terça-feira, 29 de dezembro de 2009

O Caminho Oblíquo

"Rafael (Hitiodeu) entremeava a sua narrativa com as reflexões mais profundas. Examinando cada forma de governo, analisava, com uma sagacidade maravilhosa, o que há de bom e verdadeiro numa, de mau e de falso noutra. Ao ouvi-lo discorrer tão sabiamente sobre as instituições e os costumes dos diferentes povos, era de pensar-se que vivera toda a vida nos lugares por onde apenas passara. Pedro não pode conter a sua admiração.
Na verdade, disse, meu caro Rafael, espanto-me que não vos tivésseis posto a serviço de algum rei. Certamente não haveria um só que não encontrasse em vós utilidade e satisfação. Encheríeis de encanto os seus lazeres com o vosso conhecimento universal das coisas e dos homens, e os incontáveis exemplos, que poderíeis citar, proporcionar-lhe-iam um sólido ensinamento e conselhos preciosos. Faríeis, ao mesmo tempo, uma brilhante fortuna para vós e os vossos.
- Eu pouco me inquieto com a sorte dos meus, retomou Hitiodeu. Creio ter cumprido sofrivelmente os meus deveres para com eles. Os outros homens só abrem mão de seus bens já velhos e na agonia, e é ainda chorando, que renunciam ao que suas mãos desfalecentes não mais podem reter. Eu, cheio de saúde e juventude, tudo dei aos meus parentes e amigos. - Eles não se queixarão, espero, do meu egoísmo; não exigirão que, para cumulá-los de ouro, eu me faça escravo de um rei.
- Entendamo-nos, disse Pedro, a minha intenção não foi a de que servísseis um príncipe como lacaio e sim como ministro.
- Os príncipes, meu amigo, põem nisto pouca diferença; e, entre estas duas palavras latinas servire e inservire, vêm apenas uma sílaba a mais, ou a menos.
- Chamai a coisa como quiserdes, respondeu Pedro; é o melhor meio de ser útil ao público, aos indivíduos, e de tornar mais feliz a própria situação.
- Mais feliz, dizeis! Mas, como aquilo que repugna ao meu sentimento, ao meu caráter, poderia fazer minha felicidade? Presentemente sou livre, vivo como quero, e duvido que muitos dos que vestem a púrpura possam dizer o mesmo. Muita gente ambiciona os favores do trono; os reis não sentirão falta, se eu e dois ou três da minha têmpera não nos encontrarmos entre os cortesãos.
Então falei assim:
É evidente, Rafael, que não procurais riquezas nem poder, e não tenho menos admiração e estima por um homem como vós, do que por aquele que está à frente de um império. Parece-me, entretanto, que seria digno de um espírito tão generoso, tão filósofo, como o vosso, aplicar todos os seus talentos na direção dos negócios públicos, embora houvesse que comprometer o seu bem estar pessoal; ora, a maneira de o fazer com mais proveito, é ainda a de entrar para o conselho de algum grande príncipe; estou certo de que a vossa boca não se abrirá jamais, senão para a virtude e para a verdade. Vós o sabeis, o príncipe é a fonte de onde o bem e o mal jorram, como uma torrente, sobre o povo; e possuís tanta ciência e tantos talentos que, embora não tivésseis o hábito dos negócios, daríeis, mesmo assim, um excelente ministro para o rei mais ignorante.
- Incidis num duplo erro, caro Morus, replicou Rafael; e não só quanto ao fato em si como quanto à pessoa; estou longe de ter a capacidade que me atribuis; e mesmo que a tivesse cem vezes maior, o sacrifício de meu sossego seria inútil à causa pública.
Em primeiro lugar, os príncipes cuidam somente da guerra (arte que me é desconhecida e que não tenho nenhum desejo de conhecer). Eles desprezam as artes benfazejas da paz. Trate-se de conquistar novos reinados, e todos os meios lhes parecem bons; o sagrado e o profano, o crime e o sangue, não os detêm. Em compensação, ocupam-se muito pouco de bem administrar os Estados submetidos à sua dominação.
Quanto aos conselhos dos reis, eis aproximadamente a sua composição:

[...]

Que sucede então no seio desses conselhos onde reinam a inveja, a vaidade e o interesse?

[...]

Julgai ainda que as pessoas da corte levariam em grande consideração minha pessoa e meus conselhos?
Respondi a Rafael: [...] Persisto na mesma opinião a vosso respeito, estando persuadido de que vossos conselhos seriam de uma alta utilidade pública, se quisésseis vencer o horror que vos inspiram os reis e as cortes. E não é um dever para vós, como para todo bom cidadão, sacrificar ao interesse geral as suas ojerizas particulares? Platão disse: A humanidade será feliz um dia, quando os filósofos forem reis, ou quando os reis forem filósofos. Ai! Como está longe de nós esta felicidade quando os filósofos nem ao menos se dignam assistir os reis com seus conselhos!
Caluniais os sábios, replicou-me Rafael; eles não são bastante egoístas para esconder a verdade; muitos a têm revelado em seus escritos; e se os senhores do mundo estivessem preparados para receber a luz, poderiam ver e compreender. Infelizmente cega-os uma venda fatal, a venda dos preconceitos e dos falsos princípios, em que se formaram e dos quais foram inficionados já na infância. Platão não ignorava isso; sabia, como nós, que os reis nunca seguiam os conselhos dos filósofos, se eles próprios já não o eram também. Platão teve disso a triste experiência na corte de Diniz, o Tirano.
Suponhamos, pois, que eu seja ministro de um rei. Proponho-lhe os decretos mais salutares; esforço-me por arrancar de seu coração e de seu império todos os germes do mal. Acreditais que não me expulsará da corte ou que não me exporá ao riso dos cortesãos?

[...]

Volto à minha hipótese. Se fosse mais longe ainda; se, dirigindo-me ao próprio monarca, o fizesse ver que essa paixão de guerrear, que transtorna as nações, depois de ter esgotado as finanças e arruinado o povo, poderia ocasionar as conseqüências mais fatais; se lhe dissesse:
Senhor, aproveitai a paz que um feliz acaso vos concede, cultivai o reino de vossos pais, fazei nele florescer a felicidade, a riqueza e a força; amai vossos súditos, e que o amor deles faça a vossa alegria; vivei como pai no meio deles e não comandai nunca como déspota; deixai em paz os outros reinos; aquele que vos coube por herança é suficientemente grande para vós.
Dizei-me, caro Morus, com que espécie de bom ou mau humor seria acolhida semelhante arenga?
- Com péssimo mau humor, respondi.

[...]

Se outra vez me erguesse, e falasse assim a esses poderosos senhores:
Vossos conselhos são infames, vergonhosos para o rei, funestos para o povo. A honra de vosso senhor e a sua felicidade consistem na riqueza de seus súditos mais ainda do que na sua própria. Os homens fizeram os reis para os homens e não para os reis; colocaram chefes à sua frente para que pudessem viver comodamente ao abrigo das violências e dos ultrajes; o dever mais sagrado do príncipe é velar pela felicidade do povo antes de velar pela sua própria; como um pastor fiel, deve dedicar-se a seu rebanho, e conduzi-lo às pastagens mais férteis.
Sustentar que a miséria pública é a melhor salvaguarda da monarquia é sustentar um erro grosseiro e evidente; onde se vêm mais querelas e rixas do que entre os mendigos?
Qual o homem que mais deseja uma revolução? Não será aquele cuja existência atual é miserável?
Qual o homem que revelará maior audácia em subverter o Estado? Não será aquele que com isso só pode ganhar por nada ter a perder?
Um rei que provocasse o ódio e o desprezo dos cidadãos e cujo governo não pudesse se manter senão pelas vexações, pela pilhagem, pelo confisco e pela miséria universal, deveria descer do trono e depor o poder supremo. Empregando estes meios tirânicos, talvez pudesse conservar o nome de rei, mas de rei não teria mais nem o ânimo nem a majestade. A dignidade real não consiste em reinar sobre mendigos, mas sobre homens ricos e felizes.
Fabricius, esta grande alma, estava todo penetrado desse sublime sentimento quando respondeu: Prefiro governar ricos do que eu mesmo ser rico. E, de fato, nadar em delícias, saciar-se de voluptuosidades em meio às dores e gemidos de um povo, não é manter um reino e sim uma cadeia.
O médico que só sabe curar as moléstias de seus clientes dando-lhes moléstias mais graves, passa por ignaro e imbecil; confessai, pois, - ó vós que não sabeis governar senão arrebatando aos cidadãos a subsistência e as comodidades da vida! - confessai que sois indignos e incapazes de dirigir homens livres! Ou então corrigi vossa ignorância, vosso orgulho e vossa preguiça: é isso o que excita o ódio e o desprezo pelo soberano. Vivei de vosso patrimônio, segundo a justiça; medi vossas despesas na proporção de vossas rendas; detei as torrentes do vício; criai instituições de benemerência, que previnam o mal e o estiolem no germe, ao em vez de inventar suplícios contra os infelizes que uma legislação absurda e bárbara impele ao crime e à morte.

[...]

