quinta-feira, 21 de novembro de 2013

"A História apresenta duas linhas paralelas. Primeiro, os homens de ferro e de dinheiro, o político, o econômico, o social - ps conquistadores, os comerciantes, as crises de propriedade. Julgam que enchem o Mundo. Depois, os poetas, os artistas, os filósofos, os santos. Os primeiros esmagam os segundos. Mas os segundos ainda atuam mil anos depois da morte, quando se perdeu a pista dos primeiros. [...] Santo Agostinho vivia no tumulto da queda do Império Romano, mas já nada resta dos vândalos que cercavam Hipona, e nós ainda lemos as Confissões. Quando Agostinho morria na sua cidade cercada, toda a gente julgava, sem dúvida, que a guerra era o importante e os livros do Bispo um incidente acessório. [...] Eles só veem a História pela trama. A trama é o suporte material da vida humana; o desenho, que faz a beleza do humano, é o espírito que o traça sob a inspiração do sonho. Os homens de ferro e de dinheiro olham para o tapete do avesso e só veem a trama. Mas do outro lado é que está a beleza. [...] E quando se está lançado no caminho da beleza, sobe-se até Deus. Quando se alcançou a Deus, os conquistadores tornaram-se microscópicos." (Jacques Leclercq, "Diálogo do Homem e de Deus")

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O direito romano e sua atualidade

Alexandre Augusto de Castro Corrêa

28 de outubro de 1984

"Os estudantes das Faculdades de Direito do Brasil formam-se hoje em geral sem estudos de Direito Romano, considerados supérfluos para o exercício da profissão. Nada de mais, nesse modo de ver, salvo a circunstância de, sob a aparência de realismo, ele, na verdade, colocar o jurista num vazio ideológico facilmente preenchido pela propaganda esquerdista, principal adversária, aliás, dos estudos romanísticos.

O vazio ao qual nos referimos e no qual são lançados os juristas sem cultura geral resulta do descaso inoculado nos jovens pela consideração das relações profundas existentes entre sociedade e direito. A profissão, sem dúvida, permitindo ganhar, na advocacia exerce atrativo imediato e poderoso sobre a mocidade.

Mas, se as bases mesmas da sociedade na qual vivemos forem solapadas, a profissão desaparecerá. Ora, só o estudo científico e não apenas utilitário do Direito permite dar ao jovem a consciência de sua situação num mundo em transformação econômica e social e ameaçado pela subversão comunista.

Examinar os fundamentos morais, políticos e religiosos da sociedade em que vivemos, comparando-a com outras sociedades geradas por princípios opostos aos nossos, torna-se, portanto, em época de contestação e guerra fria, tão urgente e essencial, quanto ganhar dinheiro e fazer carreira.

Nosso "modus vivendi" de homens livres, nossa maneira de pensar a vida e os valores que a dignificam são hoje atacados, de modo mais ou menos sutil, por propaganda incansável, visando a intoxicar a América Latina a fim de melhor escravizá-la.

[...]

Estas considerações parecem suficientes, como dissemos no início, para mostrar como em época de contestação e guerra fria, que desgraçadamente já atingiu a América Latina, a reflexão sobre as bases de nossas instituições e de nosso modo de vida seja, mais do que nunca, urgente, se quisermos preservar o que nos resta de liberdade frente à investida totalitária. Ora, tal reflexão leva-nos, fatalmente, ao Direito Romano e à avaliação da importância de seu legado para a edificação do Direito dos povos livres do mundo." 


P.S. Naquele tempo (pouco menos de trinta anos) os estudantes de direito ainda eram capazes de considerar supérfluo o estudo do Direito Romano. Há pouco tempo, ainda eram capazes de um olhar perplexo, diante do desconhecido. Hoje, simplesmente ignoram: os melhores, estão muito ocupados com seus estágios, concursos públicos e prova da OAB; os piores estão bêbados, em algum dos bares ao redor da faculdade.  

