quinta-feira, 21 de março de 2013

Uma pequena fresta

Que existam pássaros, e eles tenham asas e que ainda sejam coloridas, é um capricho que nenhuma razão será capaz de explicar. Que a poesia seja capaz, apenas com sua forma e palavras, de devolver um homem ao seu desígnio é um mistério que nenhuma lógica concluirá. Pois a esperança não nasce das coisas certas e exatas, muito menos de realidades úteis. Fora de nossa aptidão, perto do inatingível, na pequena fresta que esquecemos ou sequer reparamos, é ali que nasce a esperança. Onde as peças não se encaixam e a ciência naufraga. O lugar terrível em que depositamos nossa matéria morta, por decisão. Ser feliz é assim: a vida acontece, simplesmente, e só depois decidimos se vamos escrever um poema ou uma reclamação. Como aquele moço que ao escolher mesa e cadeira para atender clientes ouviu alguém lhe dizer: põe de frente à janela, para você contemplar... Qualquer palavra eficiente poderia ter sido dita: orçamento, investimento, custos, prazos para mudança. Mas "contemplar" só o amor diz. Igual ao homem economizando cada centavo para o anel de noivado: ouro puro e brilhantes. O amor pede loucuras e raridades, implora jóias, só aceita o mais belo. Por isso, a liturgia não aceita jamais cálices de plástico e o anel do pescador nunca pode ser banhado. Um rei precisa de seu trono e coroa, como uma rosa de suas pétalas e espinhos (estupidez nascida em reuniões pastorais...). Alegria verdadeira exige vocação. A minha, intuo, é cantar inutilidades para um mundo tomado por escritórios e supermercados, soprando segredos e cantigas entre distrações de homens ocupados. Fazê-los recuperar a fresta imperceptível que deixaram (pelo acaso?) escapar, para devolvê-los à tutela do amor e da esperança.  

quarta-feira, 13 de março de 2013

Perfil do Papa Francisco



Viva Papa Francisco!


Rezemos pelo novo Papa, sem dar ouvido às especulações que certamente virão a seu respeito. Somente o tempo nos fará conhecê-lo melhor e também as razões da sua eleição pelo Espírito Santo. 

Segue abaixo interessante artigo escrito durante o conclave, portanto antes da eleição do novo Papa, pelo jornalista norte-americano John Allen Jr*.  