Mas, dizei-me, caro Morus, pregar uma tal moral a homens que por interesse e por sistema se orientam por princípios diametralmente opostos, não é contar histórias a surdos?
- E a surdos como portas, respondi. Mas isto não me espanta, e, para vos revelar o meu modo de pensar, é perfeitamente inútil dar conselhos quando se tem a certeza de que serão repelidos, quer na forma, quer no fundo. Ora, os ministros e os políticos de hoje, estão impregnados de erros e preconceitos; como quereis bruscamente modificar suas crenças e fazer penetrar, de chofre, em suas cabeças e em seu coração, a verdade e a justiça? Esta filosofia escolástica está no seu lugar em uma conversação familiar, entre amigos; está fora de propósito nos conselhos dos reis, onde grandes coisas são tratadas com grande autoridade e em face do poder supremo.
- Era isto o que vos dizia ainda agora, retrucou Rafael, a filosofia não tem acesso na corte dos príncipes.
- Dizeis a verdade se vos referis a esta filosofia de escola, que ataca de frente, e cegamente, os tempos, os lugares, e as pessoas. Mas, existe uma filosofia menos selvagem; esta conhece o teatro em que atua, e, na peça que deve representar, desempenha seu papel com decência e harmonia. É esta a que deveis empregar.
Suponhamos que, durante a representação de uma comédia de Plauto, no momento em que os escravos estão de bom humor, irrompeis em cena, em trajes de filósofo, declamando a passagem de Otávio, em que Sêneca repreende e prega moral a Nero; duvido muito que fôsseis aplaudido. Certamente, teríeis agido com mais acerto se vos tivésseis limitado ao papel de um personagem mudo do que oferecer ao público este drama tragicômico. Um monstruoso amálgama destes estragaria todo o espetáculo, mesmo que a vossa citação valesse cem vezes mais do que a peça. Um bom ator pôe todo seu talento no papel que vai representar, qualquer que ele seja; e não perturba o conjunto, porque lhe ocorre à fantasia declamar uma tirada magnífica e pomposa.
Da mesma maneira convém agir quando se delibera acerca dos negócios do Estado, no seio do conselho real; Se não se pode desarraigar de uma só vez as máximas perversas, nem abolir os costumes imorais, não é isto razão para se abandonar a causa pública. O piloto não abandona o navio diante da tempestade porque não pode domar o vento.
Falais a homens imbuídos de princípios contrários aos vossos; que caso poderão fazer de vossas palavras, se lhes atirais à face a contradita e o desmentido? Segui o caminho oblíquo - ele vos conduzirá mais seguramente à meta. Aprendei a dizer a verdade com propriedade e a propósito; e, se vossos esforços não puderem servir para efetuar o bem, que sirvam ao menos para diminuir a intensidade do mal; porque tudo só será bom e perfeito, quando os próprios homens forem bons e perfeitos; e até lá, os séculos passarão.
Rafael respondeu:
Quereis saber o que me sucederia se assim procedesse? Ao querer curar a loucura dos outros, acabaria demente também. Mentiria, se falasse doutra maneira da que vos falei. A mentira é talvez permitida a certos filósofos, mas não está em minha natureza. Sei que minha linguagem parecerá dura e severa aos conselheiros do rei; apesar disso, não vejo por que sua novidade seja de tal modo estranha que toque ao absurdo. Se me referisse às teorias da república de Platão, ou aos usos atualmente em vigor entre os utopianos, coisas melhores e infinitamente superiores às nossas idéias e costumes, então, poder-se-ia crer que eu vinha de outro mundo, porque aqui o direito de possuir de seu pertence a cada um, enquanto que lá todos os bens são comuns. Mas, o que disse eu que não fosse conveniente e mesmo necessário de se divulgar. Minha moral mostra o perigo e dele salva o homem. ponderado; não fere senão o insensato que se atira de olhos fechados ao abismo.
Há covardia ou má fé em calar as verdades que condenam a perversidade humana, sob o pretexto de que serão escarnecidas como novidades absurdas ou quimeras impraticáveis. De outra forma, seria necessário deitar um véu sobre o Evangelho e dissimular aos cristãos a doutrina de Jesus. Mas Jesus proibia a seus apóstolos o silêncio e o mistério; repetia-lhes sempre: O que vos digo em voz baixa e ao ouvido, pregai pôr toda parte, em voz alta e às claras. Ora, a moral de Cristo está muito mais em contradição aos costumes deste mundo, do que os nossos discursos.
Os Pregadores, homens sagazes, seguiram o caminho oblíquo de que me falastes há pouco; vendo que repugnava aos homens acomodar seus maus costumes à doutrina cristã, torceram o Evangelho, como se fosse uma lei de chumbo, para modelá-lo segundo os maus costumes dos homens. Onde os conduziu esta hábil manobra? A dar ao vício a calma e a segurança da virtude.
Quanto a mim, não obteria melhor resultado nos conselhos dos príncipes, porque, ou minha opinião é contrária à opinião geral, e, nesse caso, não seria tomada em consideração, ou coincide com a opinião geral, e então, deliro também com os loucos, segundo a expressão de Micion, a personagem de Terêncio.
Assim, não vejo aonde pode levar o vosso caminho retorcido. Dizeis: Quando não se pode atingir a perfeição, deve-se, ao menos, atenuar o mal. Mas aqui, a dissimulação é impossível e a conivência um crime, pois se trata de aprovar as propostas mais execráveis, de votar decretos mais perigosos que a peste, e, neste caso, aprovar perfidamente deliberações infames como essas, seria comportar-se tal qual um espião e um traidor.
Não há, pois, nenhuma maneira de ser útil ao Estado nessas altas regiões. O ar que aí se respira corrompe a própria virtude. Os homens que vos cercam, longe de corrigir-se com os vossos ensinamentos, vos depravam com seu contato e pela inf1uência de sua perversão; e se conservais vossa alma pura e incorruptível, servireis de manto às suas imoralidades e loucuras. Não há, pois, esperança de transformar o mal em bem, trilhando o vosso caminho oblíquo, aplicando os vossos meios indiretos".

(São Thomas Morus, “Utopia”, Livro Primeiro)

Um mundo insaciavelmente maluco

"É como se dissesse assim: você tem um doente na sua casa. Este doente está infectado por uma doença contagiosa. Existem três atitudes: você pode enxotar este doente da sua casa e você vai dizer: Oh! Cai fora daqui, que você vai contaminar todo mundo, suma daqui! Bom, você não amou esta pessoa. Você pode tomar outra atitude extrema, que é ficar abraçando e beijando este doente o tempo inteiro e você termina contaminado. Mas existe a atitude prudente e sensata que é você colocar uma máscara, não tomar água nos mesmos copos e nem usar os mesmos talheres daquela pessoa, e ao mesmo tempo servi-lo, cuidar dele na cama, dar remédio, levar ao médico, com todo cuidado do mundo para não se contaminar. É este tipo de coisa que nós temos que escolher diante do mundo moderno. Se você ficar abraçando e beijando o mundo moderno demais, meu irmãozinho, numa atitude de bom-mocismo, o que vai acontecer com você é que você vai perder a fé, porque este mundo é louco. [...] Hoje, nós somos capazes de enxergar perfeitamente que este mundo é louco. Nós estamos num mundo maluco, num mundo insaciavelmente maluco, insano, que está numa cultura de morte e destruição. É um mundo que vive na automutilação contínua, dos seus próprios pecados e desobediência a Deus, porque o salário do pecado é a morte".

(Padre Paulo Ricardo de Azevedo, "A Igreja e o Mundo Moderno" - parte 01, palestra publicada no site www. padrepauloricardo.org)

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Casal de Compadres



(Almeida Jr., Violeiro, 1899)

Clareira
(Adélia Prado)

Seria tão bom, como já foi,
as comadres se visitarem nos domingos.
Os compadres fiquem na sala, cordiosos,
pitando e rapando a goela. Os meninos,
farejando e mijando com os cachorros.
Houve esta vida ou inventei?
Eu gosto de metafísica, só pra depois
pegar meu bastidor e bordar ponto cruz,
falar as falas certas: a de Lurdes casou,
a das Dores se forma, a vaca fez, aconteceu,
as santas missões vêm aí, vigiai e orai
que a vida é breve.
Agora que o destino do mundo pende do meu palpite,
quero um casal de compadres, molécula de sanidade,
pra eu sobreviver.

sábado, 12 de dezembro de 2009

“...essa velhinha, essa velhota chata que vem e bate à nossa porta...”

Semelhante ao que dorme num sonho, sentia-me docemente oprimido pelo peso do século. Os pensamentos com que em Vós meditava pareciam-me com os esforços daqueles que desejavam despertar, mas que, vencidos pela profundeza da sonolência, de novo mergulhavam no sono. Não há ninguém que queira dormir sempre. A sã razão de todos concorda que é preferível estar acordado. E contudo, quando o torpor torna os membros pesados, retarda-se, as mais das vezes, a hora de sacudir o sono, e vai-se continuando, de boa vontade, a prolonga-lo até ao aborrecimento, mesmo depois de haver chegado o tempo de levantar.
Também eu estava certo de que o entregar-se ao vosso amo era melhor que ceder ao meu apetite. Mas o primeiro agradava-me e vencia-me; o segundo aprazia-me e encadeava-me. Não tinha, por isso, nada que Vos responder, quando me dizíeis: “Desperta, ó tu que dormes; levanta-te de entre os mortos e Cristo te iluminará” (Ef 5,14). Mostrando-me Vós, por toda parte, que faláveis verdade, eu, que já estava convencido, não tinha absolutamente nada que Vos responder senão palavras preguiçosas e sonolentas: “Um instante, um instantinho, esperai um momento”. Mas este “instante” não tinha fim, e este “esperai um momento” ia-se prolongando.
“Deleitava-me com a vossa Lei segundo o homem interior, mas em vão, porque em meus membros outra lei repugnava à lei do meu espírito, e me mantinha cativo na lei do pecado que está em meus membros” (Rom, 7,2). Com efeito, a lei do pecado é a violência do hábito, pela qual a alma, mesmo contrafeita, é arrastada e presa, mas merecidamente, porque, querendo, se deixa escorregar. Ah! Miserável de mim! “Quem me livrará deste corpo mortal, senão a vossa graça, por Jesus Cristo Nosso Senhor?” (Rom 7, 22-25).

(do Livro VIII, capítulo 5, das "Confissões" de Santo Agostinho)
(Título: Bruno Tolentino, “Do Enigma ao Mistério”, Dicta&Contradicta, número 01, jun/08)

domingo, 6 de dezembro de 2009

“Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho...” – ciente me respondeu

"[...] O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam. Verdade maior. É que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza. [...]
[...] Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não dói até em criancinhas e bichos, e nos dôidos – não dói sem precisar ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa existir para haver - a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo. Se eu estou falando às flautas, o senhor me corte. Meu modo é este. Nasci para não ter homem igual em meus gostos. O que invejo é sua instrução do senhor... [...]" (das veredas do Grande Sertão)

domingo, 29 de novembro de 2009

Convite a um dilema

Tudo o que estou fazendo na minha vida foi concebido em vista de responder o seguinte problema: Supondo-se que eu quisesse adquirir um conhecimento da história, da cultura, da filosofia, da religião, que respondesse aquela famosa exigência do Leopold von Ranke, “eu quero conhecer as coisas como efetivamente se passaram”, pouco importando se eu vou poder usar isso numa profissão acadêmica ou, se ao contrário, isso só vai me transformar num sujeito esquisito que ninguém compreende. Se você tem a coragem para isso, você pode chegar ao conhecimento da realidade, ao conhecimento objetivo, porém, note bem, quanto mais coisas você conhece, isso significa que você conhece coisas que os outros não conhecem. Saber mais é saber o que os outros não sabem. Então, quanto mais você sabe, menos você será compreendido por aqueles que não sabem. Se você quer pagar este preço, se você acha que o conhecimento vale isso... Eu acho que vale, dediquei a minha vida a isso e não estou nem um pouco arrependido. Mas eu tive que aprender ao longo do tempo a não esperar ser compreendido pelos ignorantes. Se você quer isto para você ser efetivamente um estudioso sério e não necessariamente para ser tido como tal pelos ignorantes que posam de estudiosos, então você vai ter que seguir uma série de práticas e de protocolos de aprendizagem que te permitirão chegar onde você quer. Foi isso que eu fiz a minha vida inteira e que eu gostaria de ensinar os outros a fazer. Então, quando eu coloco um problema na cabeça eu quero a resposta efetiva, eu acredito que a inteligência humana seja capaz de fazer isso. Porém, as coisas como efetivamente se passaram não são necessariamente as coisas como as pessoas gostam de imaginar como elas se passaram. E quando você descobre coisas do passado, você modifica a visão que você tem dos personagens do presente, você os olha de uma outra perspectiva. Quer dizer, a sua escala de comparação cresce formidavelmente, porque aquilo que para os outros pode ser uma novidade, você já tem elementos de comparação anterior, já não é tão novidade assim. Muitas coisas nas quais a maior parte das pessoas depositam grandes esperanças, você já vai saber de antemão que não vão dar certo, porque você já tem a experiência histórica acumulada. E também pode acontecer, o pior de tudo, que quando você tiver compreendido uma série de processos, tiver adquirido uma cultura filosófica e histórica monumental, as pessoas não queiram saber qual é a sua opinião, elas preferirão se ater aos seus preconceitos, as suas ideiazinhas, isso de fato acontece. Aí você vai ficar numa situação um pouco esquisita. Eu me lembro uma vez eu vi uma senhora caída no chão se debatendo, ela estava tendo uma crise histérica, eu achei que era uma crise epilética e fui lá ajudá-la a se levantar, e ela começou a me esmurrar gritando: “Eu odeio homem! Eu odeio homem”. “Ora, então que é que eu posso fazer minha senhora? Quer saber? A senhora não quer que eu a ajude, eu não ajudo mais”. Muitas vezes, perante, vamos dizer, os políticos, os homens públicos, os formadores de opinião, líderes empresariais, militares, você vai ficar nesta situação: Eu sei a solução para o seu problema, mas se você não quer, o problema é seu, eu só quis ajudar, entendeu? Então, você vai ficar na posição do consultor indesejado. Isto também pode acontecer... Mas ainda assim eu acho que a busca do conhecimento é a melhor finalidade da vida, não tem coisa melhor. É melhor você estar entendendo, porque você não sofrerá como um bichinho, mas sofrerá com a dignidade de um ser humano, sabendo o que está acontecendo”.
(Olavo de Carvalho, transcrição de trechos da "Introdução ao Curso de Filosofia", publicado em www.seminariodefilosofia.org/avisos)

sábado, 28 de novembro de 2009

Napoleão Mendes de Almeida

"Há os que apodam-no de "radical", "reacionário", "de direita" e demais epítetos que fazem pregão da parvoíce de quem fala, mas vejo aí senão bom senso chão, escudado por anos de estudos velhos e observação. Não obstante a famigerada caturrice de Napoleão Mendes de Almeida, suas gramáticas vendem-se em muitos tomos e edições - prova de que a popularidade pode ser antípoda à ignorância". (Luiz de Carvalho).