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Poema "If" - Rudyard Kipiling

"Se"
(Rudyard Kipiling)
Poema – If – Rudyard Kipling
Se és capaz de manter a tua calma quando
Todo o mundo ao teu redor já a perdeu e te culpa;
De crer em ti quando estão todos duvidando,
E para esses no entanto achar uma desculpa;
Se és capaz de esperar sem te desesperares,
Ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
E não parecer bom demais, nem pretensioso;
Se és capaz de pensar –sem que a isso só te atires,
De sonhar –sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se encontrando a desgraça e o triunfo conseguires
Tratar da mesma forma a esses dois impostores;
Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas
Em armadilhas as verdades que disseste,
E as coisas, por que deste a vida, estraçalhadas,
E refazê-las com o bem pouco que te reste;
Se és capaz de arriscar numa única parada
Tudo quanto ganhaste em toda a tua vida,
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
Resignado, tornar ao ponto de partida;
De forçar coração, nervos, músculos, tudo
A dar seja o que for que neles ainda existe,
E a persistir assim quando, exaustos, contudo
Resta a vontade em ti que ainda ordena: “Persiste!”;
Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes
E, entre reis, não perder a naturalidade,
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
Se a todos podes ser de alguma utilidade,
E se és capaz de dar, segundo por segundo,
Ao minuto fatal todo o valor e brilho,
Tua é a terra com tudo o que existe no mundo
E o que mais –tu serás um homem, ó meu filho!
If
If you can keep your head when all about you
Are losing theirs and blaming it on you,
If you can trust yourself when all men doubt you
But make allowance for their doubting too,
If you can wait and not be tired by waiting,
Or being lied about, don’t deal in lies,
Or being hated, don’t give way to hating,
And yet don’t look too good, nor talk too wise;
If you can dream–and not make dreams your master,
If you can think–and not make thoughts your aim;
If you can meet with Triumph and Disaster
And treat those two impostors just the same;
If you can bear to hear the truth you’ve spoken
Twisted by knaves to make a trap for fools,
Or watch the things you gave your life to, broken,
And stoop and build ‘em up with worn-out tools;
If you can make one heap of all your winnings
And risk it all on one turn of pitch-and-toss,
And lose, and start again at your beginnings
And never breath a word about your loss;
If you can force your heart and nerve and sinew
To serve your turn long after they are gone,
And so hold on when there is nothing in you
Except the Will which says to them: “Hold on!”
If you can talk with crowds and keep your virtue,
Or walk with kings –nor lose the common touch,
If neither foes nor loving friends can hurt you;
If all men count with you, but none too much,
If you can fill the unforgiving minute
With sixty seconds’ worth of distance run,
Yours is the Earth and everything that’s in it,
And –which is more– you’ll be a Man, my son!
(tradução de Guilherme de Almeida da Folha de São Paulo)

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Sobre Caminhança II

Não vou dar conta de desenvolver aqui tudo o que tenho a dizer. Faço umas pinceladas apenas. Talvez mais tarde, com um pouco mais de tempo. Fica o bate-papo. Uma centelha! Confio na nossa intimidade... às vezes meias palavras bastam. É uma tentativa de diálogo com o o texto "sobre a caminhança" do caminhante João Augusto (por isso tive a ousadia de intitular este meu texto de nº II). A vocação é um dos temas mais importantes deste espaço. E é bom que seja assim, afinal de contas deve mesmo ser o tema mais importante das nossas vidas (vocação em seu sentido mais amplo). Apenas gostaria de dizer que tive uma reaproximação recente com o universo do Olavo, o que me permitiu alguns insights importantes (interessante como o afastamento e retorno a um grande autor pode ampliar a percepção da sua obra de forma inimaginável... o que parecia ter-se esgotado ressurge como uma fonte vigorosa - não que alguma vez tivesse a pretensão de esgotar os ensinamentos do Prof., é claro, mas falo no sentido da minha experiência pessoal com a obra dele). Difícil escrever sobre minhas conclusões por enquanto. Sinto que ainda não sou capaz de articular tudo. O processo ainda se destila dentro de mim. Mas arrisco algumas observações, em consideração, inclusive, à carta partilhada pelo João há alguns posts atrás.

A questão sobre a vocação e as decisões de vida envolvem uma questão anterior e com elas intimamente ligada, a autoconsciência. Não é possível compreender a própria vocação, nem corresponder à ela por uma decisão, se antes não tomarmos consciência da nossa própria condição existencial, seja internamente, seja exteriormente. É preciso, antes de tudo, conhecer estas condições, para em seguida iniciar um processo de compreensão e absorção destas circunstâncias, para que elas possam nos impulsionar à nossa verdadeira vocação. Mesmo aquelas que aparentemente parecem hostis, devem se integrar neste plano maior de nossas vidas. Estas circunstâncias envolvem desde questões de caráter e temperamento, a personalidade, história familiar, até o contexto histórico e social em que vivemos. Tudo isso compõe a nossa existência neste mundo.

