"Novo Código
Penal é obscenidade,
não tem conserto"
Por Pedro Canário e Marcos de Vasconcellos
De todas as atividades que Miguel Reale Júnior já desempenhou na vida, a que melhor o
define, e que exerceu por mais tempo, é a de professor. É livre-docente da
Universidade de São Paulo desde 1973 e professor titular desde 1988. Foi lá
também que concluiu seu doutoramento, em 1971. Tudo na área do Direito Penal.
Fora das salas de aula, foi
ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso, secretário estadual de
Segurança Pública de São Paulo durante o governo de Franco Montoro (1983-1987),
presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos desde sua criação
até 2001 e presidente do PSDB. Mas é a versão "professor" que o
jurista mais deixa aflorar nesta primeira parte da entrevista concedida à
revista Consultor Jurídico no
dia 21 de agosto.
O texto do anteprojeto de
reforma do Código Penal, elaborado por uma comissão de juristas nomeada pelo
Senado, recém-enviado ao Congresso, é hoje o alvo preferido do penalista. “O
projeto é uma obscenidade, é gravíssimo”, diz. Para ele, os juristas
chefiados pelo ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça, não
estudaram o suficiente. “Não têm nenhum conhecimento técnico-científico”,
dispara.
Segundo o professor, faltou
experiência à comissão. Tanto no manejo de termos técnicos e científicos quanto
na elaboração de leis. Entre os erros citados, o mais grave, para Reale Júnior,
foi a inclusão de doutrina e termos teóricos e a apropriação, segundo ele,
indiscriminada, da lei esparsa no código. “Não tem conserto. Os erros são
de tamanha gravidade, de tamanha profundidade, que não tem mais como consertar.”
Leia a primeira parte da entrevista:
ConJur — Qual sua avaliação do projeto de reforma do
Código Penal?
Miguel
Reale Júnior — É
uma obscenidade, é gravíssimo. Erros da maior gravidade técnica e da maior
gravidade com relação à criação dos tipos penais, de proporcionalidade. E a
maior gravidade de todas está na parte geral, porque é uma utilização
absolutamente atécnica, acientífica, de questões da maior relevância, em que
eles demonstram não ter o mínimo conhecimento de dogmática penal e da estrutura
do crime.
ConJur — Onde isso aconteceu?
Miguel
Reale — Basta
ler. Para começar, no primeiro artigo. Está escrito lá: Legalidade. “Não há
crime sem lei anterior”. É anterioridade da lei penal! Não existe lei anterior.
E eles põem a rubrica de penal na legalidade. Nas causas de exclusão da
antijuridicidade, eles colocam “exclusão do fato criminoso”, como se fossem
excluir um fato naturalístico. Não é o fato criminoso que desaparece, é a
ilicitude que desaparece. É ilógico. De repente, desaparece o fato. Veja o
parágrafo 1º: “Também não haverá fato criminoso quando cumulativamente se
verificarem as seguintes condições: mínima ofensividade, inexpressividade da
lesão jurídica”. Mas uma coisa se confunde com a outra.
ConJur — Onde esses erros interferem?
Miguel
Reale — Na parte
do princípio da insignificância, da bagatela, colocam lá como exclusão do fato
criminoso. E o que se conclui? Que é quando a conduta é de pequena ofensa ou que a lesão seja de pequena mora.
Ofensividade e lesividade, para os autores que interpretam, são coisas
diferentes. Tem de ter as duas, a ofensividade e a lesividade. E colocam no
projeto também como condição, em uma linguagem coloquial, “reduzidíssimo”.
Instituiu-se o direito penal coloquial. “Reduzidíssimo grau de reprovabilidade
do comportamento.” “Grau de reprovabilidade reduzidíssimo”. A reprovabilidade é
da culpabilidade, não tem nada a ver com a antijuridicidade. Que haja um
reduzidíssimo grau de reprovação, que isso é uma matéria da culpabilidade, não
tem nada a ver com exclusão da antijuridicidade, que erroneamente eles chamam
de fato criminoso.
ConJur — O que quer dizer "reduzidíssimo"?