VEJA - Fala-se hoje um bom português no Brasil?
ALMEIDA - O país fala um português muito ruim. Chegamos a ter vergonha de construções corretas, ter receio de regências, de concordâncias.

VEJA - Onde se ouve ou lê o pior português?
ALMEIDA - A televisão é o maior veículo de erros e enganos de português que existe. Ela tem um efeito nocivo muito grande sobre o português que o povo fala. É mais difícil falar bem do que escrever - nesse caso a pessoa tem mais tempo para pensar. Só as pessoas acostumadas a falar bem deveriam lançar mão desse meio de divulgação tremendo que é a TV.

VEJA - Em que programas de TV estão os erros mais lapidares?
ALMEIDA - Até nos títulos dos programas se cometem invencionices. Há um humorístico chamado Os Trapalhões. Essa palavra não existe em português. O verbo é atrapalhar. Quem atrapalha, portanto, é atrapalhão. Por que tirar o a da palavra? Também se cometem equívocos nos noticiários, principalmente, e nas novelas. Há certos erros que me obrigam a mudar de canal. Repugna-me, por exemplo, ver um locutor de TV dizendo que se bateu um 'récorde', colocando a sílaba tônica no primeiro e. Esse locutor não é amigo do povo. Nunca tivemos essa palavra em português. É uma tontice. O certo é se pronunciar 'recórde'.

VEJA - Em que outros veículos o português é sacrificado?
ALMEIDA - Chegamos a uma situação em que nem os jornalistas sabem conjugar verbos. Tenho no meu arquivo um conjunto de erros graves de português que saíram nos jornais nos últimos tempos. Veja esta manchete do noticiário internacional, publicada em novembro de 1990: "Iraque deixará parentes visitarem reféns". Que português é esse? O certo é "visitar". Para o jornalista que intitulou a notícia, o padre Manuel Bernardes não sabe português porque traduziu o texto latino do Pai-Nosso por "Não nos deixeis cair em tentação", assim como está errada a passagem do Evangelho de São Marcos que diz "Deixai vir a mim os pequeninos".

VEJA - Na literatura brasileira de hoje a situação é melhor?
ALMEIDA - Bem, eu atualmente não sou de muita leitura. Leio revistas inglesas e francesas - sei que nelas vou encontrar os respectivos idiomas escritos de maneira perfeita. É uma prova de civismo estudar a própria língua.

VEJA - Como se reconhece o escritor que trata bem o idioma?
ALMEIDA - Autores como Alexandre Herculano e Eça de Queiroz, além de possuir uma prosa atraente, obrigam o leitor a ir ao dicionário pelo menos duas vezes por página. Isso é um ótimo sinal. No outro extremo está o escritor que se lê por 100 ou 200 páginas sem deparar com uma palavra que não se conheça, e que escreve com períodos de gago, aquele que tem dois pontos finais em cada linha. Períodos curtos não têm graça. Neles não há concatenação, não há subordinação das orações. Escritores desse tipo não conhecem as conjunções ou têm medo de usá-las porque não sabem usar o verbo de acordo com elas.

VEJA - Como falam os políticos brasileiros?
ALMEIDA - Os que falam bem são exceções, e há muito poucas. Dizia-se que Collor falava bem, mas ele escorregava, não sei se nesse meio tempo resolveu estudar gramática. Já o Lula usou uma frase muito interessante quando era candidato à Presidência. Ele dizia "Vote ni mim".

VEJA - Lula deveria estudar gramática?
ALMEIDA - Ele tentou. Lula chegou a se matricular no meu curso, mas não chegou a responder à primeira lição escrita nem pagou a segunda mensalidade. Simplesmente desapareceu. Depois de um certo tempo acabamos rasgando a ficha dele, na limpeza do arquivo. Rasguei com prazer, depois de uma greve dos metalúrgicos que deu o maior prejuízo ao país.

VEJA - O senhor também rejeita o português falado pelos sertanejos, carregado de regionalismos?
ALMEIDA - Eu respeito. Não vou interromper uma conversa para dizer ao interlocutor que o certo é dizer 'nós vamos' e não 'nós vai'. A verdade é que em termos de vocabulário há regionalismos muito interessantes. Um dia eu estava em Belém e pedi uma informação na rua, sobre onde ficava tal escola. O sujeito me disse que era fácil, que era só tomar uma sopa, aquela sopa que estava logo ali junto ao muro. Eu me espantei. Não sabia, mas está lá no dicionário - sopa é a jardineira, o ônibus local.

VEJA - O que o senhor acha das reformas ortográficas feitas periodicamente no português?
ALMEIDA - Vejo como uma forma de comércio. O interesse das reformas ortográficas é financeiro, não intelectual ou prático. Tem por fim o lucro, seja da Academia Brasileira de Letras, seja de alguma editora, seja de algum rato de ministério, como é o caso atualmente no Planalto. Certa vez o Cláudio de Souza, então presidente da ABL, esteve no meu escritório, antes da reforma de 1943, e me perguntou por que eu era contra a reforma ortográfica. Ele me explicou que a Academia tinha despesas com a impressão do vocabulário. Eu disse: meu caro, não acha que a sua resposta deve ser substituída pela reflexão de que o interesse da reforma ortográfica é de caixa, e não de ensino? O escritor interessado quer modificar a ortografia, mas o livro dele, sua gramática, com a nova ortografia, já está pronto. Em 1949, quando saiu um decretinho no Diário Oficial introduzindo a nomenclatura gramatical brasileira, um dos tratantes da comissão já estava com o livro dele, incluindo as modificações, na terceira edição.

VEJA - O acordo de unificação ortográfica entre o português do Brasil e o de Portugal, negociado atualmente pelo ministro da Cultura, Antônio Houaiss, encaixa-se nesse caso?
ALMEIDA - Faço minhas as palavras do jornalista Paulo Francis, num artigo recente. O bom dessa rusga diplomática que está ocorrendo entre Brasil e Portugal é que ela matou o acordo ortográfico do Antônio Houaiss. O Houaiss não é bobo, já admitiu que o acordo foi arquivado por tempo indeterminado. Isso porque ele é editor, paga imposto de renda pelo que edita. Qual seria o seu interesse na reforma senão ser o primeiro a dizer: "O que foi decretado ontem já está em forma de livro?" Vernáculo não é política para viver de alternativas, para alimentar-se de amizades e confrarias. O vernáculo vive de escritores, e estes não se impõem pela quantidade, senão pela qualidade de obras que expressem o belo sem protuberâncias vocabulares nem manifestação de desnutrição, de doenças gramaticais.

VEJA - A unificação da ortografia usada no Brasil e em Portugal, prevista pela reforma, não seria desejável?
ALMEIDA - Que unificação? Não existem duas línguas, apenas uma.

VEJA - Mas muitas palavras são usadas ou grafadas de forma diferente nos dois países.
ALMEIDA - E no Brasil não acontece o mesmo, de região para região? Não há diferenças prosódicas e de significação? Isso não prejudica o idioma de forma alguma. Tome-se, para efeito de comparação, o dicionário Webster da língua inglesa. Para certas palavras ele dá quatro pronúncias diferentes. Outras são mostradas com três grafias diversas. Isso é motivo para um espertalhão querer introduzir uma lei que determine uma só forma ortográfica, uma só pronúncia da palavra?

VEJA - O acordo ortográfico prevê a eliminação de vários acentos nas palavras. Isso não tornaria mais fácil a tarefa de quem escreve, lê ou estuda o português?
ALMEIDA - A acentuação no português é um horror. A ortografia de 1943 está errada, mas se forem mexer vai piorar ainda mais.

VEJA - O que há de mais aberrante na acentuação do português?
ALMEIDA - Tome-se, por exemplo, a palavra auxílio. No idioma espanhol existe essa mesma palavra, com o mesmo significado, mas ao contrário do que ocorre no português ela leva acento na forma verbal, auxilío. O motivo é simples: de cada dez vezes que essa palavra aparece corriqueiramente, talvez apenas uma seja na forma de verbo, nas demais ela aparece como substantivo. Então, nada mais lógico que se deixe o acento para diferenciar o verbo. Há mais bom senso na ortografia espanhola nesse aspecto.

VEJA - O acordo prevê também a volta das letras k, w e y ao alfabeto, assim como a eliminação do trema no u. O que acha dessas propostas?
ALMEIDA - As três letras em questão nunca deveriam ter saído do alfabeto. Precisamos delas no dia-a-dia, na matemática, por exemplo, e também na escrita comum. Quanto ao trema, é inútil, ninguém precisa dele. Na verdade, quem deve ensinar a pronúncia certa é a escola. Eu mesmo não uso acentos quando escrevo meus rascunhos. Para quê? Eu sei ler. Mas para acrescentar o k, o w e o y ao alfabeto, assim como para eliminar o trema, não é preciso fazer uma grande reforma ortográfica. Basta um decretozinho, uma lei que regule o assunto.

VEJA - As gírias atentam contra o bom português?
ALMEIDA - Não sou contra as gírias. Elas são um fenômeno normal, que revela a saúde do idioma. Elas em geral duram seis meses ou um ano. Conforme sua natureza, a gíria entra para o dicionário ou para a gramática. Por que eu investiria contra a expressão 'é sopa' quando ela surgiu? Há quanto tempo não se ouve essa expressão?

VEJA - O senhor é contra os neologismos?
ALMEIDA - O neologismo é uma necessidade. Se há invenções, precisamos dar nomes a elas. Vamos buscar esse nome com radicais e sufixos nossos, ou com radicais gregos, latinos, ou vamos adaptar a forma inglesa, francesa ou alemã à nossa forma. O estudo da etimologia é maravilhoso, embora não tenha utilidade. Mas é curioso. Por exemplo: poucos sabem que a palavra joelho - ou geolho, como se dizia antigamente -, em português, é a mesma palavra knee, em inglês. A origem de ambas é genunculum, em latim. A sílaba inicial ge é gutural forte, corresponde, na pronúncia latina, ao som de k em inglês. O n já está na palavra e a terminação unculum corresponde à nossa terminação lho ou aos dois e do inglês. O estudo do latim é necessário. Foi uma infelicidade jogá-lo fora do currículo escolar no Brasil, mormente para quem vai praticar leis, estudar Direito.

VEJA - A língua portuguesa tem bons dicionários? Quais?
ALMEIDA - Prefiro não propagandear os dicionários que temos. Mas posso elogiar o de Alberto Carlos Silva, um autor de Campinas que morreu mocíssimo.

VEJA - Como o senhor vê as atividades da Academia Brasileira de Letras?
ALMEIDA - Sabe quantas vezes Rui Barbosa esteve na Academia? Uma única. Euclides da Cunha nunca precisou dela. Monteiro Lobato idem. Mas há escritores que são fregueses das academias de letras que se espalham pelo país. A Academia não contribui em nada para a melhora do idioma.

VEJA - Desde quando o brasileiro fala e escreve mal?
ALMEIDA - Pode-se dizer que o início da derrocada da nossa língua data de 1931. Com a Revolução de 30, introduziram-se as férias escolares de julho. Aí ela começou a degringolar. Talvez os próprios pais tenham provocado essa mudança, por querer descansar, mas esse descanso começou a prejudicar o ensino dos filhos.

