faço nenhuma objeção a isso.
Esse convite foi suficiente”.
Em seguida, Mrs. Bennet conta que um rico homem solteiro residirá na propriedade, e tenta dissuadir Mr. Bennet a prestar-lhe uma visita, uma circunstância para abrir uma oportunidade, a fim de que o novo morador conheça e, ao final, tome a mão de uma de suas filhas. Mr. Bennet, entretanto, ironiza a ideia de sua esposa, mas diz que escreverá ao cobiçado morador, adiantando que, de suas filhas, Lizzy mereceria que fosse feito um elogio a mais em relação às irmãs.
“_ Nenhuma delas tem muito o que as recomende – respondeu Mr. Bennet. _ São tolas e ignorantes como as outras moças. Mas Lizzy é realmente um pouco mais viva do que as irmãs.
_ Como pode falar mal assim dos próprios filhos, Mr. Bennet? Você se compraz em aborrecer-me; não tem nenhuma pena dos meus pobres nervos.
_ Está enganada, minha cara. Tenho muito respeito pelos seus nervos. São meus velhos amigos. Venho escutando você falar a respeito deles com grande consideração, pelo menos durante estes últimos vinte anos.
_ Ah, você não sabe o que eu sofro!
_ Espero que você se restabeleça e viva bastante tempo para ver muitos rapazes com quatro mil libras anuais de rendimento se instalarem na vizinhança.
_ Pouco nos adiantará que venham vinte deles se você se recusar a visitá-los.
_ Pode ficar certa, minha querida, de que quando chegarem os vinte eu os visitarei a todos.
Mr. Bennet era um misto tão curioso de vivacidade, humor sarcástico, reserva e capricho que a experiência de vinte e três anos juntos tinha sido insuficiente para que a sua esposa lhe conhecesse o caráter. O espírito dela era menos difícil de compreender; tratava-se de uma senhora dotada de inteligência medíocre, pouca cultura e gênio instável. Quando se aborrecia imaginava que estava nervosa. A única preocupação de sua vida era casar as filhas. Seu consolo, fazer visitas e saber das novidades”.

Um excerto maravilhoso, não é mesmo? A crítica não é atenuada, mas é feita com elegância, em um diálogo que ilustra praticamente toda a vida familiar naqueles tempos, naqueles lugares.
Eu não conseguiria, sem passar por ridículo e ser comicamente artificial, chamar minha esposa de Sra. Xavier. Vou tentar caprichar um pouco mais na minha educação, na elaboração completa dos pensamentos e de minhas comunicações, não desleixar os cumprimentos, recordar-me das distâncias impessoais volta e meia necessárias. Não posso ser um homem de outro século, mas desejaria muito incorporar alguma coisa daquela sabedoria e daquela beleza, daquela forma que se perdeu e que devemos encontrar.

quarta-feira, 21 de maio de 2014




“Uma das qualidades singulares e intransferíveis da religião cristã é poder conduzir e consolar quem quer que, em qualquer circunstância, sob qualquer pretexto, a ela recorra. Se há remédio para o passado, ela o prescreve e aplica, vivifica e ilumina, para colocá-lo em prática, custe o que custar; se não há, ela acha um jeito de tornar real e efetivo o que o provérbio diz, e ‘da necessidade faz virtude’. Ensina a continuar com sabedoria o que começou com leviandade; incita a abraçar livremente o que foi obra da tirania; e tolda uma escolha temerária, porém irrevogável, de toda a santidade, de toda a sensatez, e, digamo-lo francamente, de todas as alegrias da vocação. É um caminho tal que, se o homem passar por ele, e nele andar alguns passos, vindo de quaisquer labirintos, de precipícios quaisquer, pode caminhar com segurança e boa vontade doravante, e chegar ledo a um ledo fim.” (“Os noivos”, Alessandro Manzoni)



terça-feira, 22 de abril de 2014

Olavo de Carvalho, transcrição de trecho da aula IV do Curso Raízes da Modernidade