Jorge Mario Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires

Enquanto não há pesquisas de opinião para estabelecer quem tem mais musculatura como candidato ao papado, o conclave de 2013 tem pelo menos uma medida objetiva a mais que o de 2005: o desempenho anterior. Muitos dos cardeais vistos como candidatos agora estavam também disponíveis da última vez, e alguém que teve força há oito anos poderia ser um competidor novamente. Por essa medida isolada, o cardeal Jorge Mario Bergoglio, de Buenos Aires (Argentina), merece alguma atenção.
Depois que a poeira da eleição de Bento XVI assentou, vários repórteres identificaram o jesuíta argentino como o principal desafiante do então cardeal Joseph Ratzinger. Um eleitor disse, depois, que o conclave teve “um quê de corrida de cavalos” entre Ratzinger e Bergoglio, e um diário anônimo do conclave que circulava entre a mídia italiana em setembro de 2005 indicava que Bergoglio chegou a receber 40 votos na terceira votação, a que ocorreu imediatamente antes daquela em que Ratzinger cruzou a linha dos dois terços e se tornou papa. Embora seja difícil dizer o quanto se pode levar isso a sério, o consenso geral é de que Bergoglio foi realmente um candidato de peso no último conclave. Ele chamou a atenção dos ortodoxos do Colégio de Cardeais como um homem que conseguiu segurar os avanços das correntes liberais entre os jesuítas, enquanto para os moderados era um símbolo do compromisso da Igreja com o mundo em desenvolvimento.
Ainda em 2005, Bergoglio marcou muitos pontos como um intelectual dedicado, que estudou teologia na Alemanha. Seu papel de liderança durante a crise econômica argentina deu polimento à sua reputação de ser a voz da ponderação e fez dele um potente símbolo do que os custos da globalização podem representar para o mundo pobre. A proverbial simplicidade pessoal também exerceu inegável atração – é um príncipe da Igreja que escolheu viver em um apartamento simples em vez de habitar um palácio episcopal, que abriu mão da limusine com motorista e prefere usar o transporte público, e que cozinha suas próprias refeições.
Outra medida da seriedade de Bergoglio como candidato é a campanha negativa feita em torno dele há oito anos. Três dias antes da abertura do conclave de 2005, um advogado argentino da área de direitos humanos entrou com uma ação em que Bergoglio era apontado como cúmplice no sequestro de dois padres jesuítas, em 1976, sob o regime militar que então vigorava no país. Bergoglio negou terminantemente a acusação. Houve também uma campanha por e-mail, que parece ter sido orquestrada pelos confrades jesuítas que conheciam Bergoglio dos tempos em que ele foi provincial da ordem na Argentina. Segundo a campanha, “ele jamais sorria”.
Dito isso tudo, o fato é que Bergoglio definitivamente esteve sempre no radar. É claro que está oito anos mais velho agora, e que, aos 76, já está fora da faixa etária que muitos cardeais consideram ideal. Além disso, o fato de não ter conseguido transpor a barreira do número de votos necessário da última vez pode convencer alguns cardeais de que não vale a pena voltar a tentar. Ainda assim, muitas das razões que levaram membros do colégio a tomá-lo como sério candidato oito anos atrás ainda estão de pé.
Nascido em Buenos Aires, em 1936, Bergoglio é filho de um ferroviário que emigrou de Turim, na Itália, para a Argentina, onde teve cinco filhos. O plano original do cardeal era ser químico, mas, em vez disso, ele ingressou em 1958 na Companhia de Jesus para começar os estudos preparatórios para a ordenação sacerdotal. Passou boa parte do início da carreira lecionando Literatura, Psicologia e Filosofia, e muito cedo era visto como uma estrela em ascensão. De 1973 a 1979 foi provincial dos jesuítas na Argentina.
Depois disso, em 1980, tornou-se o reitor do seminário no qual havia se formado. Eram os anos do regime militar na Argentina, quando muitos sacerdotes, incluindo líderes jesuítas, gravitavam em torno do movimento progressista da Teologia da Libertação. Como provincial jesuíta, Bergoglio insistiu em um mergulho mais profundo na tradição espiritual de Santo Inácio de Loyola, ordenando que os jesuítas continuassem seu trabalho nas paróquias e atuassem como vigários em vez de se meterem em “comunidades de base” e ativismo político.
Embora os jesuítas sejam, em geral, desencorajados de receber honrarias eclesiásticas, especialmente fora de seus países, Bergoglio foi nomeado bispo auxiliar de Buenos Aires em 1992, e depois sucedeu o adoentado cardeal Antonio Quarracino, em 1998. João Paulo II fez Bergoglio cardeal em 2001, designando-lhe a igreja romana que leva o nome do lendário jesuíta São Roberto Belarmino.
Ao longo dos anos, Bergoglio se aproximou tanto do movimento Comunhão e Liberação, fundado pelo padre italiano Luigi Giussani, que às vezes discursava no grande encontro anual do grupo, em Rimini, na Itália. Ele também chegou a divulgar os livros de Giussani em feiras literárias na Argentina. Isso acabou gerando consternação entre os jesuítas, uma vez que os ciellini, como são chamados os adeptos do movimento, já eram vistos com os principais opositores do colega jesuíta de Bergoglio em Milão, o cardeal Carlo Maria Martini. Por outro lado, isso tudo é parte do apelo de Bergoglio, um homem que pessoalmente se divide entre os jesuítas e os ciellini e, em maior escala, entre os reformistas e os ortodoxos da Igreja.
Bergoglio apoiou o ethos de justiça social do catolicismo latino-americano, inclusive com robusta defesa dos pobres. “Vivemos na parte mais desigual do mundo, que tem crescido muito, mas que pouco tem feito para reduzir a miséria”, afirmou ele durante um encontro do episcopado latino-americano em 2007. “A injusta distribuição de renda persiste, criando uma situação de pecado social que clama aos céus e que limita as possibilidades de uma vida plena para muitos de nossos irmãos.” Ao mesmo tempo, ele tende mais a se empenhar pelo crescimento em graça pessoal do que por reformas estruturais.