VEJA - Essa explicação não é demasiado simples?
ALMEIDA - Essa é uma imagem histórica que uso para ilustrar um fenômeno que é bem mais complexo. O erro principal vai mais longe - na pobreza de horas diárias de aula no curso primário, por exemplo. Verifique-se se em algum país dito civilizado existem menos de oito horas de aula por dia no curso primário. Em todo os países o aluno fica na escola oito horas. Mas no Brasil o aluno vai à escola para comer Há também a questão da remuneração dos professores: os que ensinam português não podem ter o mesmo salário dos que ensinam desenho, por exemplo. Que trabalho tem um professor de desenho? Num relance ele dá a nota para o aluno. O professor de português tem que ler palavra por palavra, para ver se o aluno não trocou um c por dois s, um g por j. E ao voltar à sala de aula ele tem que chamar os alunos um por um para explicar os erros. O de Antonio vai servir de esclarecimento para Benedito, todos se aproveitam dos erros de todos, mas esse trabalho tem que ser bem remunerado.

VEJA - Que outras deficiências do ensino fazem com que o brasileiro fale mal seu idioma?
ALMEIDA - Existe hoje uma indústria do livro didático, comandada por indivíduos incapazes de montar ou explorar um colégio, um curso que seja. Esses livros didáticos não têm concorrência, contenham eles as maiores violações gramaticais e asnices ortográficas. O professor chega ao colégio e já encontra nas prateleiras os livros que deve usar. Quer dizer que ele não tem competência para escolher? E quem se julgou competente para escolher? Um interesseiro. O ensino está entregue a um outro tipo de comércio, o das apostilas. Não se dá o texto da matéria, apenas apostilas. E qual é o valor das apostilas no futuro? Nenhum. É progresso encher uma classe de apostilas, de livrinhos e livrecos sem vulto nem tomo, tão inúteis quanto desarrazoados, sem índices nem remissões? O aluno deveria comprar o livro e o professor ter em mãos um texto da matéria que leciona. Até há algum tempo, o professor era obrigado a assinar um diário de aula, relatando que matéria tinha dado naquele dia. Existe isso hoje? Não. Fala-se mau português por causa do sistema escolar.

VEJA - Em que região do Brasil se fala o melhor português?
ALMEIDA - É difícil especificar, mas no Maranhão, certa vez, conheci um professor que, embora muito modesto, divertia-se conversando em latim com a filha. Isso é significativo. Oxalá um dia possamos dizer que o Brasil todo fala uma língua disciplinada, que revele educação, instrução, que revele um país de pessoas formadas para a sociedade.

VEJA - Estamos muito longe disso?
ALMEIDA - A distância é de pelo menos três gerações.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Teddy

Um gênero muito interessante, que mescla as aventuras, as cores, os signos e a multiplicidade de personagens e possibilidades do romance com a realidade, com aquilo que há de mais concreto e verdadeiro, como a história, é aquele da biografia. Sempre achei surpreendente conhecer a vida de pessoas, que por vezes é tão fantástica que beira o inverossímil.
Estou lendo Lion in the White House – A life of Theodore Roosevelt, de Aida D. Donald. A cada página virada minha admiração pelo espírito americano aumenta e minha vergonha pela política nacional se supera.
Teddy – como é carinhosamente chamado pelos compatriotas esse presidente americano – foi um exemplo de nobreza, coragem, caráter, virtuosidade, força e incontáveis outros adjetivos. Acho bom perceber como seres humanos concretos, em sua singularidade, levaram a história para este ou aquele caminho, o que me vacina contra a tendência racionalista de olhar o passado que reina hoje em dia.
Eu não sabia disso e penso que muitos também não sabem. Teddy ganhou a medalha de honra por liderar um dos regimentos que libertou Cuba dos espanhóis, antes de se tornar presidente ou mesmo de ser governador de Nova York, como sucedeu posteriormente. Curioso, não é? Não somente foram os americanos que livraram a ilha caribenha dos colonizadores, mas também foi um dos membros da elite branca de olhos azuis quem colocou o peito à mostra para o perigo das balas. Naquele tempo, em 1898, a guerra era muito diferente. Foram todos ou a pé ou a cavalo, com pistolas e rifles, alguns poucos canhões. E mais, o comandante não ficava apenas sentadinho atrás da tropa, dando ordens em local seguro. Pelo contrário, Teddy era o primeiro da fila, encorajando todos os soldados.
Quanta coisa podemos esquecer e quanto deixamos de compreender, quando ignoramos nosso passado. Em tempos de nunca antes na história desse país, o esquecimento é coroado. Os mocinhos com a vermelhinha camiseta guevarista acreditam que Cuba libre não passa de um drink da balada, ou de um grito comunista contra o Tio Sam. Barbaridade! – diria meu avô.
Que tal uma espiadinha no que ocorreu naquela guerra?
“Under their aggressive colonel the Rough Riders were the first cavalry forces ashore. The nearsighted Roosevelt, who had twelve pair of eyeglasses sewed into his hat and other places, was on Cuban soil, spoiling for a fight. Neither he nor anyone else saw any Spaniards, and not a shot was fired to impede the landing. The American troops yelled, “Viva Cuba libre”. Their Cuban rebel allies replied, “Viva los Americanos”. The Rough Riders ran up the first American flag over Cuba, and the band played “The Star-Splangled Banner”. It was a picture-perfect beginning to what would become a bloody battle for Cuban freedom and, in Roosevelt’s view, American manhood. For the Spanish, it was the beginning of the end of their 382-year rule over Cuba, the jewek of its western empire”.
Esse foi o começo tranqüilo da sangrenta batalha que esperava por Teddy. Sem comida, com pouca munição, e vestidos por mais de um mês com as mesmas roupas, a tropa seguiu bravamente pela libertação cubana. Quando os soldados estavam famintos, Teddy esvaziou os próprios bolsos para comprar suprimentos. Ao final, foi homenageado:
“In September, Roosevelt’s First Volunteer Cavalry presented their commander with a Frederic Remington sculpture called the Bronco Buster. He responded to the honor by saying that he was proud of his regiment because it was an American troop composed of men of all the different races who had, either by inheritance or adoption, made America their country. He closed with a tribute to the brave black soldiers who fought with the Rough Riders”.
Mas Teddy não foi somente este corajoso guerreiro. Homem de estudos e de talento, foi o criador do Canal do Panamá e pai da marinha moderna americana, escreveu livros e mais livros, com altíssima qualidade literária, como prenunciavam seus escritos na juventude e seu desempenho invejoso na Universidade de Harvard. Desenvolveu estudos sobre a natureza, lançando obras sobre o Wild West, sobre a vida que levavam os rancheiros e cowboys e mais tarde viria a criar os parques nacionais dos EUA. Conta-se que um dia, numa caçada, ele poupou um pequeno urso por piedade, fato que deu origem ao nome Teddy Bear. Não é sem razão que o Museu de História Natural de Nova York tenha dedicatórias e mais dedicatórias a ele.
As crianças de hoje talvez não compreendam como o fraco personagem do filme, interpretado por Robin Williams, foi um grande presidente. É bom lembrar, então, que a Noite no Museu é a ficção, a realidade – ah! – a realidade é muito mais interessante...

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Pequeno Desabafo

Eu sei que depois de tantos dias de silêncio a nossa caminhança mereceria algo mais caprichado. Mas permitam-me apenas este desabafo, bastante curto, a preguiça me impede de desenvolver melhor a digressão (ou talvez eu tenha sido infectado pelo ambiente que motivou esta minha vinda ao blog). O ambiente: a Casa dos Advogados, no dia de eleição da OAB (somado a alguns acontecimentos locais, que deixo de retratar). Perdoem-me se, por acaso, meu espírito foi invadido por uma excessiva sensibilidade, quase um medo, de ingenuidade pueril. Mas o asco, misturado a tristeza, é inevitável, como também foi inevitável despejá-lo aqui, para que não permaneça dentro de mim pelo resto do dia. Não por acaso a tal visita fez-me lembrar, contra a minha vontade, dos tempos em que eu frequentava a alta advocacia paulistana. Agora a situação é esta: Tenho diante de mim este mal estar indesejável, o presente amargo despejado sem licença no meu quintal, enquanto as víboras se deliciam da carniça. Por qualquer razão, algo sopra em meus ouvidos: "Eis que vos envio como ovelhas no meio de lobos".

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Testemunho, por Louis Lavelle

Há na vida momentos privilegiados nos quais parece que o universo se ilumina, que nossa vida nos revela sua significação, que nós queremos o destino mesmo que nos coube, como se nós próprios o tivéssemos escolhido. Depois o universo volta a fechar-se: tornamo-nos novamente solitários e miseráveis, já não caminhamos senão tateando por um caminho obscuro onde tudo se torna obstáculo a nossos passos. A sabedoria consiste em conservar a lembrança desses momentos fugidios, em saber fazê-los reviver, em fazer deles a trama da nossa existência cotidiana e, por assim dizer, a morada habitual do nosso espírito.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Poesia e Filosofia

Entrevista de Luiz Jean Lauand com Adélia Prado *

O Olhar: Mirandum e theoria

(...)

LJ : Adélia, você poderia retomar aquela frase que disse, há pouco, sobre o Céu?

AP : Você falou que o que há de comum entre o filósofo e o poeta é o mirandum e isso eu traduzo por miração. E eu acho que é isto mesmo: quando a gente está apaixonado, quando a gente experimenta a paixão, você quer segurar a pessoa e falar: "Fica na minha frente para eu te olhar...". Não precisa nem casar, é só olhar, é só olhar...". Tenho um poema em que eu acho que dei conta de falar isso, "A Terceira via":

Meu espírito - que é o alento de Deus em mim - te deseja
pra fazer não sei o que com você.
Não é beijar, nem abraçar, muito menos casar
e ter um monte de filhos.
Quero você na minha frente, extático
- Francisco e o Serafim, abrasados -,
e eu para todo o sempre
olhando, olhando, olhando...

Então eu acho que o Céu..., quando a gente fala em experiência de mística, da alegria inefável dos santos, isso está no olhar, sabe? Então, você chega no Céu: "agora descansa, pára o mundo que eu vou olhar a face divina!".
Então, nem precisa casar mesmo, pode parar aí, que já está no Céu.
Eu acho que a poesia é isto: porque ela é algo que se mostra, eu acho que a poesia é um fenômeno que realmente escapa ao poeta; ele, coitadinho, é um proletário da coisa, um operariozinho, um operário braçal. Então, há uma coisa, algo, algo, algo quer se mostrar...
Sabe que idéia que eu tenho do Espírito Santo? E tem tudo que ver com o que estamos falando... Eu acho que Deus, Ele tem um desejo de ser visto, sabe, Ele deseja, Ele precisa... É como disse Mestre Eckhart: "Ele precisa de mim...", porque Ele me salvou tanto... Ele deseja ser visto e precisa ser visto. E, para mim, a poesia é isto: aquilo que precisa ser visto, se mostra, naquele momento.


Criação Divina, Participação e Poesia


AP: é o que a gente chama de experiência poética ou momento poético. Então, realmente, é estado de graça, não tem jeito. Eu acho que o fundo da experiência religiosa e da experiência poética - à revelia dos poetas ateus, à revelia desse povo que nega isso; é... à revelia deles, à revelia deles... - que o sagrado se mostra.
É um desejo de prostração que dá na gente, um desejo de adoração: Você quer adorar e você sabe que não é mais aquilo que você tá produzindo, não é o rastro, não é mais a pegada como eu achava antes... Com aquela ânsia..., mas é a coisa que se mostra atrás disso.
Eu tenho um poema inédito que fala isso: "Acácias".