[...] Com a progressiva formação da sociedade moderna, como sociedade técnica, industrial, altamente burocratizada, na qual as relações naturais vão sendo cada vez mais substituídas por relações legais, o sentimento de participação comunitária das pessoas vai desaparecendo. [...] Na medida em que o conjunto das relações sociais era [na Idade Média] ao mesmo tempo constituído de relações pessoais diretas, então não existia um abismo entre o indivíduo e a sociedade. Todas as emoções eram compreensíveis, todas as experiências humanas eram transparentes, mesmo aquilo que você odiava não lhe era incompreensível. [...] Ninguém é estranho, as pessoas são diferentes, mas não estranhas. [...] A medida em que estas relações sociais baseadas na pessoa humana direta vão sendo substituídas por relações legais e burocratizadas, tudo muda completamente. Por exemplo, o funcionário que é obrigado a exercer a sua função implacavelmente a despeito de todos os interesses e emoções pessoais envolvidas , não terá tempo de participar das emoções das outras pessoas, pois senão ele não vai aguentar. Isto significa que ele tem que tomar decisões cada vez mais impessoais. Como se o regulamento burocrático fosse uma realidade e as pessoas envolvidas não fossem realidades. Por exemplo, a cobrança de uma dívida. Se um sujeito fosse cobrar uma dívida na Idade Média, ele até poderia ser implacável na sua cobrança, mas ele entendia perfeitamente a situação do outro. Não lhe era completamente alheio. Mas, numa situação já definida pela organização burocrática da convivência, as emoções do outro já não interessam, porque não é uma pessoa, é uma ficha, um número no computador. Isto quer dizer que você pode agir de maneira brutal sobre as pessoas sem ter nenhum sentimento brutal. Na I. Média o cobrador de uma dívida podia até bater ou matar o devedor, mas ele teria que fazer isso pessoalmente. E ele não poderia fazer isso sem estar com raiva do outro. Mas na situação moderna você pode destruir vidas inteiras por uma providência administrativa, tomada com a maior neutralidade, com a maior tranquilidade, sem pensar nas consequências. [...] Por exemplo, certas operações bancárias como estas feitas por grandes investidores, que do dia para noite desgraçam milhões de pessoas, que eles não conhecem, contra as quais ele não têm absolutamente nada e que se pudessem, talvez até ajudariam. Isto quer dizer que entre os seres humanos se interpõe toda uma estrutura de determinações que não tem nada a ver com as pessoas envolvidas, que são literalmente impessoais. Mas este elemento impessoal é o que constitui a nossa experiência cotidiana quase que o tempo todo. Acontece que o mundo da experiência direta humana, o mundo das emoções humanas diretas não tem lugar na estrutura administrativa. E se não tem lugar não pode ser objeto de uma discussão pública, não tem como ser discutido. Só é possível discutir aquilo que está enquadrado nos conceitos gerais, nos dados estatísticos, etc.  Então, na mesma medida em que a convivência na sociedade moderna se despersonaliza, aparece como refúgio a convivência pessoal direta. Mas vivida em termos que não podem corresponder inteiramente às categorias sociais admitidas. Isso que dizer que não havendo mais aquele sentimento de participação comunitário no qual as emoções dos personagens envolvidos são translúcidas para todos e todos sabem o que todo mundo está sentindo, não sendo possível isto, existe como compensação a necessidade de uma aproximação maior entre as pessoas fora do quadro social admitido e legítimo. Então, aparece, por exemplo, a busca do amor pessoal numa intensidade e quantidade que as épocas anteriores desconheceram. Há necessidade de mais experiência amorosa, mais vivência amorosa na situação moderna do que em qualquer outra época. E isto explica “sexo