Miguel
Reale — Boa pergunta. O que é
reduzidíssimo? Grau de reprovabilidade? A reprovabilidade é elemento da
culpabilidade, é o núcleo da culpabilidade, da reprovação. Não é
antijuridicidade, não é ilicitude. Estado de necessidade. Considera-se em
estado de necessidade quem pratica um fato para proteger bem jurídico. Bem
jurídico é o núcleo, é o valor tutelado da lei penal. Ele não sabe o que é bem
jurídico? Não é bem jurídico, é direito! Bem jurídico é um termo técnico. Qual
é o bem jurídico tutelado pela norma? O juiz vai procurar saber qual é o bem
jurídico. O bem jurídico é a vida, por exemplo. Bem jurídico é um conceito
dogmático geral, é um valor tutelado por um direito. O que isso mostra? Falta
de conhecimento técnico científico de direito jurídico.
ConJur — Faltou conhecimento?
Miguel
Reale — Faltou
estudar. Falta conhecer, manobrar, manejar os conceitos jurídicos. É isso que
preocupa. E tem muitas teorias. Então, vamos em determinado autor, como a
teoria do domínio do fato. É uma determinada teoria. Não pode fazer teoria no
código. Mas existem coisas aqui que realmente ficam... Por
exemplo: “considera-se autor”. Vamos ver se é possível entender essa
frase: “Os que dominam a vontade de pessoa que age sem dolo atipicamente”. Isso
aqui é para ser doutrina. "Atipicamente." Dominam a vontade de pessoa
que age sem dolo "atipicamente". Trata-se de alguém que está sob
domínio físico, como uma pessoa com uma faca no pescoço. Ou quem é coagido.
Usaram uma linguagem que você tem que decifrar. "Dominam a vontade de
pessoa que age sem dolo". Como sem dolo? "Justificada" é quem
vai e atua em legítima defesa, não tem nada a ver com falta de dolo. Não é
dolo. Então, é agir sem dolo de forma justificada? Isso não existe! Não se
concebe isso porque são conceitos absolutamente diversos e diferentes.
ConJur — São erros banais?
Miguel
Reale — Banais.
Em suma, trouxeram toda a legislação especial sem se preocupar em melhorar essa
legislação esparsa que estava aí, extravagante, que tinha erros manifestos já
anotados pela crítica e transpõe sem mudar nada. Crimes financeiros, crimes
ambientais. Eu defendo que a lei dos crimes ambientais foi a pior lei
brasileira. Mas esse projeto ganha por quilômetros...
ConJur — A Lei de Crimes Ambientais é tão ruim?
Miguel
Reale — Ela diz que a responsabilidade da pessoa jurídica
só ocorrerá se houver uma decisão colegiada pela conduta criminosa, cometida
por decisão do seu representante legal ou por ordem do colegiado, em interesse
e benefício da entidade. Mas a maior parte dos crimes ambientais são culposos,
os mais graves. Quando vaza petróleo na Chevron, por exemplo, não houve uma
decisão: “Vamos estourar o cano aqui e destruir ecossistemas...” Pela lei,
precisa haver uma decisão de prática do delito. Deixar escrito: “Vamos praticar
o delito.” No projeto de Código Penal, eles reproduzem a lei ambiental, mas têm
a capacidade, que eu mesmo imaginava inexistente, de aumentar ainda mais as tolices.
ConJur — Por que aconteceram erros tão graves?
Miguel
Reale — Não sei. Há pessoas até muito amigas, mas que não
têm experiência na área efetivamente acadêmica ou experiência legislativa. Eles
não conhecem teoria do Direito. Estão trabalhando com teoria do Direito com
absoluto desconhecimento técnico.
ConJur — Como foi escolhida a comissão?
Miguel
Reale — Foi o Sarney. Foram
pessoas conhecidas, do Sergipe, de Goiás. É o "Código do Sarney",
porque daqui a pouco acaba o mandato dele, mas o código criado por ele precisa
perdurar. O que mais me impressiona é a forma como isso foi feito.
ConJur — Qual foi?
Miguel
Reale — Foi picotado. Tanto
que na exposição de motivos, cada artigo vem assinado por uma pessoa. Não houve
trabalho conjunto sistemático, não houve meditação. Eu participei de várias
comissões legislativas. O trabalho que dá é você pôr a cabeça no travesseiro,
pensar, trocar ideias, fazer reuniões, brigar.