ACÁCIAS

Minha alma quer ver a Deus.
Eu não quero morrer.
Quero amar sem limites
E perdoar a ponto de esquecer-me
Radical, quer dizer pela raiz
O perdão radical gera alegria
Exorciza doenças, mata o medo
Dá poder sobre feras e demônios
Falo. E falo é também membro viril,
Todo léxico é pobre,
Idiomas são pecados;
Poemas, culpas antecipadamente perdoadas
Eis, esta acácia florida gera angústia
Para livrar-me, empenho-me
Em esgotar-lhe a beleza
Beleza importuna,
Magnífica insuficiência,
Porque ainda convoca
O poema perfeito.


O poema, minha Nossa Senhora!..., o que está por trás dele é o que interessa, por isso que não dá para adorar a arte (os adoradores da arte...). A arte..., ela remete, ela remete... A única coisa que não remete é Deus. Deus, Ele não remete a mais nada. E o que você quer? Esta acácia aqui, essa benditinha dessa acácia..., o que é uma acácia florida? é uma coisa tão angustiante, uma coisa bela demais, que você quer morrer pra ter sossego, não é? (risos). Aí você faz um poema pra ver se descansa. Mas, é porque a alma, ela quer realmente adorar, ela quer seu fundamento, não é? A gente quer adorar a Deus, essa é a única coisa..., eu acho que a gente nasceu só pra isso...

LJ : E qual o papel da Criação. Você diz, em um dos títulos: "Tudo que sinto esbarra em Deus", seria o conceito de participação em S. Tomás?

AP : Eu acho que é isso sim. Eu acho que dá na mesma, mas eu digo expressão. Porque arte para mim - para mim, não! Que bobagem falar isto! - arte é pura expressão, o discurso dela é só expressivo... Ele não é político, ele não é religioso... (...) Mas o que você estava falando da participação, para mim é assim: algo - esse algo eu vou chamar de Deus - Ele quer se mostrar. Ele quer mostrar-se, Ele quer ser mirado. Então, uma das formas mais perfeitas, eu acho que aí há uma coisa de uma liberdade inaudita, que é o espaço da criação artística (que é onde você põe vaca roxa, põe acácia chorando, sei lá o que...).
Mas, então, é isso: é o terreno, para mim, da fé, que é a coisa mais livre que tem. É o "Curvai-vos!" se você não se curvar, você não fica livre. É aí. É aí, é na poesia, é na arte, mas vamos falar em poesia, porque é o nosso caso...
Então, eu vejo assim, as coisas como manifestação - até a cadeira de plástico (Adélia aponta para uma cadeira de plástico), ela manifesta. Manifesta, manifesta, manifesta, manifesta... E o homem faz o mundo (isso é uma idéia que me ocorreu no outro dia) o homem é criador, mas às avessas... Você veja, eu estava vendo um robô ontem, um robô francês, vendo na televisão, aquela parafernália, quer dizer, é o não-simples. É engraçado, o homem cria, mas é uma não-simplicidade; você fala: "Nossa, que computador complexo!" você fica maravilhado com a complexidade, enquanto que a criação divina é o avesso: é o simples, não é? Mas enfim são formas diversas, eu acho, da divindade e da manifestação: Deus precisa disto para que Ele se manifeste, para que a consciência ecloda em seu nível crença...


Ainda a Criação


LJ : Como pode haver um poeta ateu?

AP : Mas isso é uma contradição em termos, meu Jesus!, não é? é cada tombo que as pessoas levam. Engraçado, que os próprios poetas engajados e que advogam essa autonomia de seu poder sobre a escrita caem numa contradição maravilhosa, através das próprias obras que são melhores que eles. Porque o livro tem que ser melhor do que eu, senão ele não vale nada. O livro tem que ser melhor do que eu, a hora em que ele for igual a mim, eu tenho que ficar caladinha, quer dizer, cheguei à santidade, que é o que a gente, acho, deve querer, né? A gente diz: "Porque o meu livro..., porque o meu livro isso..., porque o meu livro aquilo..." e não é assim, se fosse assim, eu falava: "Hoje eu vou escrever um poema perfeito" e... não é assim... A coisa deseja ser vista, então é uma graça mesmo, é pura visão, é... não-lógica.

LJ : Na verdade um tema constante na sua poesia, constante também em S. Tomás é o de que a criação tem dois pólos: por um lado é participação do ser, do bem, da beleza de Deus; por outro, saiu do nada...

AP : Saiu do nada, sim, sim!

LJ : Por isso, Josef Pieper tem um capítulo fantástico, descrevendo a atitude diante da Criação, intitulado: "Psicose Maníaco-Depressiva".

AP : Sim , concordo plenamente... Porque a coisa mais difícil é achar que eu não sou Deus... Porque na hora que você cai nisso, você diz: ou eu sou criatura ou eu não sou! (...) Isso vai muito dentro de uma coisa que você falou e que me alegrou muito: é uma coisa com relação ao sagrado: eu não faço poesia religiosa, num sentido que muita gente entende equivocadamente. O fato é que é a poesia é que é religiosa, ela é sagrada (é aquilo que a gente estava falando antes), então esses registros de natureza religiosa, confessional, são coisas da história da biografia do autor, que nada tem que ver, não é?
Ela, em si mesma, é sagrada. Eu vi um poema de Alceu, que é pagão, anterior a Cristo e é igualzinho ao poema "No éter", que eu escrevi. Foi uma das maiores emoções que eu tive... O poema "No éter" fala daquela hora da tarde, daquela hora em que as coisas reverberam... Eu fiquei assustadíssima.
Quer dizer, é uma coisa só, o sujeito é pré-cristão, pagão, e está falando a mesma coisa que eu. Então há essa origem sagrada, não é? E com o amor é a mesma coisa, esse amorzinho nosso, essa peleja que é o sexo, porque é uma peleja, é tão discursivo, não é? Tem hora que eu fico...Que canseira... Dormir com outra pessoa é complicado demais... toda a discursividade do corpo, a miserabilidade do corpo, meu Deus! Então, eu vejo assim, quando eu estou falando de amor eu estou falando só de amor e em sua forma humana ele é discursivo, precário, mas é, em sua essência, bodas celestes.

LJ : Que quer dizer com "discursivo"?

AP : Discursivo é aquilo que não se exime de palavras... A poesia não pode ser discurso, ela não fala a respeito de... ou ela é a coisa ou ela não é poesia. Isto é, um poema sobre a rosa tem que ser a rosa, não pode pegar e falar: "Olha tô falando sobre a rosa...": aí não é poesia mais, não! Então o poema, a diferença dele com outro discurso é que ele não é discurso. Ou: é um discurso não-discursivo... Esse amor humano, também ele é discursivo, enquanto processo, mas na sua essência... quando eu amo uma pessoa eu quero só olhar para ela, meu maior desejo é olhar... humanamente até, mas ele exige mais, ele exige uma humildade danada...


Filosofia, poesia e o realismo do cotidiano


LJ : Num projeto de mestrado que dirijo, estamos colocando lado a lado citações de Josef Pieper e de Adélia Prado. Por exemplo, o fato de ambos terem seu ponto de partida na admiração...

AP : O mirandum.

LJ : ...é uma palavra chave...

AP : é, é, é ...

LJ : ... e contemplação, mistério, porque o mundo foi feito pelo Verbo, pelo Logos então ele é "demais para a nossa cabeça"...

AP : "Os céus narram a glória de Deus", é demais, não é?...

LJ : ...e isto tudo em e a partir de uma realidade quotidiana...

AP : Claro... uma graminha pelejando para nascer na greta do muro... que coisa mais absurda e fenomenal!

LJ : Gosto demais de seu verso: "Tudo é Bíblias"

AP : Tudo é grande sertão!

LJ : Realidade quotidiana enquanto maravilhamento?

AP : Eu fui, digamos, classificada, muitas vezes, como uma dona de casa que faz poesia. Quando Bagagem saiu, em 1976, eu ouvia: "O que? uma dona de casa, você faz as coisas em casa mesmo? você tem filhos? Ah é? Que coisa, hein? Pois é...". Então ficou mais ou menos assim: "ela fala do cotidiano, sabe?". Mas, onde é que estão os grandes temas? Para mim, aí é que está o grande equívoco. O grande tema é o real, o real; o real é o grande tema. E onde é que nós temos o real? é na cena quotidiana.
Todo mundo só tem o cotidiano e não tem outra coisa. Eu tenho este corpo que eu carrego (ou ele me carrega... o burro) (1) e a vidinha de todo dia com suas necessidades mais primárias e irreprimíveis. É nisso que a metafísica pisca para mim (risos) e a coisa da transcendência: quer dizer: a transcendência mora, pousa nas coisas... está pousada ou está encarnada nas coisas. Então não há o que dizer: não adianta você querer escolher grandes temas; é o grande tema que escolhe, isso é um lugar comum, todo autor fala disso, mas realmente é assim: você é escolhido... Que que é o grande tema? é o real. E o real configurado no amor, na morte, nas mais diversas paixões que nos habitam e nas virtudes também. Então eu não vejo onde é que eu busco poesia... ela já está - o Reino já está no meio de vós... - é isso aí...

LJ : A inspiração, como vem? Por que essa realidade quotidiana às vezes se mostra como maravilhamento e outras vezes como mera realidade opaca?

AP : Quando ela é realidade opaca é aquilo do meu verso "De vez em quando, Deus me tira a poesia e eu olho pedras e vejo pedra mesmo..." ("Ausência da Poesia"). Outro dia - eu achei fantástico! - um comentarista de futebol fez uma crônica e me citou - eu me senti tão importante... Ele, falando sobre a seleção brasileira (2), disse: "é como diz Adélia Prado: 'Eu olho Dunga e vejo Dunga mesmo'" (risos). Eu achei legal, fez o maior sucesso lá em casa, todos gostaram... Vê-se que ele entendeu o poema...



* Publicada na Revista Eletrônica Videtur, nº 9 - http://www.hottopos.com.br/videtur9/renlaoan.htm [volta]



(1) Alusão a S. Francisco de Assis, que chamava o corpo de "o burro". [volta]

(2) A entrevista ocorreu antes do tetra-campeonato, num momento em que a seleção (e, particularmente, Dunga e Zinho) sofria duras críticas por parte da imprensa futebolística.

A melhor coisa do mundo

_ Diga, Miguelzinho, o que há de melhor neste mundo?
_ A melhor coisa do mundo eu já sei! É comer bolo de fubá com café, uh – rapaz!
_ E você, João – o Augusto, algum palpite?
_ Olha, nada melhor do que uma boa poesia, lida na pescaria.
_ Toninho, sugere algo melhor?
_ Ô, meu amigo, a melhor coisa do mundo é estar com os amigos.
_ (Todos) Agora você, Pedrinho!
_ De tudo que tem no mundo, a melhor coisa é comer bolo de fubá com café, lendo uma boa poesia, junto com vocês, meus amigos.

sábado, 17 de outubro de 2009

Prosa à Riobaldo do Sertão: Veredas da Grande Cidade (com a licença... sem pretensão e sem ofensa)

Essa coisa que a gente sempre está buscando... Sempre se esgotando aquela alegriazinha de viver... Dois tapa dá revolta do mundo de novo. Contrariedades tanta. Não adianta. Ora feliz, na hora seguinte tristeza, neste mundão! Não tem jeito... Em tempos assim, de dificuldade. Não tem como o juntado dinheiro dos outros... O caro do trabalho barato. Coisas sem explicação. Sorte de quem conhece o trabalho que tem mais precisão. Ofício bom é ofício necessitado! Quem não precisa por natural, deixa que alguém inventa de necessitar. E logo sai a cabritada atrás do que se inventou. Inventor safado! Engana necessidades, brinca de coisa séria que não se deve, coisa que só Deus é que é feito de fazer. A verdadeira precisão. E penso e digo que nada não adianta ler trecho de livro sem saber o que veio antes... Depois isso é que dá briga de deuses... Querem que leia só parte da bíblia-o-livro-sagrado, e vem querer colocar idéia na minha cabeça. Discordo. Antes veio muito mais nas páginas. Para se obter de idéias é preciso ler tudo, interpretar segundo inteireza de tudo. Senão coloca qualquer coisa no lugar e se acredita. E tem de pôr cada página no chão, assentar firme na face do real. A verdadeira precisão. Fé burra! Fé sangrenta, sem dó, sem razão alguma! Antes a descrendice. Que tudo leva aos certos de Deus, já dizia a senhora lá das bandas de Divinópolis, a mineira Adélia, fazendo pouco do que-não-se-diga. Pior que não-fé é a fé-inabalável. Insuportável. Tem de deixar vir o natural, tudo descobrindo, o misterioso de tudo. Desconfiado. A vida ajuda, não tem jeito. Nem ninguém foge, nem atalho passo curto na mata. É sempre o igual caminho meu, seu, de qualquer cabra, homem ou mulher. Viver é muito perigoso. Causa disso que eu digo e repito: pai pra filho é asa e raiz!