Bergoglio é visto como um ortodoxo inflexível em matéria de moral sexual e como convicto opositor do aborto, da união homossexual e da contracepção. Em 2010 ele afirmou que a adoção de crianças por gays é uma forma de discriminação contra as crianças, o que lhe valeu uma reprimenda pública por parte da presidente argentina Cristina Kirchner. Ao mesmo tempo, ele demonstra sempre profunda compaixão pelas vítimas da aids; em 2001, por exemplo, visitou um sanatório para lavar e beijar os pés de 12 pacientes soropositivos.
Bergoglio também marca pontos por sua apaixonada reposta ao atentado a bomba ocorrido em 1994 no prédio de sete andares que abrigava a Associação Mutual Israelita Argentina, em Buenos Aires. Foi um dos maiores ataques a alvos judeus já registrados na América Latina e, em 2005, o rabino Joseph Ehrenkranz, do Centro para a Compreensão Judaico-Cristã, ligado à Universidade do Sagrado Coração em Fairfield, no estado norte-americano de Connecticut, louvou a liderança de Bergoglio para superar a dor do episódio. “Ele estava muito preocupado com o que havia ocorrido”, disse Ehrenkranz. “Tinha vivido a experiência.”
Apesar disso, depois do conclave de 2005 alguns cardeais admitiram inocentemente duvidar de que Bergoglio realmente tivesse a forja e a força necessárias para liderar a Igreja universal. Mais que isso, para muitos dos não latino-americanos Bergoglio era um número desconhecido. Uns poucos relembraram de sua liderança no Sínodo de 2001, quando ele substituiu Edward Egan, de Nova York, como relator do encontro porque o cardeal norte-americano teve de voltar às pressas para casa para ajudar as vítimas dos atentados terroristas de 11 de setembro. Naquela ocasião, Bergoglio deixou uma impressão basicamente positiva, mas pouco marcante.
Bergoglio pode ser fundamentalmente conservador em muitas questões, mas não é um defensor dos privilégios do clero ou um homem insensível às realidades pastorais. Em setembro de 2012, ele disparou um ataque contra os padres que se negavam a batizar crianças nascidas fora do casamento, classificando a recusa como uma forma de “neoclericalismo rigoroso e hipócrita”.
As chances de Bergoglio em 2013 repousam em quatro pontos.
O primeiro, e mais básico, é que ele teve grande apoio da última vez, e alguns cardeais podem pensar em uma nova tentativa agora.
Segundo, Bergoglio é um candidato que traz consigo o Primeiro Mundo e o mundo em desenvolvimento. É um latino-americano de raízes italianas que estudou na Alemanha. Como jesuíta, é integrante de uma comunidade religiosa internacionalmente confiável, e sua ligação com o movimento Comunhão e Liberação faz dele parte de outra rede global.
Terceiro, Bergoglio ainda é atraente diante da usual divisão da Igreja, angariando com seu afiado senso pastoral, sua inteligência e sua modéstia pessoal o respeito tanto dos ortodoxos quanto dos moderados. Ele também é visto como uma alma genuinamente espiritualizada e um homem de profunda oração. “Somente alguém que tenha encontrado a misericórdia, que tenha sido agraciado com a ternura da misericórdia, está feliz e em paz com Deus”, disse Bergoglio em 2001. “Eu peço aos teólogos presentes que não me enviem ao Santo Ofício ou à inquisição; no entanto, forçando um pouco as coisas, ouso dizer que o lugar privilegiado do encontro é a bondade da misericórdia de Cristo sobre meus pecados.”
Quarto, ele é também visto como um evangelista bem-sucedido. “Temos de evitar a doença espiritual de uma Igreja autorreferente”, disse recentemente. “A verdade é que, quando se sai às ruas, como fazem todos os homens e mulheres, acidentes acontecem. No entanto, se a Igreja se fechar em si mesma, se torna ultrapassada. Entre uma Igreja que sofre acidentes lá fora e outra adoecida pela autorreferência, não tenho dúvidas em preferir a primeira.”
Na contramão, há razões para acreditar que a janela de oportunidade para Bergoglio alcançar o pontificado já se fechou.
Afinal, ele está oito anos mais velho que em 2005 e, aos 76 , seria apenas dois anos mais jovem do que era Bento XVI quando se tornou papa. Especialmente nos calcanhares de uma renúncia papal fundamentada nos problemas da idade e da exaustão, muitos cardeais podem se recusar a eleger alguém tão idoso por temer que isso exponha a Igreja a um novo choque.
Em segundo lugar, embora fosse um sério concorrente em 2005, o fato é que ele não conseguiu atrair apoio suficiente para superar a barreira de dois terços dos votos necessários para a eleição. Especialmente no que se refere aos 50 cardeais que estiveram presentes no último conclave, o clima tende a ser de ceticismo quanto à possibilidade de resultados diferentes desta vez.
Terceiro, as dúvidas sobre a resistência de Bergoglio espalhadas nos últimos oito anos podem agora ser argumentos ainda mais corrosivos, dado que a habilidade para governar e manter sob controle a burocracia vaticana parece ser o item mais importante nas listas dos eleitores. Embora Bergoglio integre muitos departamentos do Vaticano, inclusive a Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos e a Congregação para o Clero, ele nunca trabalhou realmente dentro do Vaticano, e podem surgir preocupações sobre sua capacidade para controlar o lugar.
Um quarto obstáculo é a ambivalência padrão quanto aos jesuítas no alto escalão, tanto dentro quanto fora da ordem. Esse pode ter sido o fator a frear o avanço de Bergoglio da última vez, e nada mudou no cálculo desde então.
Que Bergoglio se coloca novamente como candidato parece óbvio. Um escritor italiano, citando um cardeal anônimo, disse, no dia 2 de março, que “quatro anos de Bergoglio seriam suficientes para mudar as coisas”. Levando em conta seu perfil, no entanto, Bergoglio parece destinado a cumprir um importante papel neste conclave – se não como rei, será como fazedor de reis.
Tradução: Maria Sandra Gonçalves
John Allen Jr. é um dos mais experientes vaticanistas da atualidade. Jornalista do site norte-americano National Catholic Reporter (http://ncronline.org/), ele também colabora com o canal de televisão CNN e com a National Public Radio norte-americana. Allen é autor de vários livros sobre a Igreja Católica, incluindo duas biografias de Bento XVI, uma delas escrita quando Joseph Ratzinger ainda era cardeal. Duas de suas obras foram traduzidas para o português: Opus Dei, mitos e realidade, de 2005, e Conclave, de 2002, em que ele descreve os rituais que envolvem a sucessão do papa e apontava vários favoritos para assumir o posto após a morte de João Paulo II.

