quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Princípios Inegociáveis

"[...] No que se refere à Igreja Católica, o interesse principal  das suas intervenções no campo público é a tutela e a promoção da dignidade da pessoa e, por conseguinte, ela chama conscientemente a uma particular atenção aos princípios que não são negociáveis. Entre eles, hoje emergem os seguintes:  

1) tutela da vida em todas as suas fases, desde o primeiro momento da concepção até à morte natural;

2) reconhecimento e promoção da estrutura natural  da família, como união entre um homem e uma mulher baseada no matrimônio, e a sua defesa das tentativas de a tornar juridicamente equivalente a formas de uniões que, na realidade, a danificam e contribuem para a sua desestabilização, obscurecendo o seu carácter particular e o seu papel  social  insubstituível ; 

3) tutela do direito dos pais de educar os próprios filhos.

Estes princípios não são verdades de fé mesmo se recebem ulterior luz e confirmação da fé.   Eles estão inscritos na natureza humana e, portanto, são comuns a toda a humanidade. A ação da Igreja de os promover não assume, por conseguinte, um carácter confessional , mas dirige-se a todas as pessoas, prescindindo da sua filiação religiosa. Ao contrário, esta ação é tanto mais necessária quanto mais estes princípios forem negados ou mal compreendidos porque isto constitui uma ofensa contra a verdade da pessoa humana, uma grave ferida infligida à própria justiça [...]".

(Papa Bento XVI, Trecho do Discurso aos participantes no congresso promovido pelo Partido Popular Europeu em 30 de março de 2006)

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Boitempo


(Carlos Drummond)

Entardece na roça
de modo diferente.
A sombra vem nos cascos,
no mugido da vaca
separada da cria.
O gado é que anoitece
e na luz que a vidraça
da casa fazendeira
derrama no curral
surge multiplicada
sua estátua de sal,
escultura da noite.
Os chifres delimitam
o sono privativo
de cada rês e tecem
de curva em curva a ilha
do sono universal.
No gado é que dormimos
e nele que acordamos.
Amanhece na roça
de modo diferente.
A luz chega no leite,
morno esguicho das tetas
e o dia é um pasto azul
que o gado reconquista.


quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Amanhece na Metrópole

A britadeira quebra a pedra do chão e quebra também uma casa. Mais um arranha-céu explode na cidade, em andares de homens vãos, enquanto explode um coração, esmagado. A árvore seca empobrece a praça de cimento e o mato se espreme na fresta, entre a calçada e o desleixo do pedreiro. É a máquina e o motor, a fábrica e o computador, o aço, o metal e o vidro, brotando na cabeça do homem-cidadão. Gritam o carro e o cargo, o gozo e a profissão, a conta bancária, na sirene do homem de plástico. E a massa produz seu pão, o pão sem gosto dos iguais. Enquanto escorre, em silêncio, no asfalto da avenida, um resto, caído não se sabe de onde. Migalhas recolhidas pelo sol que nasce, não se sabe onde. Estranho e não computável, o resto sobrevivente à alegria cinza. O resto de todas as manhãs. O eu.   

sábado, 11 de agosto de 2012

De Filho para Pai


O pai ficou do lado de fora da grade que cercava a pista de atletismo. A arquibancada estava cheia para as olimpíadas da escola. Sentia um frio na barriga, era muito cedo, o sol acabava de nascer. As baterias da corrida dos cem metros foram se sucedendo, até que chegou minha hora. Olhei, ainda, mais uma vez o pai e me pus na posição da partida. Fixei meus olhos na faixa distante e me concentrei. Quando ouvi o sinal, disparei. Alguns segundos depois, mal podendo respirar, cruzei a linha de chegada. Em segundo lugar. O pai vibrava, com papel e caneta anotando os tempos. Ganhei um abraço de parabéns e o nono lugar na classificação geral. Mas me senti um verdadeiro campeão.