E tem mais essa mania que agora a gente tem de querer arranjar tudo em leis. É qualquer bobagenzinha, qualquer probleminha à toa, do mais trivial, sempre tem alguém querendo levantar solução escrevendo o proibido e o permitido em letras de jurista. Não que seja de todo equivocado, é bom que se diga, no meu curto entendimento, que se ponha claro e em bom português declarado, o regramento básico do conviver de uma gente de uma terra. Isto é o essencial. Já que o velho costume soprado em berço e prosa se alarga demasiado, não dando conta de todo recado. De modo que cabe bem a existência do texto escrito e do martelo oficial, para quando dois não derem liga por vontade, ao menos se dê a gosto do resto do povo. Que ninguém quer briga se prolongando em duelo e rixa de parentes, desgraça boba e profunda, causadora perpétua de mortes e tristezas. Afinal das contas, tudo é que serve a encontrar um bom jeito de conviver melhor, senão em felicidade plena, ao menos em tragédia compartilhada. Porque tem coisas que regramento nenhum humano dá conta de findar. Viver é muito perigoso.

Mas voltando ao colóquio, a prosa de endireitar. Que mania besta é esta, alguém ache explicação, de pensar o bicho homem que tem cabimento querer tudo controlar, assim escrito em papel e ordem de mandar, tudo ao juiz ordeiro, com caneta e toga, capaz de organizar a bagunça mestra. Eta bobagem! Eta ilusão! Mais vale uma ordem bem dada e obedecida, que cem ordens cantadas ao vento, já dizia meu compadre meu. Vento não cria autoridade. Dá no máximo ventania. E se é certo que passou de três homens (e se ainda houver mulher no meio) já se faz necessário um combinar de regras e um que as faça cumprir, não é menos verdade, nem mais mentira, que homem não é burro (ou não costuma ser) e não vai obedecer ordem dada frouxa.

Porque é evidente, todo mundo vê, todo mundo sabe. Dá vergonha de aceitar. Mas é quando mais um homem precisa de lei é quando mais ele quer estar fora dela, doido para ninguém perceber, ligeiro! Na frouxidão é que ele escapa, e de resto escapa todo regrar. Assim desacreditada é que ninguém mais pega de obedecer. Um contando ao outro um jeitinho atalho de esperteza. A regra o homem faz, a regra o próprio homem quebra. Causa disso é que é preciso criar norma forte, razoável, que não apeia, não apeia... Deixa viver à vontade. Mas quando bate na cerca do limite, age! E nisso é infalível! Nisso ninguém escapa! O resto... O resto a gente deixa para o coração partido, para o arrepender, para a expiação da verdadeira culpa. Deixa para mãe debruçar em berço, para chinelada de pai, pra seio de família. Para olho feio de vizinho, pra bengala de vó, pra conselho de amigo. O resto.

Só talvez, pois sabe lá o certo, quem sabe? Possa dá jeito de existir um gostoso viver. Porque com o homem é assim. Tem necessidade acreditar, desconfiando. Mas não basta só o desconfiar. Nem só acreditando. Dá chance pro menino! Mas põe as rédeas no lugar. Pro puxar necessário, o coice leve e bom. A pequenina força bruta. Com jeito. No corriqueiro, no dia-a-dia, no normal-trivial, uma soltura que dá gosto apreciar! A construção! A caminhança! Eta homem bom! Mundo bom! Vida boa!

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Be Yourself!