segunda-feira, 11 de março de 2013

Os riscos da politização do Judiciário e do ativismo judicial (Marcos Boeira)


O tema da politização do judiciário vem ganhando bastante notoriedade nos últimos dez anos no Brasil. O Supremo Tribunal Federal, frente à ordem de acontecimentos que ocasionaram transformações na jurisdição constitucional, encontra-se em um estágio de sua magistratura talvez não conhecido pelos clássicos do direito constitucional pátrio. É que, recentemente, a Corte enfrenta uma sucessão de casos que demandam, como nunca antes, um “atravessar de fronteiras” do papel judicial rumo às questões “essencialmente” não jurídicas, ou pelo menos, condizentes com a moral, o poder e mesmo com a justiça.
Os autores clássicos do direito constitucional brasileiro, como Rui Barbosa, entendiam ser “estranha” ao poder judiciário a análise de questões políticas, tema bastante debatido nos EUA, modelo de inspiração de nossas instituições político-jurídicas após o advento da república de 1891 (1).
Na verdade, a problematização das relações entre o direito e a política, tão afeita ao direito constitucional, era no passado matéria inerente ao chamado direito político, “direito” esse que estabelecia de forma mais satisfatória as fronteiras existentes entre o jurídico e o político (2). Atualmente, estamos a assistir, cada vez mais, o paulatino desaparecimento dessas fronteiras, ocasionado pelo “alargamento proposital” das funções do poder judiciário com relação à temáticas antes desconhecidas pelo mesmo. Esse fator de amplitude do campo de atribuições da jurisdição sobre matérias inerentes aos poderes políticos vem acarretando inúmeros problemas até então desconhecidos, como por exemplo, a natureza “não democrática” do poder judiciário querendo tomar para si atribuições inerentes ao processo político da democracia, ou então a anexação de funções “típicas” de outros poderes.
Assim, se é fato de que os demais poderes – poder executivo e poder legislativo- no Brasil legitimam-se segundo um processo deliberativo de escolha popular de seus membros e agentes, tal não se configura em relação ao poder judiciário. Com efeito, o poder judiciário é poder “aristocrático”, especializado e voltado para funções “jurídicas”, cujo sentido está, em última análise, na manutenção de conservação do direito ordinário e constitucional, razão pela qual seu método de escolha é de natureza “técnica”. Assim é a inteligência do art. 2º da Constituição do Brasil de 1988, em consonância com o Título IV.
A separação de poderes tem como foco a idéia genuína de “limitar o poder”, de estabelecer um “controle” recíproco entre os poderes a fim de garantir a liberdade. A limitação do poder é algo inerente ao Estado de Direito. Porém, o que estamos assistindo no Brasil é a progressiva flexibilização do “controle”, sua superação para um regime institucional inteiramente novo, estranho aos modelos imaginados pelo direito constitucional nos últimos dois séculos. De fato, o alargamento do poder judiciário no Brasil para além de suas competências, está a demonstrar que o atual cenário da jurisdição constitucional, entre nós, não se dá mais no campo do “tipicamente jurídico”, mostrando-se, de fato, que o poder judiciário está a realizar uma autêntica “jurisdição política”, segundo o qual aparece como “ultima ratio decidendi” no Estado de Direito democrático brasileiro.
Não obstante isso, subsistem Constituições que alargam funcionalmente o papel da jurisdição para além de atribuições anteriormente desconhecidas, ora em razão do aumento de competências das Cortes Constitucionais européias- órgãos de jurisdição especializada-, ora em Supremas Cortes do Poder Judiciário- órgãos de última instância do poder judiciário- que, em sistemas de “stare decisis”, por vezes encampam para si matérias relativas ao campo político. Assim, a politização da justiça, ou a judicialização da política, pode ser fenômeno previsto pelos sistemas jurídicos existentes. Por politização da justiça ou seu revés, judicialização da política, entende-se o ingresso do poder judiciário na área da política governamental, isto é, no conjunto de matérias próprias da governabilidade e da política propriamente dita, tendo por base uma previsão normativa que propicie essa ampliação funcional.
Ordenamentos jurídicos existem, por outro lado, que não prevêem tal fenômeno. Geralmente, Constituições de tais sistemas não estipulam diretamente a ampliação do judiciário para questões políticas, embora na prática tal possa se suceder com reformas institucionais e dinâmicas processuais. Entre nós, reformas institucionais e processuais tais como a ampliação de instrumentos do controle abstrato de normas com as leis n. 9.868 e 9.882, ambas de 1999, bem como a importação de idéias “distorcidas e mal compreendidas” do direito anglo-saxônico por parte da atual jus publicística nacional, como é o caso do chamado neoconstitucionalismo, estão a acarretar a deformação do papel clássico do poder judiciário no atual sistema judicial brasileiro. Temas como bioética (3), fidelidade partidária(4) , medidas provisórias (5), comissões parlamentares de inquérito (6), dentre outros, não só permitiram o alargamento da judicialização para além de seu campo próprio, senão também a entrada do Supremo Tribunal Federal em temas específicos da política. A analise do “mérito” de tais questões levou e ainda está levando o poder judiciário brasileiro a assenhorear questões existenciais e políticas estranhas à sua natureza funcional.
Diante disso, cabe a pergunta: isso se deve a judicialização da política ou à postura ativista de nossos magistrados, sedentos por “dizer” o direito em áreas que, até pouco, não lhes cabiam manifestar-se? É um fenômeno de politização do poder judiciário ou de ativismo judicial? O que estamos vivenciando com o “novo poder judiciário” brasileiro?
Importa, diante disso, afirmar que politização do poder judiciário (7) e ativismo são dois fenômenos que, embora possam se completar, são distintos por definição. Se por politização do poder judiciário entendemos um alargamento funcional para além do jurídico rumo ao político, ativismo judicial corresponde ao papel abusivo de determinado juiz que, colocando-se para fora de seu campo de atuação funcional, passa a interferir em áreas que não lhe diz respeito. Elival da Silva Ramos afirma que “por ativismo judicial deve-se entender o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos)” (8).
Assim, ao passo que a politização condiz com a funcionalidade, com a operacionalização do poder judiciário, o ativismo extrapola esse conceito, para admitir uma invasão indevida do juiz em questões que não lhe competem. Pode, então, um sistema jurídico prever a politização do poder judiciário e não admitir o ativismo. Sim, pois se uma Constituição admitir que o poder judiciário possa analisar e julgar “questões políticas”, e um juiz dentro desse sistema assim proceder, não estará “abusando” de sua competência funcional, senão realizando aquilo para o qual fora designado pelo sistema jurídico.
De outro modo, quando o sistema jurídico ignora tal caso, ou o proíbe expressamente, há uma limitação jurídica prevista normativamente para a atividade judicial. Assim, caso o juiz “abuse” de sua condição funcional, entrando em questões que não lhe cabem, haverá o chamado “ativismo judicial”.
De qualquer modo, o neoconstitucionalismo em marcha no Brasil está a modificar os padrões normais de nosso sistema jurídico. O incentivo para uma maior judicialização da vida vem proporcionando, cada vez mais, uma “revolução” em nossos quadros institucionais. A judicialização da política está indo além do mero campo político, atingindo outras áreas da vida social. Uma autêntica “judicialização da existência humana” está a firmar-se, em contraposição aos postulados legítimos de nossa história constitucional. Até mesmo matérias como a “origem da vida”, pesquisas com seres humanos- células-tronco- estão a transformar o poder judiciário, particularmente o Supremo Tribunal Federal, em uma Corte da existência social e política do ser humano, podendo determinar, segundo seus juízos de “proporcionalidade” e “razoabilidade”, qual o início e qual o sentido da vida humana, inclusive com base em uma religião secular, nas palavras da Ministra Carmem Lúcia Antunes Rocha, para quem sua religião é o Brasil, e sua Bíblia é a Constituição (9). Claro, tudo isso com base em uma interpretação “própria” do que sejam religião e interpretação razoável!