Enfim, não digo nenhuma novidade. E pior! Digo de uma forma improvisada, pobre, muito distante do original. Por isso, convido a que leiam e assistam o Prof. Olavo tratando destes assuntos: é simplesmente maravilhoso! Desculpem, fiz apenas para criar o contexto para dizer que grande parte da nossa crise, do nosso sofrimento, não é apenas nosso, mas diz respeito a algumas condições em que estamos vivendo. Gostaria com isso apenas de complementar as reflexões da carta do João, acrescentando este aspecto que considero essencial: o fato de vivermos no contexto de um declínio cultural, de uma crise civilizacional. Boa parte da obra do Olavo é dedicada a entender justamente esta crise. Mas vejam bem. Não é por acaso que ele se dedica a isto. É porque esta é a sua condição existencial. Ele, enquanto filósofo jamais poderia partir de outro lugar. Ele só pode conhecer filosoficamente qualquer coisa, da mais simples bactéria até o universo, a partir de si mesmo. O ponto de partida é sempre este. Puxa! Isto muda completamente a forma de compreender o seu pensamento (e a sua vida). Não sei se consigo me fazer entender. Demorei para perceber isto com profundidade.

Pois bem. Conosco se dá o mesmo. Boa parte da nossa crise está ligada ao fato de que vivemos todos os dias caminhando por uma cultura que esta desmoronando. Esta desintegração está diante de nossos olhos e sofremos com isso. As reações são as mais diversas, mas a dor é a mesma. Pode ser um insolente cinismo, pode ser um humor escarrado, pode ser a depressão ou o esculacho, ou um utilitarismo materialista... Essas são algumas reações comuns hoje em dia. Porque ainda que não saibam, as pessoas estão reagindo a seu modo, mesmo que não o façam com toda a consciência.

Ser juízes, defensores, promotores? Sim. Mas nesta Justiça? Quem é capaz de esconder as pilhas de processo, o descompromisso generalizado, o comodismo do funcionalismo, a burocracia, as leis injustas, o caos legislativo... E, pior do que isso, toda a crise do pensamento jurídico, moral, filosófico que está por trás. Por isso sofremos. Esta é a verdade. Portanto o problema é anterior à própria vocação. E não temos como fugir. Esta é a nossa condição, e a condição que teremos que enfrentar. Abraçar (como não lembrar de Jesus pedindo para que abracemos a Cruz).
  
A imagem do náufrago é perfeita. Terrivelmente perfeita. Não adianta ficarmos fingindo que não. Temos que conhecer, compreender e absolver esta circunstância. Mesmo no naufrágio, há muito o que ser feito. Só encontraremos o sentido de nossas vidas se considerarmos realmente esta condição. Sem resistir, sem lamentar. Senão nos frustraremos. Vamos desanimar sempre. Não! Coragem e enfrentamento! Sem fugas... para salários, comodidades, viagens, títulos, poder... Sem o cinismo e a gozação tão presentes... (lembro de um juiz que conversei...). É possível sim encontrarmos o verdadeiro sentido de nossas vidas em meio ao naufrágio. Mas para isso temos que aceitá-lo. Se não seremos absorvidos, seremos mais uns burocratas tristes e infiéis. A resposta à nossa vocação dependerá disso. Sofrer sim. Mas com sentido, com magnanimidade! Fazer a vida valer a pena! 

O Olavo é um exemplo vivo disso. Vocação de professor, de filósofo. Circunstância: universidade brasileira, carreirismo, desonestidade intelectual etc etc etc...(sem falar nas outras inúmeras circunstâncias, pessoais, inclusive...se não me engano passou um longo período da juventude doente). Podem imaginar o sofrimento dele para encontrar um caminho de realização da sua vocação em meio a tantas circunstâncias hostis, a sua luta para encontrar o sentido da sua vida? Este é apenas um exemplo. Sobre isso ele escreveu (trecho do texto que postei antes deste):

"Mas nada proíbe um escritor de dirigir-se, em suas obras, aos sobreviventes do naufrágio espiritual do século XX, na esperança de que existam e não sejam demasiado poucos. Acossados pelo assédio conjunto da banalidade e da brutalidade, esses podem conservar ainda uma vaga suspeita de que em seus sonhos e esperanças ocultos há uma verdade mais certa do que em tudo quanto o mundo de hoje nos impõe com o rótulo de "realidade", garantido pelo aval da comunidade acadêmica e da Food and Drug Administration. É a tais pessoas que me dirijo exclusivamente, ciente de que não se encontram com mais freqüência entre as classes letradas do que entre os pobres e os desvalidos".       