É preciso que, em primeiro lugar, tudo tenha um tom de divertimento, que tudo sirva, primordialmente, à distração. Das conversas de botequim, aos textos de jornais e revistas, passando por seminários universitários, palestras, congressos ou a mera roda de amigos. A ordem é uma só: é veladamente proibido ser sério ou, pior ainda, ser triste. Nada que diga respeito, é bom destacar, a arte da ironia ou do humor. Não se chega a tal sofisticação. Afinal de contas, isto já seria levar as coisas a sério demais. A vida foi feita para ser gozada, este o lema principal. O importante é ser feliz! Não caia na besteira de desfilar ideais, hoje é o tempo do fim das utopias e para estar na moda é preciso ser cético.
O ceticismo é quase um fetiche. E para ser realmente moderno deve ser acompanhado de uma roupa bem transada, do tipo calças xadrez com cintura baixa, saias indianas, camisas personalizadas, acessórios com ares artesanais, tênis do tipo “all star” e, principalmente, um belo par de óculos, de preferência com armação destacada e escura. Tenha uma variedade de óculos à disposição, é muito bom variar, isto demonstra personalidade e lhe oferece um “quê” intelectual. Ao sentar-se, cruze as pernas, seja homem ou mulher e jamais, jamais, demonstre desconhecimento sobre nenhum assunto. Sempre há um “Interessante...”; um “Curioso...”, para lhe salvar (a dica é utilizá-los juntamente com a mão segurando o queixo e o olhar expressivo). Cinema brasileiro, sertão nordestino, nietzche, pós-modernidade, filosofia grega, complexidade, revolução cultural, sustentabilidade, tudo isso é muito chique. Não deixe de freqüentar feirinhas livres em bairros estratégicos da cidade. Nestes lugares encontrará uma série de dicas de boas maneiras. O rústico combinado com o artesanato fazem qualquer um ficar de quatro.
Mas é claro que tudo isto dependerá da tribo ao qual você pertença. Porque em alguns lugares você pode ser muito mal visto comportando-se assim. É importantíssimo fazer parte de uma tribo e há várias a escolher, ao gosto do freguês. Afinal de contas, numa cidade tão bagunçada, tão múltipla, a gente tem que se encontrar. Piercings e tatuagens podem ser uma boa dica para aproximação, porque são vários os grupos que comungam desta mesma filosofia. Se você é do tipo malhação, por exemplo, uma bela tatuagem sobre o tríceps leva qualquer mulher à loucura. Se for mais fraquinho, do tipo alternativo, faça nas costas, por exemplo. Já para as mulheres, a tradicional tatoo no tornozelo ou na nuca faz qualquer um pirar. Piercing na língua já é mais radical, se for este o seu objetivo. A tradição sugere no umbigo ou no supercílio, e com isto já está garantida a sua participação no que há de mais moderno. Existem também as tribos das bandas de músicas: emos, punks, roqueiros e, claro, os eletrônicos. Tem para todo gosto! Os moderninhos gostam mesmo de samba e bossa nova na vila ou, no máximo, uma musiquinha experimental em algum inferninho da augusta. Os moderníssimos freqüentam raves e se esbaldam com a batida eletrônica. Tudo liberado! Os nostálgicos andam de motos harley em festivais de motoqueiros, regados a muito rock´n roll, jaquetas de couro, barbas compridas e cabelos ao vento. Definitivamente fora de moda, herdeiros da juventude transviada, rebeldes sem causa. Mas deixemos de lado a descrição minuciosa das tribos. O importante é fazer parte de uma delas. Ah! E independentemente da que você escolher: faça academia, seja você mesmo, compre logo um carro (ou moto) e desencane, a vida é para curtir!
Uma dica imprescindível para ser moderno é saber conjugar diálogos em rodas de seres humanos, no denominado jogo social. Numa roda de amigos não pode faltar a tríade carro, mulher e futebol. Use e abuse dos três e será considerado da turma. O coringão, o verdão, o jogão, a seleção, o golaço, o ronaldinho, o robinho, o serginho, o murici. O bundão, que peitão, que tesão, ah lá em casa, gostosa! Que carrão! Na dúvida, reclame do seu time, fale mal do time do outro, elogie a mocinha gostosa da novela das oito e não deixe de comentar o custo/benefício em quilômetros por litro no desempenho do seu automóvel. Isto garante um bom diálogo. Sempre regado a churrasco e muita, muita cerveja! Só alegria!
Na roda feminina, não pode faltar uma boa fofoca, o que exige estar bem informada quanto à vida alheia. Se não estiver, não se arrisque, garanta informações do mundo das celebridades (a televisão a ajudará), o que pode garantir divertimento certo na roda. Comente sempre a roupa das colegas, em geral para criticá-las, uma vez que falar bem nunca gera o mesmo efeito. Saiba elogiar as que estiverem próximas, isso garante algum sossego. Novelas é um assunto bem light, é riso certo! Sempre tenha uma nova dieta em mãos e comente-a em momentos de emergência, é uma arma preciosa. Nem é preciso destacar a necessidade de estar em regime constante, nada é tão moderno no mundo feminino, emagrecer é uma ordem! Cabeleireiras, depiladoras, creminhos, receitas novas, tudo vai bem na descontraída conversa. Seja moderna mulher! Tenha postura, opinião própria, priorize a sua profissão, esteja sempre bela, faça academia, tenha filhos lindos e escolha um maridão. E cuide dos seus peitos, os silicones foram inventados para isso! Mas não se esqueça que é moderníssimo fazer correr o antigo marido, dar uma recalchutada no cirurgião, se o caso, e partir para a conquista da sua independência. Nada é mais excitante do que uma mulher bem resolvida, no seu carrão comprado com a pensão alimentícia, pronta para divertir-se em algum clube de divorciados. A alegria é para todos! Pare de sofrer! Você mulher! Queime o sutiã e dê seu grito de liberdade! A Lei Maria da Penha está junto de você!
Desculpem os homens, excedi-me no universo feminino. Você meu caro, tem tudo a seu favor. Não saia da academia, eu insisto. Esteja sempre queimadão, não esqueça das roupas transadas, é preciso variar. Se for cinquentão, compre o seu conversível, você merece. Se mais novo, contente-se com o seu golzinho. Mas tenha carro, mande flores, freqüente motéis e nunca se esqueça de ter uma amante. Nem que seja de mentirinha, só para contar papo na roda dos amigos. Exagere nos detalhes, nas posições, vibre com a quantidade de gracinhas que você traçou no último verão e seja um homem moderno, por favor!
É bom destacar também, que os modernos de verdade já não enxergam mais a questão de gênero de modo tão simplista. Afinal de contas, em tudo é preciso inserir um terceiro elemento, a terceira via, o “tertio gens”. Devo tomar cuidado para adentrar nesta seaara, porque neste âmbito costuma haver uma radicalidade maior no politicamente correto. É que nos últimos tempos tornou-se muito desejável que se tenha uma postura bastante liberal no quesito opção sexual (a utilização da palavra “opção” é essencial quando o assunto é sexo), a ponto de haver construções do tipo pansexualistas. Hoje já se fala em inúmeros sexos, superando a já ultrapassada teoria dos dois sexos. Portanto, se você é realmente irreverente, contemporâneo e sem preconceitos, assuma uma opção (insisto em “opção”) sexual mais abrangente e navegue pelo maravilhoso mar da diversidade.
Aliás, num mundo tão múltiplo (multiplicidade é uma palavra da moda, assim como minoria, globalização, tendência e outras do gênero, use e abuse!) é importante ter opinião. Nada é tão essencial quanto opinar, e opinar criticamente. Afinal de contas, num mundo democrático todo mundo pode ter opinião e tem o direito de que ela seja levada em consideração (porque tudo é uma questão de opinião, e opinião cada um tem a sua). Usufrua da democracia, ela foi feita para você! Treine em casa técnicas para expor o seu “acho” onde quer que esteja. É preciso ser incisivo, pois muitas vezes é difícil conquistar um espaço num ambiente tão competitivo. Levante os braços, fale mais alto, mais grosso, invente, à sua maneira, um jeito de se impor. Se imponha, mostre personalidade, tenha algumas frases de efeito em mãos, decore frases de autores famosos, de gurus importantes e solte-as na primeira oportunidade. As atenções serão todas voltadas a você, e você será o grande articulador do diálogo. É preciso ter uma postura autônoma para conseguir este proveito, estar com a auto-estima em dia. Faça as pazes com o seu espelho, encontre o seu eu interior, construa a sua felicidade, lute pela vida, não espere nada de ninguém!
Uma característica que cai muito bem na pessoa moderna é estar associada a alguma organização não governamental. Esta é uma “tetéia” que não pode ser deixada de lado. A filiação a alguma entidade deste tipo pode garantir-lhe um futuro promissor. Ao apresentar-se, por exemplo, você em seguida comenta a sua participação em uma ONG (esta é a forma mais íntima com que costumam denominar estas entidades), seja de proteção ambiental, consumo consciente, conscientização sobre qualquer assunto ou defesa de algum direito. Sempre se lembre de falar em cidadania, isto é realmente fundamental. E tenha sempre um discurso sobre a defesa dos direitos em mãos, não importa que direitos sejam, mas defenda-os (juntamente com a conscientização, é claro). Os olhos dos futuros chefes ou mesmo de futuros amantes vão brilhar. Você será visto como alguém solidário, com responsabilidade social, e chique, chique, chique de doer!
Para os mais ousados, funde uma ONG você mesmo! E ao se apresentar, puxe um cartãozinho de visita (cartões de visita são instrumentos essenciais para a construção de sua rede social, o chamado network, imprescindível construir o seu. E comece já! Toda pessoa é uma oportunidade em potencial! Nunca se esqueça disso!). Voltando à apresentação... Puxe o seu cartão, não o profissional, mas o socialmente correto, este abre portas. E nele estará seu nome, central, com o símbolo coloridinho e caprichado que o designer lhe preparou com tanto amor e embaixo do seu nome a designação: “manager”, “chairman” ou CEO. Ah! Eles já são todos seus (o (a) chefe ou a (o) amante).
É importantíssimo aprender a fazer um bom currículo e saber apresentar-se diante do entrevistador. Acompanhe as dicas do headhunter mais próximo, ele pode te ajudar. Sempre sorria, seja dinâmico, criativo, tenha espírito de liderança! São características valorizadas pelo mercado. Você tem que saber se vender. A competição está acirrada, se você não souber fazer isso por você, quem poderá?! Não se esqueça que a propaganda é tudo e o produto é você. Use e abuse de expressões em inglês, o mundo corporativo vai ao delírio com elas. Network, staff, companie, CEO, business, brain storm, e-commerce, trade, delivery, etc. Seja pró-ativo, tenha sempre uma estratégia em mãos, quebre todos os paradigmas, agregue novos valores, esteja comprometido com a qualidade, e nunca, nunca se esqueça: o cliente é o rei! Na reunião da sua equipe, nunca se esqueça de soltar frases de efeito, do tipo: “É fundamental ressaltar que a atual estrutura de organização contribui para a correta determinação do nosso sistema de formação de quadros”. Ou “Não podemos esquecer que o início do programa de formação de atitudes auxilia a preparação e a estruturação das nossas metas financeiras e administrativas”. E outras neste sentido, ainda que nem você mesmo saiba o que quer dizer com elas. O importante é que elas causem impacto e que afinal garantam que você participe do debate. Aqui, mais do que nunca, é preciso ter personalidade e opinião (pró-ativo, lembra?).
Ainda falando do mundo corporativo, mas não restrito a eles, a grande novidade do mundo moderno são as palestras motivacionais. As palestras de modo geral são algo que encantam muito as pessoas e se você quer realmente crescer profissionalmente, torne-se um palestrante. Mas vamos nos ater mais especificamente a um ramo deste mercado. O ramo da auto-ajuda, em palestras e livros. Sempre tenha um vídeo motivacional às suas mãos. Assista-o antes de uma entrevista, antes de uma reunião importante, quando o seu casamento estiver em crise ou se seu filho estiver usando drogas. Ela certamente vai te ajudar! Quantos aos livros, o grande segredo é partir de alguma teoria tradicional e adaptá-la a linguagem e as necessidades atuais. Há clássicos, do tipo “A arte da guerra”, que já foram adaptados para centenas de utilidades. Descubra o seu clássico (definitivamente dê preferência para os orientais!). Livros como “Quem mexeu no meu queijo”, “O Monge e o Executivo”, e tantos outros, fazem a febre mundial e, portanto, é preciso conhecê-los de perto. Infelizmente os norte-americanos levam grande vantagem neste quesito, porque basta o nome estrangeiro para garantir um grande sucesso neste ramo. Mas nada que o empeça, é verdade, de realizar algum curso no exterior e chegando aqui não se esqueça de destacar na capa de seu livro ou na frente do folder da sua palestra: “visiting scholar university of”, isto deve resolver o problema.
Aliás, a última moda no mundo de hoje é viagem internacional (internacional também é uma daquelas palavras que causam frisson. Sempre que puder, já sabe, use e abuse!). Esqueça as viagens pelo Brasil, nada mais old fashioned. Se puder passe mais de um mês fora. Um ano é o delírio geral. Intercâmbio em casa de família é “o que há”! Se for de mochila, então, sucesso garantido em qualquer espaço. Coloque no currículo. Demonstra coragem, espírito esportivo, empreendorismo. Mostra que você é descolado e alternativo. Fantástico! O top do top!, como diria uma tia. Não deixe de fazer uma baladinha de despedida (Se for viajar para os Estados Unidos batize-a de “going away party”, fica muito mais especial), e outra quando chegar, de boas-vindas. E, claro, conte a sua experiência. Putz! Nada é tão valorizado hoje em dia quanto a experiência pessoal. Um homem sem experiência é um homem sem espaço. É necessário vivenciar, aproveitar o momento, ser experiente, para contar tudo depois. Compartilhe as suas experiências! Escreva um livro ou artigos para o jornal da sua cidade. E registre tudo em muitas fotos, mais de mil, faça poses, escolha cenários, é o tempo das máquinas digitais. Qualquer um pode ser um fotógrafo. Seja você também!
Poderia citar, ainda, algumas dicas menores, que isto já está cansando. Por exemplo, faça comentários sobre notícias trágicas, sempre reclame do governo, fale mal do presidente e do senado. Leia jornais, revistas, assista noticiários, assine a CNN, se informe! A informação é a maior ferramenta de poder que se pode ter. Num mundo tão dinâmico, em constante mudança, é preciso manter-se atualizado sobre tudo. Também freqüente shopping centers, para atualizar-se com as novidades do mercado. Nada pode ser tão moderno quanto passar uma tarde peregrinando pelos corredores cheio de lojas e no final do dia pegar um cineminha com um balde de pipoca (se estiver acompanhado compre um só, seja romântico... Pense nos dois dividindo um balde só... Que delícia!). Procure promoções novas para contá-las depois aos amigos, demonstra bastante esperteza e agilidade. Mas é claro, sempre diga que você aproveitou o preço baixo e, principalmente, que era o último dia do saldão. Mas não deixe de comprar coisas caras e exclusivas, isto é que garantirá a sua dignidade diante do grupo. Depois você exibe a sua peça única, aquela que ninguém mais poderá ter. Conte vantagens! Mostre que você saiu na frente, economizou, fez um ótimo negócio! É importantíssimo ser um bom negociante no mundo de hoje.
No mais, seja ecológico, jogue lixo no lixo, fale mal dos Estados Unidos (em nome da América Latina) e namore artistas e jogadores de futebol (já pensou que chique você contar para o seu amigo que está pegando uma artista plástica ou uma atriz de teatro? Eles vão morrer de inveja!). Pense em prestar um concurso público. Ainda não encontrou o seu? Há vários editais disponíveis no mercado. Ache o cursinho preparatório que se encaixe no seu perfil. Tenha perfil! Eles garantirão o seu futuro, a sua estabilidade e a sua conta bancária. O mercado está muito exigente e desumano, arrume um cargo. As profissões liberais são coisas do passado. Com o Estado cada vez mais forte e atuante, mais participativo na vida social, nada melhor que nos aliarmos a ele na construção de um mundo melhor! (mas não sonhe muito, lembre que é preciso manter uma boa dose de ceticismo). Também é sabido que das tetas do governo ninguém te tira. Uma vez mamando, sempre mamando (que ninguém é de ferro!). Depois é só relaxar e curtir as férias prolongadas, com muito churrasco e cerveja, claro! A sua hora vai chegar! Não desista! Seja um brasileiro, que não desiste nunca!
Faça um blog. Orkut, facebook e twitter são para adolecentes mimados que não tem o que fazer, ou para gente barata que quer se promover. Gente grande faz blog, entra para o mundo da blogosfera. É chiquérrimo!, como diria uma madame professora. No blog você se expressa, entendeu? Você é mais você, você se encontra e, claro, dá a sua opinião. Portanto, nada mais moderno do que fazer um blog. Encha-o com frases de famosos, figuras bonitas, paisagens, isto tudo casa muito bem. Seja criativo, demonstre personalidade! O espaço e seu e é gratuito! Se esbalde! Conte para os amigos, troque endereços, a internet é uma maravilha! Moderníssima!
E jamais se esqueça dos tradicionais e-mails, a comunicação mais contemporânea que existe. Mantenha uma constante correspondência virtual. Além dos recados triviais, nunca se esqueça de compartilhar com os seus colegas aqueles lindos e-mails com apresentações de slides no power point, inspiradíssimos e de muito bom gosto. Aliás, seja ousado, faça você mesmo a sua apresentação, com uma mensagem bem especial. Isto alegrará o dia de todos e os fará lembrar que você é um homem (ou uma mulher) espiritualizado, sensível e que se preocupa com o próximo. Mas varie com e-mails de piadinhas, as mais diversas, para que não se torne piegas demais, demonstrando que você também tem bom humor, sabe rir das coisas, é leve e descontraído. Em outras palavras, a sua imagem vai bombar na rede social!
Por fim, procure relaxar, fazer alongamento e cultivar a sua espiritualidade. Esteja em comunhão com o mundo a sua volta, abra os seus chacras para o universo, libere as energias negativas, medite. Nada é tão moderno quanto meditação. Sinta-se leve, imagine-se nas montanhas, feche os olhos, relaxe. Desprenda-se dos bens materiais, nada disso tem valor. Esqueça seus problemas, concentre-se no seu bem estar. Nada é tão importante quanto o bem-estar... Medite... Esteja preparado para a nova era de aquário. Peça a luz inefável dos extraterrestres, eles estão ai, acredite neles! Sinta a terra, o ar, a água, a vibração de todas as coisas. Sinta! Entre em transe. Esteja em sintonia com tudo... Esqueça a modernidade, tudo não passa de futilidades. Encontre o seu eu interior. Faça as pazes consigo mesmo, com o seu espelho, com a sua aura. Siga o seu guia, o seu guru, este alguém pode lhe ajudar nesta jornada. Mas nunca, nunca se esqueça! Quando encontrar o seu caminho relate, escreva um livro, compartilhe, dê a sua opinião! Conte a sua experiência! O mundo precisa conhecer você! Valorize as suas qualidades! Busque a felicidade! Seja você mesmo!
(E tem coisa mais chique que terminar um texto num tom tão triunfante e, ainda, concluindo com o título, jogado assim, de repente, fechando o círculo. Uma linguagem solta, quebrada, bem moderna. O título em inglês! Entendeu a jogada poética? Muito chique! Conversas soltas com o leitor, texto criativo, este final inesperado... Tudo muito moderno, muito up to date!, quase pós-moderno, entendeu?).