ConJur — Falhas teóricas prejudicam os méritos do
texto?
Miguel
Reale — Seria uma vergonha para a Ciência Jurídica
Brasileira se saísse um código com erros tão profundos. Quando você acha que
encontrou um absurdo, leia o artigo seguinte. O artigo 137 prevê que a pena
para difamação vai de um a dois anos. Já o artigo 140 diz que se a difamação
for causada por meio jornalístico, a pena é o dobro. A Lei de Imprensa, que foi
declarada inconstitucional, e era considerada dura demais, previa que a pena
para isso era de três meses!
ConJur — O texto recebeu elogios.
Miguel
Reale — Os elaboradores é
que falaram bem! Fizeram um Código Penal que jornalista gosta. Punham no jornal
e se valiam dos meios de comunicação do STJ ou do Senado para agitar a
imprensa. Quem é que falou bem? Qual foi o jurista que falou bem? Até porque não
se conhecia o projeto, só se conhecia por noticia de jornal. Isso que eu estou
dizendo sobre o fato criminoso é gravíssimo. Mas tem erros que já estavam
incluídos nos dados preparatórios, como o nexo de causalidade. Eles vão mexer
em termos que estavam consagrados no Direito, que ninguém.
ConJur — Não estavam em pauta?
Miguel
Reale — Não
estavam pauta, já estavam consolidadas no Código Penal. Não é uma coisa para
ser mexida, nós mesmos não mexemos em 1984, quando fizemos a reforma da parte
geral. Mexemos na parte do sistema de penas, mas eles acabaram com o livramento
condicional sem justificativa.
ConJur — Foi para diminuir as penas das condenações?
Miguel
Reale — Pelo
contrário, as penas são elevadíssimas! E para fatos irrelevantes. "Artigo
394: omissão de socorro para animal." A qualquer animal. Se você passa e
encontra um animal em estado de perigo e não presta socorro a esse animal, sem
risco pessoal, sabe qual é a pena? De um a quatro anos. Agora, omitindo socorro
a criança extraviada, abandonada ou pessoa ferida, sabe qual a pena? Um mês. Ou
seja, a pena por não prestar socorro a um animal é 12 vezes maior do que a pena
de não prestar socorro a uma pessoa ferida. Outro exemplo: pescar ou
molestar cetáceo. Sabe qual é a pena? Dois a quatro anos. Mas se você molestar
um filhote de cetáceo, é três anos. Se você só pesca o cetáceo é dois, mas se o
cetáceo morre, passa para quatro anos. Você vai pescar para quê? Para colocar a
baleia no aquário dentro de casa?
ConJur — E sem livramento condicional.
Miguel
Reale — Pois é.
Acabar com o livramento condicional é uma violência. Eles criam uma barganha
com a colaboração da Justiça. A barganha elimina o processo sem a presença do
réu, e é feita pelo advogado ou defensor público que estabelece que não haverá
processo. Então, aceita-se uma negociação na qual haverá a imposição de uma
pena reduzida sem que se possa aplicar o sistema fechado.
ConJur — De onde tiraram isso?
Miguel
Reale — Do
sistema americano. Para qualquer crime, qualquer delito, haverá barganha para
não manter o sistema fechado. E depois da colaboração, já mais vergonhosa de
todas, porque quebra com todos os sistemas éticos de vida, que é denunciar os
amigos para todos os delitos, vem a colaboração com a Justiça em qualquer tipo
de crime. Aí o sujeito não é apenado, em qualquer tipo de delito, se ele antes
da denúncia apresentar uma investigação, elementos suficientes para culpar os
coautores, os cúmplices. É uma coisa importada. Esse exemplo americano é
extremamente grave, porque nos Estados Unidos já se tem a comprovação, estudos
estatísticos, do número de pessoas que, na incapacidade de produzir provas a
seu favor, na falta de ter um advogado competente, aceitam a barganha porque
acham melhor, mais seguro aceitar uma pena menor do que enfrentar o processo.
ConJur — Mesmo sendo inocentes?