Para concluir, penso que o sentido de nossas vidas sempre estará no amor, na caridade, como ensinava Viktor Frankl, outro grande exemplo. Do nosso "holocausto", do nosso naufrágio, só sobreviveremos por amor. No fundo, trata-se de darmos uma resposta amorosa ao dom da vida que recebemos, seja como juízes, como professores, como pais, cada um segundo a sua vocação especial. O Prof. Olavo tem dito muitas vezes que ele está chamando os seus alunos para uma obra de caridade. Pensem na profundidade do que isto significa...

Para finalizar, sugiro um grande filme: CLIQUE AQUI - "DETACHMENT"

Foi sugerido por um aluno do Olavo que está coordenando o IFE-Curitiba, Francisco Escorsim, nesta palestra bastante interessante: CLIQUE AQUI

Na verdade ele sugeriu que o pessoal assistisse o filme antes da palestra. (lá pelas tantas, inclusive, o professor personagem do filme sugere aos alunos o exercício do necrológio...) 

Com isso termino minhas colocações. Espero que tenham algum proveito. 

Apeirokalia (Olavo de Carvalho)

Bravo!, Ano I, no1, novembro de 1997 e
A Longa Marcha da Vaca para o Brejo: O Imbecil Coletivo II. Rio, Topbooks, 1998.

Como geralmente se entende por educação superior o simples adestramento para as profissões melhores, conclui-se, com acerto, que toda pessoa normal é apta a recebê-la e que, na seleção dos candidatos, qualquer elitismo é injusto, mesmo quando não resulte de uma discriminação intencional e sim apenas de uma desigual distribuição da sorte. Mas se por essa expressão se designa a superação dos limites intelectuais do meio, o acesso a uma visão universal das coisas, a realização das mais altas qualidades espirituais humanas, então existe dentro de muitos postulantes um impedimento pessoal que, mais dia menos dia, terminará por excluí-los e por fazer com que a educação superior, no sentido forte e não administrativo do termo, continue a ser de fato e de direito um privilégio de poucos.

Esse impedimento, graças a Deus, não é de ordem econômica, social, étnica ou biológica. É um daqueles males humanos que, como o câncer e as brigas conjugais, se distribuem de maneira mais ou menos justa e eqüitativa entre classes, raças e sexos. É o único tipo de imperfeição que poderia, com justiça, ser invocado como fundamento de uma seleção elitista, mas que de fato não precisa sê-lo, pois opera essa seleção por si, de maneira tão natural e espontânea que os excluídos não dão pela falta do que perderam e chegam mesmo a sentir-se bastante satisfeitos com o seu estado, reinando assim entre os poucos felizes e os muitos infelizes uma perfeita harmonia, salvaguardada pela distância intransponível que os separa.

O impedimento a que me refiro não é material ou quantificável. O IBGE não o inclui em seus cálculos e o Ministério da Educação o ignora por completo. No entanto ele existe, tem nome e é conhecido há mais de dois milênios. A mente treinada reconhece sua presença de imediato, numa percepção intuitiva tão simples quanto a da diferença entre o dia e a noite.

Os gregos chamavam-no apeirokalia. Quer dizer simplesmente "falta de experiência das coisas mais belas". Sob esse termo, entendia-se que o indivíduo que fosse privado, durante as etapas decisivas de sua formação, de certas experiências interiores que despertassem nele a ânsia do belo, do bem e do verdadeiro, jamais poderia compreender as conversações dos sábios, por mais que se adestrasse nas ciências, nas letras e na retórica. Platão diria que esse homem é o prisioneiro da caverna. Aristóteles, em linguagem mais técnica, dizia que os ritos não têm por finalidade transmitir aos homens um ensinamento definido, mas deixar em suas almas uma profunda impressão. Quem conhece a importância decisiva que Aristóteles atribui às impressões imaginativas, entende a gravidade extrema do que ele quer dizer: essas impressões profundas exercem na alma um impacto iluminante e estruturador. Na ausência delas, a inteligência fica patinando em falso sobre a multidão dos dados sensíveis, sem captar neles o nexo simbólico que, fazendo a ponte entre as abstrações e a realidade, não deixa que nossos raciocínios se dispersem numa combinatória alucinante de silogismos vazios, expressões pedantes da impotência de conhecer.