livre”, adultérios, movimento gay, etc. [...] Se vermos o tempo que o cidadão moderno dedica a pensar em sexo e comparar isso com o cidadão da I. Média, chegaríamos a conclusão de que o cidadão é tarado, é louco, só pensa nisso. Se pensarmos que oitenta por cento do movimento da internet são sites de sacanagem, veremos que se criou um monstruoso aparato técnico e ele é usado por pessoas desesperadas, que buscam ali um contato carnal por via eletrônica. Isto é o extremo do desespero. Os indivíduos não estão aguentando viver dentro daquele quadro de impessoalidade mecânica e burocrática e elas querem um alívio para isso. É inteiramente compreensível. Quando as pessoas imbuídas de um sistema moral mais antigo, por ex, são cristãos, se voltam contra isso com uma linguagem condenatória, estão fazendo buraco n´água. O que pregações morais podem fazer contra uma necessidade premente criada pelo próprio artificialismo da situação? [...] De certo modo isto se tornou um dos poucos canais onde as pessoas podem ter uma experiência pessoal efetiva, real, podem se sentir vivas. As pessoas buscam refúgio na convivência pessoal. Porque na sociedade, no trabalho, no exercício das funções públicas, não são pessoas, são apenas funções. Por exemplo, vamos supor uma empresa grande com 20.000 empregados. É possível dentro de uma circunstância dessas prestar atenção nos problemas de cada um? [...] De fato, a tendência geral da sociedade moderna é de tratar os indivíduos apenas pela sua função e não como individualidades concretas e diferenciadas. A pressão das necessidades emocionais humanas, não podendo ser descarregada na vida social pública oficial, ela tem que encontrar outros canais. Um canal são as psicoterapias, grupos de psicoterapias. Se você observar as psicoterapias de grupo você vai observar que a maioria das pessoas não têm nenhum problema clínico, elas simplesmente não tinham com quem conversar. [...] John Carrow, no seu livro sobre o humanismo, mostra que em grande parte a vida real das pessoas fugiu para o mundo dos sonhos. Ou seja, o indivíduo só é ele mesmo no instante em que ele está dormindo. Ali ele diz o que realmente quer, se comporta como ele mesmo e depois acorda, veste o uniforme e volta a ser o mesmo tipo impessoal que era na véspera. Este refluxo da vida interior humana para o mundo dos sonhos já começa no Século XIX e é anterior ao surgimento da psicanálise. Então me pergunto se Dr Freud teria a idéia de procurar a realidade da alma no mundo dos sonhos se ela não estivesse realmente lá? Ou seja, se ela não tivesse sido empurrada para lá por fatores sociais que não tem nada a ver com a psicanálise? Imaginemos a quantidade de tempo que se concedeu no século XX a análise de sonhos. [...] Numa época anterior, ainda na Renascença ou na I. Média, se se dissesse que apareceria uma profissão em que o sujeito fica o tempo todo falando de sonhos, pareceria a coisa mais esquisita do mundo. Então vemos a fuga para a intimidade, a fuga para os sonhos, a fuga para os contatos através de internet, a fuga para a pornografia, a fuga para o sexo livre etc. [...]. Miguel Reale, em seu livro Introdução a Ciência do Direito, inventa um termo horroroso mas que descreve bem, que é o da progressiva jurisfação da vida social. Ou seja, tudo vai saindo do campo das relações naturais e entrando no campo das relações legais. E este processo é absolutamente avassalador, não tem limite. Um dos elementos fundamentais da democracia moderna é a existência de um poder legislativo soberano em relação aos outros poderes e cujas decisões literalmente tem poder de lei sobre os outros.  