Miguel
Reale — Mesmo
sendo inocentes. O número de inocentes que acabam aceitando a barganha, com a
ameaça de que haverá uma pena muito maior de outra forma, é muito grande. Por
outro lado, a colaboração da Justiça é o sujeito ficar praticando o delito até
a hora que a barca vai afundar. Na hora que a barca afunda, ele pula fora e
entrega os outros. Quer dizer, é o Estado se valendo da covardia e da falta de
ética do criminoso. É a ética do delator. É premiar o mal caráter, premiar o
covarde. Porque há de ter pelo menos um código de ética entre aqueles que
praticam o crime.
ConJur — O novo Código Penal vai acabar com isso?
Miguel
Reale — Todas as
leis internacionais querem introduzir normas de delação. Delação demonstra o
seguinte: incapacidade de apuração. É o juiz, recebendo os fatos, considerar o
perdão judicial e a consequente extinção da punibilidade. Se imputado como
primário, ou reduzirá a pena de um terço a dois terços ou aplicará somente a
pena restritiva. Quer dizer, não tem pena de prisão ao acusado que tenha
colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação. Mas como
voluntariamente? Ele está com um processo em cima dele.
ConJur — Como funcionaria essa delação?
Miguel
Reale — Você
delata, sua delação fica sigilosa, e depois que é delatado é dado conhecimento
dela aos advogados das partes, ou dos réus, que foram delatados pelo
beneficiário. É delação de coautor. Os coautores vão ser processados por causa
da delação. Está dizendo aqui que não basta a delação para ser prova, tem que
ter outros elementos. Mas ele delatou. E se não tiver nenhuma outra prova? Não
está escrito aqui. Aqui diz a total ou parcial identificação dos demais
coautores, e não prova.
ConJur — Ou seja, é preciso correr para delatar
primeiro e não ser delatado por um comparsa.
Miguel
Reale — Sim. E a delação tem de ter como resultado:
"a total ou parcial identificação dos demais coautores ou partícipes da
ação criminosa; a localização da vítima com a sua integridade física
preservada". Aqui é no caso de um sequestro. Recuperação total ou parcial
do produto do crime.
ConJur — Dispositivos como esses são para ganhar
manchetes?
Miguel
Reale — É isso
que estou dizendo, não se faz Código Penal com o jornalista à porta. A cada
pérola produzida, punham na imprensa. Os notáveis não têm o menor conhecimento
técnico-científico, o menor conhecimento jurídico. O que me espantou foi, na
parte geral, encontrar isso. Confusões gravíssimas conceituais. Algumas
coisas são mais técnicas. “A realização do fato criminoso exige ação ou
omissão, dolosa ou culposa, que produza ofensa, potencial ou ofensiva.” Tem
vários crimes que não têm ofensa potencial ou efetiva. Por exemplo: tráfico de
drogas, não tem. Qual a ofensa potencial que o tráfico de drogas oferece a
um determinado bem jurídico? Não tem. São chamados crimes de perigo abstrato,
em que você presume que há um perigo em decorrência dele. Porte de
entorpecentes, por exemplo. Porte de arma é crime grave hoje. Não tem nenhuma
ofensa potencial ou efetiva. Porque é um crime de perigo abstrato, é um crime
chamado de "de mera conduta". E hoje isso se repete. Em vários tipos
de delito há a figura do crime de perigo abstrato. Quando fala do fato
criminoso, você já está incluindo todos os crimes de perigo abstrato. Isso tem
que ser comedido. Têm de ser limitados os crimes de perigo abstrato, mas com o
novo texto, acaba-se com os crimes de perigo abstrato. Tem ainda uma frase que
eu não consegui entender: “A omissão deve equivaler-se à causação”. Como
ela mesma vai se equivaler? Não dá para entender. Tem outra coisa aqui: “o
resultado exigido.” Exigido por quem?
ConJur — Seria o resultado obtido?
Miguel
Reale — Claro!
Resultado exigido? Por quem? O resultado exigido pela norma?
ConJur — O senhor havia falado da questão do dolo.