Naquele dia de manhã eu ia sozinho para a competição. O pai ia me levar, porque a mãe tinha compromisso. A gente sentou para tomar café da manhã e ele percebeu que eu não estava bem, não queria comer. Eu estava inseguro. “Filhão, é só uma competição da escola, vai ser legal, você vai ver!”. Mas não adiantou. O medo persistia e eu estava aflito. Então, o pai me entendeu e decidiu ir comigo. Abraçou-me forte: “Vai, filho, enfrenta aquela pista e dá o seu melhor!”. Sob o olhar dele, zelando de longe, fiz minha parte. Enfrentei confiante. A pista e a vida.

Como enfrentei o Conhaque, meu primeiro cavalo. Um dia resolveu dar um salto agressivo e acabou me jogando pra cima, direto pro chão. Que susto!, eu pequenininho. O pai chegou do meu lado, perguntou se eu estava machucado, logo viu que não. Enquanto eu chorava, ele me pegou no colo, foi me acalmando, então me disse: “E ai? Pronto pra montar de novo?”. Comecei a dizer que nunca mais, mas quando percebi, ele já tinha me posto em cima do cavalo. Depois deu um tapa na traseira dele e fomos: o Conhaque galopando e eu esquecido do medo.

Teve também outra competição na escola, desta vez a prova de ciclismo, uma das mais esperadas. Eu estava ansioso, com a bicicleta caprichada, pronto pra ganhar. Foi um desastre. Fiquei entre os últimos. Aquilo me massacrou, uma vergonha. Desci da bicicleta, as pernas tremiam, mal parava em pé. O pai estava lá, não disse nada. Disfarçou, mudou de assunto, mas viu que eu tinha ficado muito triste. Era setembro.

No final do ano, alguns meses depois, ele entrou em casa me contando que tinha comprado uma bicicleta. Não pra mim, mas pra ele. Achei engraçada a idéia, meu pai andando de bicicleta... Na semana seguinte ela estava em casa e, antes mesmo do Natal, a gente fez o primeiro passeio juntos. Fomos por estradas de terra, lugares distantes, onde eu nunca poderia ir sozinho. Aos poucos ele convidou uns amigos dele e eu convidei os meus. Formamos um grande grupo. Toda semana a gente rodava com as bicicletas pela cidade. Depois do passeio parávamos num posto de gasolina pra comer paçoca com coca-cola, a melhor parte. Foi assim o ano inteiro.

Em setembro do ano seguinte, novas olimpíadas, nova prova de ciclismo. No dia da prova, de manhã, meu pai viu que acordei contente e sossegou. Estava ansioso, mas me sentia pronto para uma bela revanche. Fui seguro, estava bem treinado. O pai, de longe, ficou assistindo. Quarto lugar! As pernas nem tremeram... Fiquei orgulhoso, o pai comemorou. Foi melhor que subir no pódio. A medalha que ganhei do meu pai.

Depois disso tudo, é claro, cresci. E com a mesma coragem que aprendi naqueles dias, fiz algumas descobertas importantes. Descobri, por exemplo, que meu pai também tinha medo. E que o pai dele também tinha e também o pai do pai e todos os pais do mundo tinham medo. E todo mundo tinha medo. Então, tive medo. E o medo me fez descobrir o segredo do meu pai, do pai dele e de todos os pais do mundo. Porque um pai só pode ser pai porque também teve um pai. E um pai, remete a outro pai, e a outro pai, e a outro. E assim, descobri que por trás das grades do mundo, onde correm todos os pais na pista da vida, existe um grande pai, um pai único, que com o seu olhar distante e presente, guia, protege e encoraja todos os outros pais. E foi pelo olhar do meu pai, meu paizinho, também medroso como eu, que cheguei ao olhar daquele Pai, que era pai do meu pai e de todos os outros pais e mães do mundo. E não tive mais medo.      