O que representa haver em cada nação uma corporação de quinhentas, seiscentas pessoas que estão fazendo leis o tempo todo? Quantas leis são feitas em um ano? Vinte, trinta mil? E estas leis vão regulando cada vez mais coisas que antes não eram reguladas. [...] E nós nos acostumamos de tal modo a tantas proibições que elas nos parecem, muitas vezes, a própria garantia de nossos direitos e nossas liberdades, quando na verdade elas são uma tremenda restrição. [...] A importância dos documentos, por exemplo, foi crescendo cada vez mais, até chegar ao ponto de terem mais realidade do que a própria realidade (lembrar o romance de Luigi Pirandello, O Falecido Matias Pascal). Nos acostumamos te tal modo com isso que a posse dos documentos, de certo modo, reforça a nossa identidade, mas é uma identidade que não existe evidentemente. Como é possível o Estado me dizer quem eu sou? Se a identidade oficialmente admitida começa a prevalecer sobre os dados da experiência direta, a consequência disso é imediata. Começa-se a imaginar que a sua identidade é aquela que a sociedade te deu e não aquela que você efetivamente tem por natureza. Automaticamente, se torna difícil conceber que uma pessoa humana seja algo por si mesma e sem o reconhecimento da sociedade. O indivíduo só adquire o estatuto humano pela sociedade e a cultura que lhe conferiram a identidade (este é, alías, o argumento do movimento abortista). É uma idéia falsa, mas se tornou irresistível porque ela não traduz a natureza das coisas, mas traduz a situação efetiva na qual nós vivemos na sociedade moderna. Por isso, é muito difícil argumentar contra o aborto para pessoas que não enxergam a sua identidade em si mesmas, mas naquela figura projetiva que a sociedade colou sobre elas. [...] Por isso, um sentimento de revolta, de ódio contra essas aberrações da sociedade moderna, frequentemente, não se justifica, porque as pessoas estão pensando e acreditando não naquilo que elas deveriam pensar e acreditar, mas naquilo que, de certo modo, são forçadas a acreditar. Não se pode dizer que elas têm culpa disso. Elas não têm idéia de como entraram naquilo. Se uma convicção do sujeito está baseada no próprio sentimento de identidade que ele tem,  não adiante eu mudar a ideia sem mudar a identidade, e mudar a identidade de uma pessoa não é fácil. Fazer o indivíduo perceber que ele tem uma identidade inerente, inata e, por assim dizer, eterna, se ele está persuadido de que ele é um papel social determinado pelo estado, é muito difícil. Este mundo, esta superestrutura burocrática que se sobrepôs às individualidades concretas ela retroage sobre a individualidade e cria novos tipos de individualidade que antes não existiam.  Por exemplo, o funcionário impessoal, não existe isso em parte alguma da história. [...] Os regimes totalitários, por exemplo, não são senão o aperfeiçoamento extremo da burocratização, onde todas as pessoas são conhecidas não por aquilo que elas são na realidade, mas por uma posição social que os outros lhe atribuem, frequentemente, uma posição imaginária. [...] O genocídio é a expressão natural da despersonalização. [...] É sempre um crime de lógica e não de paixão (Albert Camus). Ninguém vai matar 70 milhões de pessoas por que está com raiva delas. Está matando apenas um número, uma entidade abstrata. E isso vai se tornando cada vez mais fácil, porque vai se criando os meios técnicos de se cometer violência sem que o impacto dela retroaja sobre a sua alma. Por exemplo, é possível bombardear todo um acampamento assistindo tudo por satélite. Onde aparecerão algumas figurinhas sendo bombardeadas, como num vídeo game. Não parece realidade. É um efeito desrealizante. Este efeito chega ao ponto em que alguns filmes de ficção, em que assistimos batalhas, parecem mais reais do que um documentário sobre batalhas. [...] Este processo de desrealização e de dessubstancialização da individualidade humana e de substituição por uma entidade abstrata criada legalmente é sem dúvida uma das raízes da modernidade. 