Ora, com a crescente politização de todas as dimensões da vida social e individual, problemas antigos como, por exemplo, o velho debate acerca dos limites da intervenção do Estado ganham novos contornos, já que, se antes experimentou-se uma luta entre a liberdade e o poder, se está a experimentar, no contexto atual, a judicialização da existência, é dizer, a interferência do poder judiciário em áreas estranhas à sua função clássica.
Estamos a vivenciar um exagero: exagero decorrente da postura “ativa” do Supremo Tribunal Federal em certas áreas que lhes são estranhas. O tema da bioética, pro exemplo, demonstra a invasão de nossos magistrados em temas relativos à biologia ou mesmo à antropologia transcendental, inerentes ao homem como gênero em sua dimensão científico-religiosa. Tal “exagero” não está previsto na Constituição de 1988, nem mesmo seria aceitável imaginá-lo sem o recurso à mutação constitucional. Contudo, a atual conjuntura da magistratura constitucional, no Brasil, parte do pressuposto de que “tudo é constitucional e, assim, cabível dentro do amplexo jurisdicional do Supremo Tribunal”. Eis o ativismo velado: a “crença” de que a Constituição é uma “bíblia”, como afirmou Carmem Lucia, e, assim, correspondente à totalidade existencial da sociedade brasileira.
Se a Constituição é tudo, então não há mais área estranha para a Corte: de política, transformou-se em Soberana, podendo decidir tudo, inclusive sobre a manutenção ou não do Estado de Direito, bem como em momentos de Estado de Exceção, tal como entendera Carl Schmitt, em sua Teologia Política (10). Há um autêntico “totalitarismo jurídico”, na feliz expressão de Miguel Reale (11).
Na visão neoconstitucionalista, subsume-se um estado de total insegurança jurídica, a ser garantida não pela lei e nem mesmo pela Constituição, mas sim pelo seu interprete, por aquele que pode decidir inclusive à margem do próprio texto literal da Constituição “em nome da Constituição mesma”. Eis, como diria Hegel, uma fenomenologia do Espírito, em que a razão da história é definida pelo próprio espírito absoluto da história mesma! Analogamente, o Supremo Tribunal Federal pode inclusive modificar o “espírito” da Constituição, em nome dela mesma, a fim de fazer da vida social uma “vida constitucional”, de acordo com os padrões “constitucionais” definidos pelos membros do Tribunal. Uma ratio decidendi inteiramente voltada para a definição dos padrões morais da existência humana. Nada diferente daquilo que assistimos nos regimes autocráticos clássicos, em que a obrigação de consciência (12) é definida por algum órgão político, seja partidário ou não, responsável por mudar os padrões de comportamento da sociedade. Uma onda “politicamente correta” segundo as definições seculares de uma Corte ativista no sentido político-ideológico da expressão.
Por isso, estamos assistindo uma legítima “escatologia jurídica”, em que o juiz não aparece mais como juiz “no” Estado de Direito, mas como juiz “do” Estado de Direito, colocando-se como Soberano no hiato entre a ordem jurídica e a desordem política.
O juiz, de acordo com a visão neoconstitucionalista, é uma ativista social, não apenas assumindo funções governativas e legislativas do que acredita ser o bem comum, senão também fazendo às vezes de um profeta político, antevendo, por juízo particular, àquilo que é próprio da deliberação política nas democracias, cujos “juízos” advêm da dialética entre opiniões políticas.
Nesse sentido, o juiz ativista faz de sua “opinio juris” uma verdade histórica e jurídica incontestável, sem a intermediação do processo legislativo e governamental. Estabelece-se, aí, a idéia de que a decisão judicial é, em princípio, inabalável.
Portanto, no atual cenário, desenhado segundo falsas concepções de direito constitucional, dentro daquilo que os neoconstitucionalistas entendem por importação de alguns institutos do common law estadunidense, ou por realização da justiça independentemente das condições institucionais do Estado de Direito, está levando a distorção da separação de poderes e a aceitação do ativismo judicial como uma postura “normalizadora” das relações sociais e políticas no Brasil.
A insegurança jurídica está em marcha, não como causa institucional do Direito – o que poderia ocorrer num ambiente de politização da justiça-, mas por ocasião do abuso institucional por que estamos a presenciar, a saber, um ativismo que corrói as bases da certeza judicial e que é movido, no âmago volitivo de nossas elites jurisdicionais, por uma pretensa ideologização judicial. Com a judicialização da existência, verifica-se uma ideologização da vida social, segundo a mentalidade dos agentes da magistratura constitucional, que por suas decisões “obrigam a consciência” de nossas classes jurídicas. Tal fenômeno, que abarca o foro da consciência individual e à transforma em foro coletivo segundo o entendimento dos “agentes constitucionais”, está ocasionando a perda da imparcialidade jurisdicional em nome da “justiça”!
A partidarização e a conseqüente ideologização dos temas sociais, econômicos e políticos, sem a intermediação da deliberação popular ou mesmo das clivagens existentes nas disputas partidárias, algo inerente aos parlamentos, ou mesmo aos governos, está sofrendo não a democratização, senão a redução do espaço de decisões políticas para o fórum das decisões parciais dos magistrados que, sem o vínculo democrático, fazem às vezes de “representantes do povo”. Na verdade, mostram-se representantes de suas idéias, de seus entendimentos particulares sobre as relações entre a política e a moral, em latente destruição do Estado de Direito democrático no Brasil.
Notas:
1 – BARBOSA, Rui. Comentários à Constituição Federal Brasileira. São Paulo: Saraiva, 1933.
2 – Nesse sentido, ver TEJADA, Francisco Elías de. Derecho Político. 1ª ed. Madrid: marcial pons, 2008, p. 17 e seguintes.
3 – STF, ADIn nº 3.510-0, DF, 2008.
4 – STF, Mandado de Segurança nº 26.603-1 – DF, 2007.
5 – STF, Mc-ADIn nº 1.910- DF.
6 – STF, Mandado de Segurança nº 24.831- DF, 2005.
7 – FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do direito constitucional. 1ª ed. São Paulo: saraiva, 2009, p. 301. Interessante notar o que afirma o professor, a respeito da temática em questão: “quanto ao Judiciário, não é mais ele concebido num papel passivo- como ‘boca da lei’- mas se estimula que efetive um controle de legitimidade sobre os atos do Governo e as próprias leis. Isto se manifesta no caráter relativamente ‘aberto’ das Constituições modernas, que somam ‘princípios’ a ‘regras’. Ora, aquelas dão oportunidade a esse controle de legitimidade. Observe-se que o fenômeno apontado fragiliza a segurança jurídica. Com efeito, não mais basta para o indivíduo, ou para o próprio governante, cumprir a lei, mas fica também sujeito a princípios, cuja concentração enseja opções subjetivas por parte do magistrado. Abre-se assim espaço para a judicialização da política em geral e, sobretudo, das políticas públicas em particular. O magistrado nisto se confunde com o administrador, como o juiz constitucional- já se apontou- com o legislador. De tudo isso, decorre o perigo de que a judicialização resvale para uma politização a justiça, com tudo o que de negativo possa daí resultar”.
8 – RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. 1ª ed. São Paulo: saraiva, 2010, p. 129.
9 – A ministra proferiu voto com o seguinte teor: “a Constituição é a minha bíblia, o Brasil, minha única religião”. STF, ADIn nº 3.510, Min. Carmem Lúcia Antunes Rocha.
10 – SCHMITT, Carl. Teologia Política. 1ª ed. Buenos Aires: Struhart e Cia, 2005, p. 23. Em SCHMITT, percebemos a idéia de que a teologia política corresponde a formação de uma filosofia da história cujo sentido é definido pelo Soberano. Há, nesse particular, uma autêntica cristalização das categorias espirituais na análise sobre a fenomenologia do poder, de forma que a posição do Soberano é a representação de uma divinização secular do representante do poder político.
11 – REALE, Miguel. Teoria Geral do Direito e do Estado. 5ª ed. São Paulo: saraiva, 2000, p. 33 e seguintes.
12- A obrigação de consciência foi instituto levantado pelo Rei Jaime I da Inglaterra, no sentido de obrigar os católicos ingleses a jurar fidelidade ao rei, e não ao Papa, obrigando-os à aceitação das determinações do próprio monarca em contraste com o Bispo de Roma. Tudo isso em nome de Deus, segundo o direito divino.
Estamos a vivenciar um exagero: exagero decorrente da postura “ativa” do Supremo Tribunal Federal em certas áreas que lhes são estranhas.