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

De cigarras e cigarros

Cigarra, cigarro; cigarra, cigarro.
Cigarra que pia, cigarro de palha;
Cigarra de dia, cigarro que falha.
Cigarra, cigarro; cigarra, cigarro.
Coff coff coff, cigarro que mata;
Cigarra que pia, canta e fala.
Coffee coffee coffee, e cigarro – sim!
Cigarra fala, canta e pia, assim:
Trim tru, trim tru, tru tru;
Fumaça, cigarra, fumaça, cigarra.
Acabou o cigarro! Ó governador!
Mas a cigarra fica, sim senhor!
Se agarra cigarra, segura o cigarro.
Ah, já foi! Sem cigarro, cigarra.
Ci, ci ci, e se, e se, cigarra?

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Cicici...



Que vontade de falar um monte de coisas! Engraçado que um acaba puxando o outro e tudo caminha, como num bom e velho trem. As outras coisas da vida hão de ser assim também, como já dizia um outro, vamos juntos... Animado por esse espírito de solidariedade, aceito o julgamento severo de Pedro, defiro a pretensão de Antonio e, assumindo o principal papel de um juiz trabalhista, homologo a transação, mas antes ouça-se o Parquet, pois a cigarra...ora, a cigarra tem a poesia no sangue!

Apelo à Dona Cigarra

Apelo para quinta emenda! E tratando-se de falha miúda, conforme prevê a Lei dos Miudinhos Criminais, proponho a composição. Porque digamos que eu esteja com bastante crédito neste blog. Sendo assim, ofereço uma cesta de frutas, a figura de um bobo (ou seria um palhaço?), mais meia dúzia de poemas variados da literatura universal. Em troca, a absolvição completa. Ah! E uma promessa como medida alternativa: que os senhores Antonio Carlos, João Augusto, Pedro Xavier e Miguel Távola, inclusive, procurem, nos próximos dias, a senhora cigarra que anda a cantar nesses primeiros dias de primavera na árvore mais próxima e acompanhem-na em sua cantoria. A tarefa é simples. Sugiro violão ou pandeiro, para os mais populares. Dizem que acordeon casa bem com o timbre da senhorita. Se metais, apenas os mais graves. Mas nada que proíba qualquer experimentação. Para os clássicos, o bom e velho piano. Mas, atenção: os senhores devem ir à cigarra, e não o contrário. Sob a árvore que ela escolher. E que a apresentação não dure menos de duas horas (foi a sugestão do sábio bobo que consultei, para a profilaxia da doença concursal). Sem mais, firmo o presente acordo e envio-o à homologação.

Sabedoria milenar


Com a paciência que lhe era peculiar, dizia minha avó em sua língua nativa "As pessoas comportam-se como o trigo em campo aberto. Quando este está pleno de grãos, encontra-se curvado. Quando vazio, está sempre de pé".

Pretendia ela dizer que os arrogantes, desprovidos de conteúdo, estão sempre com a cabeça erguida, proferindo bazófias e fanfarronices, vangloriando-se de um conhecimento que, não raro, não possuíam. Os sábios, estes sim, externavam a humildade que advém daquele que tem absoluta consciência da vastidão do conhecimento, não obstante tenham atingido certo amadurecimento intelectual.

Este era o comentário em resposta às minhas reclamações quanto ao ambiente da faculdade..."Quanta sabedoria!", dizia-me, maravilhado com aquilo que apenas pude compreender depois de velho, já que não conhecia o idioma em que o provérbio era expressado...

Aos poucos me dei conta do quanto estes provérbios estão impregnados na cultura do oriente, e do quanto ainda são atuais, não importa quanto tempo tenha passado.

Ao momento atual, certamente ouviria "Se cair sete vezes, levante oito". Ou ainda, "Após a tempestade, a terra endurece", como quem diz que as dificuldades moldam o caráter.

Sabedoria milenar... voltemo-nos aos sábios...


Contestação

Intimado de uma injusta (?) acusação, Antônio Carlos aqui se apresenta para declinar sua justificação. E o faz em peça escrita, tamanha inaptidão construída pelas horas de estudo concursal, cujo resultado mais evidente é a incapacidade para a prosa e a debilidade social.

Em consequencia de tamanho estudo, mal consegue conversar. Aborda pessoas na rua e nada tem sobre o que dialogar. Assuntos? Quais? Nem a todos interessa a "
tipicidade conglobante" que ora está a devorar.

E agora? O que fazer? O diálogo é um dos pilares do bom viver... Se nada tem a compartilhar, como deveria proceder? O resultado, prestem atenção, é livrar-se dos livros e de toda distração. Verdadeiro mal que nos está a consumir, outro destino não merece a não ser o de se esvair.

Isto posto, julgando-a procedente, termina esta defesa, em forma de Repente.
E nesta hora, sem alegar outro fundamento, pede aos verdugos que lhe dê deferimento.

Julgamento

_ Eu protesto, Excelência! Estes homens não são culpados de desídia. Apenas foram engolidos pelos afazeres diários, neste desbravar da selva escura chamada por alguns de concurso público.
_ Excelência, não lhe dê ouvidos. Já se passaram dias desde a última manifestação de vida de tais rapazes, que tudo tem à sua disposição. Antigamente, homens e mulheres eram obrigados a caminhar por longas veredas até ter com os compadres. Faziam sacrifícios de toda ordem para poderem desfrutar da mútua presença. Estes garotos, com toda a tecnologia cibernética, com o poderio interminável dos cabos e dos satélites, com esta avalanche de descobrimentos científicos a tudo facilitar, ousam vacilar e deixar os companheiros à sua própria sorte, presos a um isolamento perverso. Todos são culpados e merecem a condenação. A revelia está configurada e nada mais resta do que lhes sentenciar.
_ Ora, mas Excelência, é preciso compreensão. Há muito o que fazer, folhear livros, rabiscar cadernos, decorar númerosos artigos e recitar conceitos. Não se pode exigir tanto em tais ocasiões...
_ Hahaha, está vendo Excelência? A defesa não passa de justificativas vazias, de ecos do desespero. Quem não tem para si os compromissos, as tarefas? Nada disto pode afastar o dever de comparecer e de compartilhar.
_ Mas não é isto, Excelência. É que...
_ Basta! Já ouvi dos doutores o suficiente. A balança não pende muito para quaisquer dos lados. Sendo assim, que se dê mais tempo para que os réus Antônio Carlos, João Augusto e Miguel Távola venham a esta Corte Suprema. Saem daqui intimados o defensor Pedro Xavier e o acusador Aiatolavo. É como decido.

Um corvo preto no céu branco

Um corvo preto no céu branco. Uma nuvem sem fim faz do céu branco. E um corvo preto voando...
Corvo preto não é coisa boa. Dizem que os corvos estão ligados à morte. Quando um corvo chora, alguém morre. CORVO, palavra estranha, lembra cova e lembra corpo. CORVO, palavra muito estranha.
O grunhido que o corvo faz nada tem de canto. Parece um engasgo, uma afronta, uma expressão de desprezo. O pio do corvo é muito estranho.
As asas do corvo são pretas, todas as suas penas são pretas. São pretas as suas pernas e também as suas patas. Os olhos do corvo são inteiramente pretos e seu bico, mais preto ainda. O corvo é inteiro preto. CORVO: palavra estranha, muito estranha.
Tem dias que faz um frio triste e que o céu é todo branco. Parece que uma nuvem dominou o mundo, roubou o Sol e se espalhou por toda parte, uma nuvem branca, mas sem luz, um branco sem felicidade. É mais gelado quando o dia é assim, de céu branco, de nuvem branca pairando sobre todas as cabeças. Tudo fica sem cor, tudo fica igual.
Coisa estranha, coisa mais estranha o que me aconteceu. Estava sem vida , perambulando no dia frio, quando ele surgiu tão belo! Lembrei da poesia, da música e do amor, daquele contraste gostoso, que transforma nosso sorriso, nosso sabor. Nada extravagante, nem foi preciso cor. Um corvo preto no céu branco.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

À procura dos sábios

Para onde foram os sábios, aqueles tranqüilos senhores imunes à perturbação, assentados na paz do saber, no trono de um conhecimento suave e sem tremores? Por que diabos extinguimos tais anciãos, estes seres em quem podíamos confiar, estes homens que nos revelavam um mistério de paz e doçura?
Ia-se até o oráculo com perguntas, mas não se viam rugas em sua testa, não se via acelerar a respiração, nem roer de unhas ou mexer de pernas. Nada disso. O santo apenas balançava lentamente a cabeça, num gesto de compreensão, matutava um pouco, e, como sem movimentar músculos e quase sem agitar o ar, balbuciava verbos magníficos, palavras caídas do céu, que eriçavam a beleza dos enigmas mundanos até o mais longínquo altiplano, onde nosso sorriso não passa de mais um verso na poesia de uma terra feita de pura verdade.
Ai, mas que sonho bom, que dias tão ensolarados, nem sei mesmo se os sábios existiram, se são mitos, história ou estória, ilusão ou paixão, esperança ou tempo perdido. Sinto falta deles, sem os ter conhecido.
Às vezes fico cansado desta gente verborrágica, que não segura a matraca para disparar disparates. Queria perguntar ao sábio o que fazer diante de tão besta gente, que tudo culpa aos outros, ao capitalismo, às elites, ao neoliberalismo (se alguém souber o que é, por favor, mande um telegrama), à discriminação, ao plano econômico, blá blá blá. Quanta falta de imaginação e de pudor!
Ouvi uma mãe contar a triste história dela e de seu filho, que veio a entrar para as drogas e descambar para o crime e ser aprisionado, em prisões e no desespero. Chorei com ela e com sua sofrida luta. Depois de suas palavras, nada ouvi sobre o descaminhar da juventude, a falta de rigor na educação, sobre os malefícios das drogas, a irresponsabilidade da família e dos amigos, a falta de amor. Nada, absolutamente nada, a não ser que o governo isto, a escola aquilo, a polícia também aquilo outro e a sociedade mais um tanto.
Depois, um juiz de toga antiga contou de sua vida fora dos tribunais. Aprendeu a amar desde cedo e conseguiu ser amigo dos negros, dos pobres e dos doentes, das crianças abandonadas e dos que dormem nas praças. A todo momento, apontava o dedo para o próprio peito e alertava para sua imperfeição, contando como foi desbravar o cipoal de sua alma.
Mas o juiz não estava tranqüilo, não estava em paz. Sim, parecia até ser feliz, mais do que a média, talvez. Só que não era o sábio, não, não se parecia com aquele senhor imperturbável, de serenidade sólida e coração macio. Gostei de conhecer seu exemplo, de compartilhar seus sentimentos. Porém, nada de grande encantamento, de procurar seguir, nenhum ímpeto de discípulo. Aquele sujeito era como eu, quem sabe melhor do que eu, mas não deixava de ser assim miserável, como sou e somos.
Parece que estamos esperando algo acontecer e este algo não aparece. Teima em ficar na espreita, atrapalhando nosso sossego, não vem nem vai, não chega nem sai. Deve ser a pós-modernidade... Piada sem graça. Coisa mais desnecessária inventar palavras para dizer que simplesmente não sabemos o que está havendo. Os sábios fazem muita falta.