Miguel
Reale — Isso. O
artigo 18, inciso I, diz: “doloso, quando o agente quis realizar o tipo penal
ou assumiu o risco de realizá-lo”. Eu quis o tipo penal? O tipo penal tem
vários elementos constitutivos. É falta de conhecimento técnico no uso dos
termos técnico-jurídicos. O tipo penal é um conceito da estrutura do crime,
dogmático. Não se "quer o tipo penal", se quer a ação. O texto
diz também que há um início de execução quando o autor realiza uma das condutas
constitutivas do tipo ou, segundo seu plano delitivo, pratica atos
imediatamente anteriores à realização do tipo. Se você não realizou, são os
atos preparatórios que exponham a perigo o bem jurídico protegido. Isso é o
samba do crioulo doido! Por isso que eu disse que o problema não é ser técnico,
é ser compreensível e se ter um pouco de lógica, de fundamento, de conhecimento.
São coisas que realmente me deixam extremamente preocupado.
ConJur — Pode melhorar no Congresso?
Miguel
Reale — Não tem
conserto. Os erros são de tamanha gravidade, de tamanha profundidade, que não
tem mais como consertar. Eu sei que o Executivo não põe suas fichas nesse
projeto. O projeto é realmente de envergonhar a ciência.
ConJur — O desinteresse do governo é aberto?
Miguel
Reale — Não. Eu
tive notícias de que o Executivo não teria interesse porque sabe dos
comprometimentos, das ausências técnicas que estão presentes nesse projeto.
ConJur — Já lhe consultaram?
Miguel
Reale — Não. E o
membro mais importante que tinha nessa comissão, que tinha experiência
legislativa, era um acadêmico. Era o professor Renê Dotti, que saiu dizendo que
não tinha condições de permanecer ali do jeito que os trabalhos estavam sendo
conduzidos.
ConJur — No seu ponto de vista, qual é o erro
principal?
Miguel
Reale — É você
estabelecer uma punição, uma interferência do Direito Penal em fatos que devem
ser enfrentados pelo processo educacional, processo de educação na escola,
processo de educação na família, e não com a repressão penal.
ConJur — Tentar resolver todos os problemas com
punição pode ser visto como reflexo do momento social em que vivemos?
Miguel
Reale — Também. Imaginar que trazer punição do Direito
Penal para resolver as coisas, que vamos dormir tranquilos porque o Direito
Penal está resolvendo tudo. É a ausência dos controles informais, a escola, a
igreja, a família, o sindicato, o clube, a associação do bairro, a vizinhança
etc. São todas formas naturais, sociais, de controle social. Quando os
controles informais já não atuam, se reforça o Direito Penal como salvação.
Passa a ser o desaguador de todas as expectativas.
ConJur — Isso mostra uma hipertrofia do Estado?
Miguel
Reale — Uma
grande hipertrofia e uma fragilidade política e uma fragilidade social.
Políticas de sociabilidade, políticas de agonia social. É um agigantamento do
Direito Penal.
ConJur — Passamos também por um afã acusatório, ou
seja, é mais importante fazer uma acusação do que se chegar a uma solução?
Miguel
Reale — Sim. Isso
passa um pouco pela dramatização da violência, pelo Direito Penal presente nos
meios de comunicação diariamente, uma exacerbação. Ao mesmo tempo em que existe
uma crença no Direito Penal, há uma descrença, porque se chega a um momento de
grande decepção. Ao mesmo tempo em que depositam todas as fichas no
Direito Penal, as pessoas dizem: “Mas ninguém vai ser punido” ou “só vão ser
punidos os pequenos, e os grandes nomes vão se safar”. A pesquisa da Folha de S.Paulo sobre o mensalão é um exemplo. As
pessoas acham que os réus são culpados, mas 73% acham que eles não serão
punidos. Ou seja, é ao mesmo tempo ter o Direito Penal como único recurso, e
saber que esse recurso não vai funcionar. Aí vem um grande desânimo que acaba,
talvez, levando negativamente a uma grande permissividade.
ConJur — O nosso sistema penal está preparado para
isso?