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Fidelidade Intransigente

O que um dia foi um casal entrou pela porta da sala de audiências. Ele, o autor de uma ação de conversão de separação judicial em divórcio, acompanhado de seu advogado. Ela, sozinha nesta primeira tentativa de conciliação. Os dois aparentando estar perto dos setenta anos. Documentos conferidos, na tela do computador o termo de acordo quase pronto. Todos os bens já divididos, todos os filhos já maiores, mais de um ano desde a separação.  Requisitos presentes, caso fácil, acordo certo. Só homologar e “jogar” para a estatística. Havia, porém, qualquer coisa no ar. Talvez algum resquício de remorso ou as lembranças inevitáveis de uma vida passada juntos. O arrependimento insinuando-se entre culpas, o rancor entre as feridas. Quando, então, coube-me perguntar: “há possibilidade de reconciliação?”. Artificial e legalista. Mais de trinta anos... Sob olhares quase mudos, conclui em voz alta dirigindo-me ao escrevente: “reconciliação infrutífera”. A lei estava cumprida. A pior parte resolvida. Rumo ao acordo. Acordo? Impossível. A senhora se negava a assinar, não queria o divórcio. Instante inesperado. Expliquei-lhe a norma, o protocolo, o processo. Ante a presença dos requisitos, a lei é a lei. Quando percebi que tremia, tremia muito ao falar e mover os braços. Estava nervosa e sofria. Estranhei que, até aquele momento, ignorava completamente este fato. Realmente eu ainda não os havia notado. Pela primeira vez li os nomes na capa do processo. E os vi, os dois, o casal e a sua tragédia. Li nos seus rostos a crise, as brigas, a dor da separação, o desespero dos filhos. Pela primeira vez desde o início da audiência, que parecia tão certa, tão óbvia. Qualquer coisa foi dita sobre traição, outra mulher. A senhora tremia, insistindo que não queria o acordo. Pouco importava a demora, pouco importava o fizesse o juiz depois de alguns meses. “Eu não assinarei”. Perguntei-lhe, então, o por quê? Ela levou as mãos trêmulas à bolsa e retirou uma Bíblia. Levantando-a em punho disse com firmeza: “Por isso!”. O advogado da parte contrária disfarçou um riso sádico (talvez mais tarde, na roda dos amigos...). O escrevente percebeu e também riu, demonstrando certa impaciência ante a atitude tão descabida. O marido tinha os olhos atentos e calados. Por um instante me surpreendi com a sua coragem. A sensação de estar diante de um milagre ou, pelo menos, de uma manifestação do Espírito. Agradeci. Mas, em seguida, uma grande angústia atropelou a surpresa. A obrigação de ofício me levou a explicar a divisão das competências, a diferenciar o civil do religioso. Em minha mente, pensava na laicidade do Estado e na constituição laica clamando a proteção de Deus. Pensava na doutrina social da Igreja, no reinado social de Cristo. Lembrava os crucifixos retirados das repartições públicas. Ela sorriu para mim, com a Bíblia nas mãos (como um mártir?). O livro todo num único versículo: “dai a César...”. Então, calei-me e ela suspeitou que lhe dava razão. Compreendeu a explicação, mas insistiu em não assinar. O juiz que o fizesse. Ela não, não podia. “O senhor compreende, eu não posso, mesmo assim, não posso, minha consciência”. Guardou o livro sagrado novamente na bolsa e teve a sua vontade atendida. O acordo infrutífero, a audiência encerrada. Colhemos as assinaturas em silêncio e a ata foi afixada aos autos. Estávamos livres do rito. No entanto, o diploma, o bacharelado parecia pesar-me sobre as costas. Minha assinatura no papel, as minhas roupas, a faculdade, os livros jurídicos, o prédio do Fórum. Sentia-me culpado, como um cúmplice. Por fim, despedi-me das partes, interrompendo a divagação. Era necessário me recompor e prosseguir com o restante das audiências do dia. 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Sem Testemunhas (Olavo de Carvalho)

O Globo, 22 de julho de 2000
 
"Temos de nos desmascarar para alcançarmos aquela autenticidade interior de uma cultura em que poderemos, um dia, nos reconhecer e nos sentir realizados."
J. O. de Meira Penna, "Em berço esplêndido"