Bigelow na linha de sombra (Luiz Felipe Pondé)


Bigelow na linha de sombra
O filme mostra tudo que existe para você e eu tomarmos vinho sem sermos explodidos
Vejo você escrevendo em seu gabinete. Você mora num bairro de classe média alta de São Paulo.
Pessoa sofisticada, você tem aquele sentimento que os outros são menos inteligentes do que você, sem deixar ninguém perceber porque está treinado a fingir modéstia.
Agora, imagine que você toma vinho, dá aulas e vê o olhar apaixonado das alunas brilhando ou o olhar convertido dos alunos acreditando piamente nos absurdos que você fala.
Mas você fala apenas absurdos simpáticos à sua própria vaidade ou à vaidade de quem ouve você. Quando ouvimos você falar ou lemos o que você escreve, temos certeza de que você é "ético".
A razão para existir esses intelectuais "para um mundo melhor" é fazer o mundo servir à vaidade deles e de quem se acha tão "ético" quanto eles.
A ética é a baixa escolástica contemporânea: todo mundo fala, mas todos sabem que é "papo furado". Dizer-se ético é "self-marketing".
Você viaja a Paris ou a destinos semelhantes e frequenta universidades, galerias de arte, concertos de música erudita (desculpe, sei que a palavra "erudita" trai meu preconceito contra músicas horrorosas "do povo").
Você recebe inclusive financiamentos públicos para algumas dessas viagens e para escrever livros. E, com isso, espalha pelo mundo as ideias delirantes que tem em seu gabinete.
Basicamente, essas ideias se caracterizam por não terem nada a ver com a realidade, mas portam aquele tipo de aparência que encanta: você é a favor de um mundo melhor e condena todo mundo que sabe que você mente.
Projetando a imagem de um coração puro indignado com a injustiça no mundo, às vezes você até esquece que, talvez, esteja processando alguém da família por um quarto e sala na Praia Grande ou em Higienópolis. Ou que trama contra inimigos ideológicos ou institucionais.
Claro, este fato concreto nada tem a ver com suas firmes ideias de que, se o mundo fosse como você acha, todos seriam felizes e não seriam necessários Exércitos, polícia, advogados, e, principalmente, pessoas que discordam de você.
As guerras acabariam, porque, óbvio, elas existem desde sempre apenas porque você ainda não tinha nascido no passado para iluminar a todos com sua "boa nova".
Ou, quem sabe, conseguiria calar a todos que não acreditam em você, aliás, como acontece normalmente com mimados e vaidosos como você.
Sim, vi o filme "A Hora Mais Escura", de Kathryn Bigelow. Brilhante. Há muito que desconfio que o cinema americano depende de cineastas mulheres para sobreviver à pobreza de espírito, pois grande parte dos homens ficou covarde.
O filme mostra tudo que existe para você e eu tomarmos vinho e viajarmos a Paris sem sermos explodidos por aí. Quem acha que o filme louva os "métodos" da CIA é porque não ainda atravessou aquela "linha de sombra" da qual faz referência o escritor Joseph Conrad: a linha que separa a infância da maturidade, ou, diria eu, que separa a vaidade da verdade.
O filme trata de pessoas que vivem na escuridão e com as mãos sujas, enquanto você posa de limpinho.
Compare este filme com o "Munique", de Steven Spielberg. "Munique" narra um suposto plano para matar os terroristas envolvidos na chacina dos atletas israelenses nas Olimpíadas alemãs.
Spielberg é um dos cineastas frouxos dos quais esperamos que Bigelow nos salve.
Em "Munique" o protagonista (líder do grupo) tem uma crise de consciência ao final e abandona "o barco" da espionagem israelense, se refugiando em Nova York. Muito típico de gente como você.
Compare esse final com o final da protagonista de "A Hora Mais Escura" (a ruiva deliciosa Jessica Chastain). Sozinha, "the girl" (como seus colegas da CIA se referem a ela ao longo do filme) tem um avião só pra ela.
O piloto do avião militar diz: "Você deve ser importante para mandarem um avião só pra você! Disseram para levar você para onde você quiser. Onde você quer ir?". Nossa deliciosa heroína não responde. Olha o vazio e derrama duas lágrimas. Um rosto sem vaidade.
Um filme para gente grande que sabe que o vinho nosso de cada dia custa mais do que o preço que pagamos.

Fonte: Folha de São Paulo

quinta-feira, 7 de março de 2013

Lembrança de Bernanos (Gustavo Corção)