Mas é claro que as experiências interiores a que Aristóteles se refere não são fornecidas apenas pelos "ritos", no sentido técnico e estrito do termo. O teatro e a poesia também podem abrir as almas a um influxo do alto. À música — a certas músicas — não se pode negar o poder de gerar efeito semelhante. A simples contemplação da natureza, um acaso providencial, ou mesmo, nas almas sensíveis, certos estados de arrebatamento amoroso, quando associados a um forte apelo moral (lembrem-se de Raskolnikov diante de Sônia, em Crime e Castigo), podem colocar a alma numa espécie de êxtase que a liberte da caverna e da apeirokalia.

Porém, com mais probabilidade, as experiências mais intensas que um homem tenha tido ao longo de sua vida serão de índole a desviá-lo do tipo de coisa que Aristóteles tem em vista. Pois o que caracteriza a impressão vivificante que o filósofo menciona é justamente a impossibilidade de separar, no seu conteúdo, a verdade, o bem e a beleza. De Platão a Leibniz, não houve um só filósofo digno do nome que não proclamasse da maneira mais enfática a unidade desses três aspectos do Ser. E aí começa o problema: muitos homens não tiveram jamais alguma experiência na qual o belo, o bem e o verdadeiro não aparecessem separados por abismos intransponíveis. Esses homens são vítimas da apeirokalia — e entre eles contam-se alguns dos mais notórios intelectuais que hoje fazem a cabeça do mundo.
Infelizmente, o número dessas vítimas parece destinado a crescer. Já em 1918, Max Weber assinalava, como um dos traços proeminentes da época que nascia, a perda de unidade dos valores ético-religiosos, estéticos e cognitivos. O bem, o belo e a verdade afastavam-se velozmente, num movimento centrífugo, e em decorrência
"os valores mais sublimes retiraram-se da vida pública, seja para o reino transcendental da vida mística, seja para a fraternidade das relações humanas diretas e pessoais... Não é por acaso que hoje somente nos círculos menores e mais íntimos, em situações humanas pessoais, é que pulsa alguma coisa que corresponda ao pneuma profético, que nos tempos antigos varria as grandes comunidades como um incêndio".1
As duas fortalezas do sublime, que Weber menciona, não demoraram a ceder: a vida mística, assediada pela maré de pseudo-esoterismo que se apropriou de sua linguagem e de seu prestígio, acabou por se recolher à marginalidade e ao silêncio para não se contaminar da tagarelice profana. A intimidade, vasculhada pela mídia, violada pela intromissão do Estado, tornada objeto de exibicionismo histérico e de bisbilhotices sádicas, desapropriada de sua linguagem pela exploração comercial e ideológica de seus símbolos, simplesmente não existe mais.

Toda a literatura do século XX reflete esse estado de coisas: primeiro a "incomunicabilidade" dos egos, depois a supressão do próprio ego: a "dissolução do personagem". Mas, desde Weber, muita água rolou. Nas proximidades do fim do milênio, o que se entende por mística é um cerebralismo de filólogos; porintimidade, o contato carnal entre desconhecidos, através de uma película de borracha. Os três valores supremos já não são apenas autônomos, mas antagônicos. O belo já não é apenas alheio ao bem: é decididamente mau; o bem é hipócrita, pseudo-sentimental e tolo; a verdade, feia, estúpida e deprimente. A estética celebra os vampiros, a morte da alma, a crueldade, o macho que mete o braço até o cotovelo no ânus de outro macho. A ética reduz-se a um discurso acusatório de cada um contra seus desafetos, aliado à mais cínica auto-indulgência. A verdade nada mais é o consenso estatístico de uma comunidade acadêmica corrompida até à medula.

Nessas condições, é um verdadeiro milagre que um indivíduo possa escapar por instantes da redoma de chumbo daapeirokalia, e outro milagre que, ao retornar ao pesadelo que ele denomina "vida real", esses instantes não lhe pareçam apenas um sonho, que não se deve mencionar em público.

Mas nada proíbe um escritor de dirigir-se, em suas obras, aos sobreviventes do naufrágio espiritual do século XX, na esperança de que existam e não sejam demasiado poucos. Acossados pelo assédio conjunto da banalidade e da brutalidade, esses podem conservar ainda uma vaga suspeita de que em seus sonhos e esperanças ocultos há uma verdade mais certa do que em tudo quanto o mundo de hoje nos impõe com o rótulo de "realidade", garantido pelo aval da comunidade acadêmica e daFood and Drug Administration. É a tais pessoas que me dirijo exclusivamente, ciente de que não se encontram com mais freqüência entre as classes letradas do que entre os pobres e os desvalidos.