Albert Schweitzer, em "Minha infância e mocidade", lembra o instante em que pela primeira vez sentiu vergonha de si. Ele tinha por volta de 3 anos e brincava no jardim. Veio uma abelha e picou-lhe o dedo. Aos prantos, o menino foi socorrido pelos pais e por alguns vizinhos. De súbito, o pequeno Albert percebeu que a dor já havia passado fazia vários minutos e que ele continuava a chorar só para obter a atenção da platéia. Ao relatar o caso, Schweitzer era um septuagenário. Tinha atrás de si uma vida realizada, uma grande vida de artista, de médico, de filósofo, de alma cristã devotada ao socorro dos pobres e doentes. Mas ainda sentia a vergonha dessa primeira trapaça. Esse sentimento atravessara os anos, no fundo da memória, dando-lhe repuxões na consciência a cada nova tentação de auto-engano.
Notem que, em volta, ninguém tinha percebido nada. Só o menino Schweitzer soube da sua vergonha, só ele teve de prestar contas de seu ato ante sua consciência e seu Deus. Estou persuadido de que as vivências desse tipo - os atos sem testemunha, como costumo chamá-los - são a única base possível sobre a qual um homem pode desenvolver uma consciência moral autêntica, rigorosa e autônoma. Só aquele que, na solidão, sabe ser rigoroso e justo consigo mesmo - e contra si mesmo - é capaz de julgar os outros com justiça, em vez de se deixar levar pelos gritos da multidão, pelos estereótipos da propaganda, pelo interesse próprio disfarçado em belos pretextos morais.
A razão disso é auto-evidente: um homem tem de estar livre de toda fiscalização externa para ter a certeza de que olha para si mesmo e não para um papel social - e só então ele pode fazer um julgamento totalmente sincero. Somente aquele que é senhor de si é livre - e ninguém é senhor de si se não agüenta nem olhar, sozinho, para dentro de seu próprio coração.
Mesmo a conversa mais franca, a confissão mais espontânea não substituem esse exame interior, porque aliás só valem quando são expressões dele, não efusões passageiras, induzidas por uma atmosfera casualmente estimulante ou por um sincerismo vaidoso.
Mais ainda, não é apenas a dimensão moral da consciência que se desenvolve nesse confronto: é a consciência inteira - cognitiva, estética, prática. Pois ele é ao mesmo tempo aproximação e distanciamento: é o julgamento solitário que cria a verdadeira intimidade do homem consigo mesmo e é também ele que cria a distância, o espaço interior no qual as experiências vividas e os conhecimentos adquiridos são assimilados, aprofundados e personalizados. Sem esse espaço, sem esse "mundo" pessoal conquistado na solidão, o homem é apenas um tubo por onde as informações entram e saem - como os alimentos - transformadas em detritos.
Ora, nem todos os seres humanos foram brindados pela Providência com a percepção espontânea e o julgamento certeiro de seus pecados. Sem esses dons, o anseio de justiça se perverte em inculpação projetiva dos outros e em "racionalização" (no sentido psicanalítico do termo). Quem não os recebeu de nascença tem de adquiri-los pela educação. A educação moral, pois, consiste menos em dar a decorar listas do certo e do errado do que em criar um ambiente moral propício ao auto-exame, à seriedade interior, à responsabilidade de cada um saber o que fez quando não havia ninguém olhando.
Durante dois milênios, um ambiente assim foi criado e sustentado pela prática cristã do "exame de consciência". Há equivalentes dela em outras tradições religiosas e místicas, mas nenhum na cultura laica contemporânea. Há as psicanálises, as psicoterapias, mas só funcionam nesse sentido quando conservam a referência religiosa à culpa pessoal e ao seu resgate pela confissão diante de Deus. E, à medida que a sociedade se descristianiza (ou, mutatis mutandis, se desislamiza, se desjudaíza etc.), essa referência se dissolve e as técnicas clínicas tendem justamente a produzir o efeito oposto: a abolir o sentimento de culpa, trocando-o ora por um endurecimento egoísta confundido com "maturidade", ora por uma adaptatividade autocomplacente, desfibrada e cafajeste, confundida com "sanidade".
A diferença entre a técnica religiosa e seus sucedâneos modernos é que ela sintetizava numa mesma vivência dramática a dor da culpa e a alegria da completa libertação - e isto as "éticas leigas" não podem fazer, justamente porque falta nelas a dimensão do Juízo Final, da confrontação com um destino eterno que, dando a essa experiência uma significação metafísica, elevava o anseio de responsabilidade pessoal às alturas de uma nobreza de alma com o qual as exterioridades da "ética cidadã" não podem nem mesmo sonhar.
Há dois séculos a cultura moderna vem fazendo o que pode para debilitar, sufocar e extinguir na alma de cada homem a capacidade para essa experiência suprema na qual a consciência de si é exigida ao máximo e na qual - somente na qual - alguém pode adquirir a autêntica medida das possibilidades e deveres da condição humana. A "ética laica", a "educação para a cidadania" é o que sobra no exterior quando a consciência interior se cala e quando as ações do homem já nada significam além de infrações ou obediências a um código de convencionalismos e de interesses casuais.
"Ética", aí, é pura adaptação ao exterior, sem outra ressonância íntima senão aquela que se possa obter pela internalização forçada de slogans, frases feitas e palavras de ordem. "Ética", aí, é o sacrifício da consciência no altar da mentira oficial do dia.

sábado, 25 de janeiro de 2014