Miguel
Reale — Não,
inclusive com esse problema de não haver o livramento condicional. O que eu
vejo é o seguinte: grande parte da população carcerária está presa por crime de
roubo, violência, crime contra patrimônio, ou seja, roubo comum, roubo à mão
armada, latrocínio e tráfico de drogas. Esses são os crimes, os núcleos que
mais levam à prisão. A maior parte é por latrocínio e tráfico de drogas, que
são crimes hediondos. Ser crime hediondo não levou a uma redução da incidência
criminal. E os crimes de roubo, que crescem vertiginosamente, crime de roubo
comum ou roubo à mão armada, ou mesmo, infelizmente, com mais gravidade, o
latrocínio, cresceram vertiginosamente, pelo menos em São Paulo, e é um crime
hediondo. Por que se dissemina? Porque existe uma grande impunidade. Essa impunidade
vem do quê? Da falta de apuração dos fatos delituosos.
ConJur — Então o problema é da falta de polícia e não
de lei?
Miguel
Reale — Nem da
falta de lei, nem da falta de polícia. É da falta de investigação. O percentual
dos crimes de roubo cuja a natureza é descoberta é de apenas 2%. Então, se nós
temos 500 mil presos a maioria desses presos é por roubo, imagina se você
descobrisse dez vezes mais, ou 20%. Qual seria a população carcerária? Eu mesmo
fui assaltado duas vezes e não registrei boletim de ocorrência. O
problema todo é imaginar que a lei penal em abstrato tenha efeito intimidativo.
O que tem efeito intimidativo é a lei quando é efetivada ou quando se mostra
possível de efetivar. Vou dar um exemplo: se você está em um estrada e passa um
carro no sentido contrário e dá um sinal de luz, você diminui a velocidade
porque tem guarda rodoviário pela frente. Quando você passa o guarda
rodoviário, você acelera. Quando você está na estrada e tem lá o radar, você
diminui. Então o que é? É a presença efetiva, ou humana ou por via de
instrumentos de controle.
ConJur — Neste ano, o Código Civil, cujo anteprojeto
foi elaborado pelo seu pai, Miguel Reale, faz dez anos. Foi um projeto que
demorou 25 anos para ser aprovado, aparentemente sem pressa.
Miguel
Reale — E foi um
trabalho imensamente meditado. Depois veio a Constituição Federal, daí houve
400 emendas oferecidas, um grande trabalho do relator no Senado, e meu pai
respondeu as 400 emendas sozinho, à mão. Nós temos tudo isso feito à mão por
ele, anotado. Eu guardo tudo isso em um instituto que nós temos.
ConJur — Quanta gente havia na comissão elaboradora?
Miguel
Reale — Pouca
gente. E o Código Civil está produzindo efeitos, tem novidades e contribuições
importantes. Há erros, mas ao mesmo tempo foi reconhecido o imenso avanço que o
Código Civil trouxe na consagração de valores importantes do Direito Civil,
como a função social, como a sociabilidade. Um código voltado para um futuro
aberto graças a normas que têm cláusulas abertas, cláusulas gerais. Foi um código
muito pensado, muito meditado, meu pai discutia muito com outros professores,
como o professor Moreira Alves, com quem trocava ideias, e havia troca de
ideias no Congresso Nacional. Assim que se faz uma legislação de tamanha
grandeza.
ConJur — O fato de o Direito mudar muito rápido não
exige que se aprove uma lei antes que seja tarde demais?
Miguel
Reale — Aí é que
fica tarde demais, porque já nasce mal feito. Não se pode fazer uma legislação
dessa maneira, de afogadilho. Aliás, tem coisas ali no projeto de reforma do
Código Penal que são notáveis, como toda a questão da parte geral, que exige um
profundo conhecimento da estrutura do crime, da dogmática penal. E já foi visto
que não existe nem de longe o conhecimento técnico-jurídico penal na parte geral,
que é a parte central.
Revista Consultor Jurídico,
2 de setembro de 2012
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IBCCrim pede
suspensão do novo Código Penal
Por Elton Bezerra
A primeira parte da audiência
pública promovida nesta quarta-feira (29/8) pelo IBCCrim sobre o novo Código
Penal foi marcada por debates acalorados, provocações e até um manifesto,
que pede a suspensão do anteprojeto elaborado por uma comissão de
juristas. Assinado pelo IBCCrim e pelo Instituto Manoel Pedro Pimentel, da
Faculdade de Direito da USP, o documento diz que o novo ordenamento foi
conduzido de forma açodada, sem consulta à comunidade jurídica.