À Fernando Carneiro
O primeiro sentimento que me veio, quando Fernando Carneiro me comunicou por telefone a morte de Bernanos, foi uma falta enorme, instantânea, brusca, como se aquele homem que apenas encontrara meia dúzia de vezes, e que se achava perdido para mim, “somewhere in France”, estivesse ligado à minha vida com os vínculos de uma antiga amizade. E estava. Realmente, estava. Sem que eu mesmo o soubesse, Bernanos tinha deixado em mim a marca inapagável de um contato verdadeiramente humano. Um minuto antes da notícia, mal me lembrava de seu vulto, de sua voz, de suas bengalas, de sua cólera pronta e de sua prontíssima ternura. Agora, pondo o fone no gancho, eu sentia crescer em mim, por todos os lados, em torno, atrás, adiante, nas recordações e nas esperanças uma falta enorme.
Desenhava-se, com a nitidez das coisas duras que se partem, os contornos do buraco que acabara de me engolir um amigo. E eu via, ampliados e detalhados, o que deveriam ter sido os nossos poucos encontros – e o que não foram. A sensação crispada de uma frustração assaltava-me lembrando cada conversa nossa, cada gesto, cada tentativa de entendimento perfeito que se havia detido em nossos duros limites. Mesmo agora, poucos dias atrás, eu devia ter escrito uma carta – e não a escrevi. Devia ter enviado umas revistas em que nós o defendíamos e que certamente lhe dariam prazer – e não as enviei. Adiara a carta, protelara a remessa das revistas, calculando, como se costuma fazer entre vivos, que o tempo é ilimitado e a vida inextinguível.
A morte projeta uma luz rasante e crua que tem a esquisita propriedade de exaltar as minudências de um passado perdido, transformando a lembrança aparentemente mais clara e mais lisa numa paisagem lunar com suas montanhas e crateras. Que importância tem agora a carta que interrompi e que não enviarei hoje a um amigo distante que ainda pertence à orgulhosa aristocracia dos vivos? Nenhuma, evidentemente. Que importância tem o gesto de enfado com que hoje afasto a criança que me puxa pelas calças? Nenhuma, evidentemente. E o telefone que não toquei, e a mão que encolhi, e a visita que adiei? A vida é uma planície imensa mal varrida, cheia de quinquilharias inúteis: cacos de gestos, cacos de palavras, por aqui, por ali, dificultando os passos… quantas vezes temos vontade de proceder a uma sistemática eliminação de incômodos, e de por um pouco de ordem nesse chão cheio de escombros?
Chega então a morte, e de repente, no cemitério das lembranças truncadas, corre um frêmito de vida. E as lembranças aleijadas se levantam, e tudo na vida passada nos parece abortivo e irremediável. Quem poderia adivinhar que aquele desenho de criança, representando uma casinha no alto de um morro, com um sol ingenuamente dardejante por trás, seria contemplado com religioso temor, à luz da morte, por entre a névoa das lágrimas? A mãe do menino atropelado desculpa-se de ter posto fora os outros desenhos. O irmão do menino atropelado chora de ter comido na véspera o pedaço maior da sobremesa. E tudo isto, entre nós, os vivos, os orgulhosos vivos, que não sentiram o gosto dos abismos, parece ridículo, insensato, passageiro, porque entre nós parece estar definitivamente estabelecido que essas coisas miúdas são o lixo da vida.
O que no primeiro momento mais se chora no morto não é falta que se adivinha para amanhã ou depois: é a falta atroz que ele já faz no passado. É a decepção, é o sentimento agudo de uma frustração naquilo mesmo que mais solidamente nos parecia adjudicado. A falta que o morto irá fazer dia por dia, no futuro, essa, chegará a seu tempo envolta numa tristeza que, de certo modo, é boa e harmoniosa. Imaginamos facilmente encontros perfeitos, soluções perfeitas, se o morto estivesse ali. Ao contrário, a retrospecção, diante da morte, deixa-nos o gosto amargo dos encontros imperfeitos e das soluções imperfeitas. E o peso do nunca-mais nos oprime intoleravelmente.
Nós não precisamos corar da boa e humilde saudade de nossos mortos; nem precisamos pensar que a Fé e a Esperança nos proíbem as lágrimas da saudade. Mas o que não devemos permitir, de modo algum, é que se instale em nós esse primeiro dardo com que a notícia da morte nos fere.
Eu gostaria de dizer a quem tenha seus mortos, à mãe do menino atropelado, ao irmão que chora hoje pelo olho-grande de ontem, e aos outros, que têm seus mortos, que a tristeza de não ter dado o que devia ter sido dado tem uma solução perfeita.
O insulto que a morte nos causa não pode ser vencido pela Fé e pela Esperança, que são virtudes da peregrinação. A idéia de que o morto esteja no céu, e o consolo de esperar que lá o encontraremos, não basta entretanto para curar a ferida das faltas que ficaram para trás. Precisamos abraçar-nos à virtude que não passa, à Caridade, que é a única que vence a morte e que desconhece a separação entre o passado e o futuro. A solução perfeita desta tremenda sabatina da morte está na transferência das dívidas. Pague-se aos outros o que já não se pode pagar ao que morreu, e vem tudo a dar na mesma, e vem tudo se encontrar na mesma pirâmide de ofertas e donativos, o patrimônio da comunhão dos santos, de cuja distribuição Deus mesmo se encarrega. Valha-nos agora essa angústia passageira causada pelo invisível para que melhor sirvamos o visível, e assim o morto começa logo na eternidade o seu ofício de advogado dos vivos.
A falta que senti de Bernanos, brusca, instantânea, era dessa amarga espécie, feita de retrospecções. Não se tratava do buraco enorme, difícil de preencher. Não me lembrei de Bernanos escritor, de Bernanos grande, de Bernanos genial, senão mais tarde, no dia seguinte, lendo o jornal. Lembrei-me de Bernanos-Bernanos. No momento em que depus o fone no gancho, mal acabando de ouvir a voz perturbada de Carneiro, não me passou pela idéia escrever um artigo que começasse assim: “Calou-se uma grande voz…”. Não me ocorreu escrever artigo nenhum; e efetivamente não o escrevi; mas não me gabo disto, porque seria melhor ter escrito.
O que me surgiu pela frente, naquele instante, foi o decalque, o negativo absoluto da figura de Bernanos, viva, pessoal, única, para me cobrar as oportunidades perdidas. E andei longo tempo, sentindo do morto a saudade que não sentira do vivo, até conseguir alinhavar, para os outros, para o que desse e viesse, essa meia dúzia de páginas de recordações.
Foi numa tarde de domingo, há três ou quatro anos, que recebi pelo telefone o aviso — e até diria o apelo — do amigo Fernando Carneiro:
— Bernanos está aqui. Em casa de Murilo! Venha! Venha!
Larguei o jornal que estava lendo e expliquei à minha mulher a natureza e a procedência do recado, acrescentando que não me esperasse para o jantar. Desci a rua contente. Ia ver Bernanos.
Mas — levado pelo péssimo costume de discutir tudo comigo mesmo, e de analisar e esmiuçar as razões dos menores prazeres, arriscando-me a achar a razão perdendo o prazer, ou levado talvez pelo comodismo domingueiro que me censurava o abandono do jornal e da poltrona — pus-me logo a criticar esse desejo de ver Bernanos, essa fútil curiosidade, como se possa haver o que mereça ser visto num autor de livros. De fato, o que ele tinha de melhor estava-me ao alcance da mão, sem por a gravata e sem tomar o ônibus. Bastava tirar um volume da estante para ter Bernanos, a melhor parte de Bernanos. Bastava abrir Journal d’un Cure de Campagne ou Lettre aux Anglais, para receber, com segurança e conforto, as golfadas de gênio do escritor que ousou dizer o escândalo da verdade, e ousou sondar o escândalo da santidade.
Além disso, desde aquele tempo, embora não tanto como hoje, eu já tinha uma sadia aversão por essas reuniões de pessoas implacavelmente condenadas a só dizerem coisas interessantes. Gostava de visitar Murilo, aquele doente que a gente ia ver para sair confortado. Gostaria de conversar com Bernanos, se pudesse começar pela centésima vez. Mas a idéia daquele encontro arranjado e fugaz, que mal daria tempo para vencer as primeiras dificuldades do vocabulário, fazia crescer em mim o desejo de voltar atrás trocando Bernanos pelo livro e a caminhada pela poltrona.