“Magistrados, membros do
Ministério Público, advogados, delegados de Polícia, professores de Direito
Penal e ciências afins não tiveram tempo para opinar sobre uma proposta de
crimes e penas dirigidas para milhões de brasileiros”, diz trecho do manifesto.
As entidades reclamam, ainda, que
teria havido pouco tempo para a análise do projeto, o qual estaria cheio de
“vícios”, como a falta de proporcionalidade entre crimes e penas e uso de
linguagem incorreta. “Por todas essas razões apontadas, torna-se imperioso
o imediato sobrestamento do projeto nº 236/2012 para a mais ampla consulta à
Nação, à comunidade científica e aos operadores jurídicos”, finaliza o
manifesto, distribuído no 18º Seminário Internacional de Ciências Criminais do
IBCCrim. Nesta quinta-feira (30/8), o instituto promove a segunda parte da
audiência pública.
O ataque
A mesa que conduziu a audiência foi composta por dois críticos do novo Código
Penal, o ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior e o professor da UFPR, René
Dotti. O defensor da proposta de novo ordenamento jurídico foi o relator
do projeto e procurador regional da República Luis Carlos dos Santos Gonçalves.
Reale Júnior e René Dotti
chamaram o novo Código Penal de "Projeto Sarney" e foram bastante
aplaudidos em suas exposições, inflamadas e contundentes. “Isso fará vergonha à
comunidade jurídica internacional”, afirmou Reale.
O seu companheiro de mesa e
ideias, Rene Dotti, que chegou a fazer parte da comissão de juristas
responsáveis pela elaboração do projeto, falou por que abandonou o grupo. “Fui
a uma das audiências públicas pautadas pelo interesse da mídia e grupos de
pressão, onde nada de concreto pude fazer”, justificou.
Ele exibiu uma lista com diversos
artigos dos quais pinçou o que seriam, em sua avaliação, erros e aspectos
problemáticos. “Não há no projeto Sarney a cominação da multa, a não ser em
casos excepcionais. É só prisão”, citou como exemplo.
Outro ponto para o qual ele
chamou atenção refere-se aos prazos de prescrição. “Agora, senhores advogados,
a Polícia pode gastar na investigação e o MP pode gastar em pensar a denúncia
até a véspera da prescrição da pena em abstrato. Isso é um
atraso.”
Dotti também atacou a cláusula
que preserva movimentos sociais do crime de terrorismo. “Essa proposta de
exclusão é claramente inconstitucional”, afirmou, citando o MST. “Por que não
dizer aqui abertamente? O MST tem proposta altamente social sem dúvida nenhuma.
Nada contra o MST como instituição, mas sim quando comete crime.”
Miguel Reale Junior centrou suas
críticas em aspectos relacionados a questões teóricas do Direito e foi bastante
irônico. “O projeto liberal propõe aos jornalistas uma pena oito vezes maior do
que propunha a lei de imprensa, que foi considerada um entulho autoritário”.
A defesa
Em sua exposição, o relator do novo Código Penal, Luis Carlos dos Santos
Gonçalves, reconheceu que há falhas no texto. Ele fez um resumo das
principais propostas apresentadas. Segundo ele, a adoção do novo Código Penal
pode trazer benefícios para cerca de metade dos 471 mil presos no Brasil. “O
nosso projeto é descriminalizador e descarcerizador”, declarou. “As maiores
críticas que temos recebido é pelo caráter liberal. Vozes que vocês conhecem
estão clamando por aumento de penas e redução de benefícios.”
Segundo Gonçalves, o novo CP
reduzirá o número de tipos penais em vigor, que atualmente seriam 661, de
acordo com seus cálculos. Com o novo diploma, esse número cairia para 374, já
contando o Tratado de Roma. Apesar da enxurrada de críticas que e texto
recebeu, o redator levou com bom humor o rótulo de "Projeto Sarney"
dado por seus colegas ao novo Código Penal. “Para nós, é um avanço. Até outro
dia, ele era conhecido como 'Pojeto Cabaré', pois previa a descriminalização
das casas de prostituição”.
Clique aqui para ler o manifesto do IBCCrim.
Revista Consultor Jurídico,
30 de agosto de 2012