Felizmente — digo-o hoje, depois de saber que Bernanos morreu — o meu discurso interior durou tanto quanto a caminhada e quando chegava à pessimista conclusão sobre o valor das conversas literárias, estava diante do portão da velha casa em que Murilo morava. E, fosse pela lei do quadrado da distância, fosse pela vitória da simplicidade sobre os retorcidos meandros de minha dialética, o fato é que entrei.
Anoitecia. O casarão, recuado da rua enfronhado entre as árvores de um velho jardim de outrora, parecia esconder-se dos indiscretos, como um fidalgo arruinado que disfarçasse a pobreza. O portão era pesado e rangia. Onde e quando empurrara eu assim, faz muito tempo, um portão pesado que rangia? Indecisamente, oscilando entre as calças curtas e o despontar do bigode, ora moço, ora menino, entrei pelo jardim a dentro, sem saber se era brinquedo ou chicote queimado ou encontro de namorada. Dois patos, graves e pachorrentos como duas tias velhas de muito antigamente, passaram falando qualquer coisa de mim — do menino travesso ou do moço galante — e desapareceram na sombra, continuando a conversa, cuáh-cuáh-cuáh …, num tom mexeriqueiro e confidencial.
Abriu-me a porta uma senhora idosa, alta e magra, que trazia um gato ao colo. Fez-me um sinal misterioso; exatamente o que deveria fazer se nós dois tivéssemos saído, naquele instante, duma estampa de livro de aventuras e crimes. Atravessei uma sala de estar espaçosa e mal iluminada, onde cinco ou seis pessoas de nacionalidades indecifráveis conversavam com cicios, como se conspirassem, entre a fumaça dos cigarros. Ao pé da escada um gato preto, que lambia um pires de leite, olhou-me com maldade e fugiu, pondo ao canto desse quadro, já sombrio, uma sinuosa pincelada negra.
Subi uma escada imensa que me deixou num corredor ainda mais escuro. No fundo, à direita, uma fresta de luz, uma porta, um retrato de Mozart: era o quarto de Murilo.
Nessa noite o quarto estava cheio. Perdi-me na confusão dos boas noites, uns em francês, outros em vernáculo, e foi só depois de me instalar numa cadeira ao canto, perto da porta, e depois de me aliviar da humilhante sensação de recém-chegado, que pude reparar em Bernanos.
Bernanos, no centro do quarto, sentado numa cadeira de braços, estava sendo torturado pelos quatro cavalos da amizade e da admiração. Parecia cansado e angustiado. Enquanto um senhor desconhecido, grego, rumáico ou tcheco, tentava em vão economizar Bernanos, Carneiro, do outro lado, sentado num tamborete baixo, procurava acender o misterioso pavio que fizesse explodir a mina da esperada e generosa indignação.
Bernanos pareceu-me uma montanha. Estava sendo explorado. Estava sendo escalado, percorrido, sondado por mineiros ávidos de novos filões. Ou então era um navio, um enorme e velho navio de muitas viagens, que tivesse encalhado ali em país exótico, com os porões abarrotados de tesouros…
Na rua choviscava. Bernanos, apoiado em suas bengalas, recusava-se a acompanhar Carneiro, queixando-se do cansaço, da angústia, da escada imensa que mal conseguira vencer com suas pernas entropiadas, e que descera depois, a força das bengalas, com o estrépito de um centauro doente. Carneiro bem sabia como ele estava doente, como sofria, e assim mesmo fizera-o falar diante daquelas pessoas. Que dissera ele? Que dissera ele àquelas pessoas? Que esperava Carneiro que ele pudesse dizer àquelas pessoas que lá o tinham ido escutar?
Mas Carneiro, esquivando-se às objurgatórias do artista inquieto de como falara, e do arauto preocupado com o que falara, puxou pelo menino escondido dentro do velho atleta, e levou-o dali, já docilmente, embora ainda a gemer, para um jantar no Recreio, sou les arbres.
Escolhemos porém a mesa na varanda, por causa da chuva, que crescera. Bernanos mal percebeu a falta das árvores. Sentado diante de mim, cotovelos fincados na mesa, capa impermeável aberta no peito, chapéu do mesmo pano, amassado, e posto de qualquer jeito no alto da cabeça, ele me parecia agora um recém-chegado de dolorosa peregrinação que ainda trouxesse no rosto a agonia dos naufrágios e o susto das emboscadas.
Ali estava George Bernanos. Agüentava a cabeça fatigada nas mãos, e os dedos entravam pelas carnes do rosto envelhecido, indo esmagar o olho esquerdo que tomava posições e proporções cômicas, enquanto o outro, livre da brutal trituração, guardava a serenidade e a candura de um olho azul de criança.
Ali estava George Bernanos. O autor de Sous le Soleil de Satan. O francês de verbo fustigante que viera ao Brasil “cuver as honte”. O bom cristão que, pelo menos, não tinha a pesar na consciência o crime de calar a justa indignação e a vergonha de fazer da mediocridade um estandarte e um voto.
Provocado por Carneiro, pôs-se a contar que passara toda a manhã em São Bento, que conversara muito com o Père Paul, que recebera a santa comunhão na capela… e logo, num salto brusco, pôs-se a rugir contra o barroco da igreja, e contra o especial estilo de cristandade inventado pelos portugueses. E enquanto ele falava, parecia-me ver no seu olho direito (porque o esquerdo, cada vez mais macerado, parecia prestes a saltar) o itinerário daquele peregrino. Não sei por que, se pela capa mal abotoada, ou pelo fato de ser um estrangeiro, voltava-me com persistência a idéia de que era um recém-chegado. “Quelqu’un qui vient d’arriver”. E que, depois de comer com pressa, vai continuar, agarrado às suas bengalas, a jornada apenas interrompida. Bernanos, não sei porque, não me deixava pensar em coisas quietas e estáveis: em família, em casa, em jardins. Ao contrário, o panorama que obscuramente corria por trás de suas palavras, eram quilhas erguidas nas ondas, ou eram cavalos fogosos com crinas ao vento, em planícies imensas vistas num relance, da janela de um trem, e longe, lá num horizonte de sonho, as montanhas roxas, como um renque de enormes hortênsias de pedra.
Mas, esse itinerário que eu via na transparência de seu olho, agora perdido num ponto do espaço, acima de nossas cabeças, era o da aventura nascida na infância, e continuada no obstinado menino que aquele hercúleo São Cristóvão carregava pelas águas. Ele diz que esse menino morreu: “Le plus mort des morts est le petit garçon que je fus…” Mas já contava com esse morto supervivo para o instante supremo, esse de que Carneiro me deu notícia há pouco pelo telefone: “… et pourtant, l’heure venue, c’est lui qui reprenda as place a la tête de ma vie, rassemblera mês pauvres années jusqu’a la dernière, et, comme um jeune chef ralliant ses veterans et la troupe em desordre, entrera le premier dans la Maison du Père”.
Bernanos continuava a falar. Ora exaltado, ora enternecido. Sua indignação, aliás, não é outra coisa senão a viril manifestação de sua infantil e inesgotável capacidade de se enternecer. Como poucos, ele sente os contrastes. Sente o claro-escuro do mundo. Adivinha a tragédia de seu tempo. E debate-se entre um mundo de traficantes, e um mundo de maravilhas.
Foi então que Fernando Carneiro, aproveitando um silêncio maior, e usando o quase privilégio seu de improvisar situações absurdas, perguntou:
— Bernanos, você gosta deste meu amigo?
Em condições ordinárias essa pergunta teria uma enorme banalidade ou uma chocante impropriedade. No caso, de absurda, tornou-se simples e natural. Em lugar de responder logo com amabilidade, ou de esquivar-se com um subterfúgio, Bernanos levou a sério a pergunta, e, detendo o discurso que ia recomeçar por cima de nossas cabeças, olhou-me demoradamente, e, por fim, com um sorriso franco e bom, declarou que gostava.
Nesse momento exato nós três, Bernanos, Carneiro e eu, poderíamos ter calças curtas e blusas à marinheira, porque, no fogo de uma amizade nova, tínhamos os corações limpos dos meninos de oito anos.

Fonte: http://www.formacaopolitica.com.br/artigos/lembranca-de-bernanos-gustavo-corcao/