Na verdade, eu já O havia descoberto, muito tempo antes. Quem O apresentou foi meu próprio pai. A gente tinha ido à Igreja e comecei a fazer bagunça com os primos, correndo pelos corredores. Antes de o padre iniciar, o pai olhou feio para mim, eu entendi logo e corri pra perto dele. Ele, então, me disse uma coisa que eu nunca mais esqueci. Primeiro me perguntou o que eu acharia se alguma visita entrasse em casa e fizesse bagunça, subindo no sofá, tirando as coisas do lugar, mexendo nas minhas coisas sem pedir. Reprovei com a cabeça veemente, concordando que aquilo seria muito, muito feio e sem educação. Em seguida me disse: “Pois, então, filho, a Igreja é a casa de Deus e nós viemos visitá-Lo”. Fiquei mudo.

 Era a primeira vez que me dava conta de que Deus era uma pessoa, alguém que se podia visitar e a quem se devia respeito. Desde então, esforçava-me para me manter em silêncio e obediente toda vez que entrava na Sua casa. Depois, aos poucos, fui descobrindo que Ele também tinha uma morada em mim. Foi uma felicidade saber que Deus, o criador de tudo, estava sempre comigo. Assim, nasceu, em segredo, um grande espaço, um lugar especial onde, sozinho, passei a conviver cotidianamente com Ele, sem precisar ir à lugar algum. Então, aquele esforço de obediência e silêncio tornou-se muito mais exigente, uma batalha constante, pois percebi que era ainda maior a desordem que eu fazia ali, dentro de mim. Passei a conviver com esta presença especial, mas demorei algum tempo para juntar as coisas e concluir que Este que eu visitava na igreja e que, depois, descobri vivendo comigo, era Aquele Pai que um dia vi dentro dos olhos do meu pai, e que era o pai de todos os pais e mães do mundo. E tudo foi diferente.

 Hoje em dia, é o mesmo menino inquieto e bagunceiro, às vezes rebelde, às vezes inseguro, que todos os dias tenho de apascentar e encorajar. Porque, diariamente, encontro diante de mim a mesma pista de atletismo, o mesmo cavalo, a mesma bicicleta. De manhã fecho os olhos e sinto o abraço forte que me prepara antes da luta. Recebo mais que incentivo e força, recebo confiança e a certeza de que a guerra é justa e de que, afinal, vencerei. Como um dia venci. E será sob esta rocha firme que também serei um pai para meu filho, capaz de lhe transmitir o mesmo olhar, o mesmo abraço confiante, que também o transformará em pai. Herança do pai que a graça do nosso Pai me concedeu, que deixarei para meu filho, para que ele também possa transmitir adiante quando tornar-se um pai.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Literatura, subjetivismo e covardia

(Rodrigo Gurgel)

Vivemos uma época de simplismos. Ou melhor, um tempo no qual o simplismo e o raciocínio esquemático pretendem substituir os caminhos do espírito que, demonstrando coragem e maturidade, olha para si mesmo, em seguida, prolongadamente, para o real, volta-se mais uma vez para o seu próprio eu – e só então expressa suas ideias, seus sentimentos. 

Esta é uma época na qual a imprudência e a precipitação brilham a cada textinho de quatro ou seis parágrafos, escrito com a arrogância de ser não só uma reflexão, mas de apontar caminhos, soluções, regras, quando não verdades.

Um tempo em que os textos fedem a rascunho, a esboço. A boa menina faz seu resuminho escolar com capricho, usa canetinhas coloridas para as flores das margens, numera as linhas – e fecha a página do caderno com delicada iluminura. Mas o texto continua um resumo. O esquematismo refulge a cada linha.

Assim, a coluninha de jornal se transforma em ensaio, o conto estendido em romance, as trinta linhas repetindo lições de Derrida em crítica literária.

Ora, quando o centro da consciência já não é a verdade, mas apenas o gosto efêmero, então o subjetivismo comanda. É o império dos croniqueiros, coelhinhos de olhar róseo, tiques nervosos e pelagem branca, apressados e superficiais. Tempo triste, desolador – não só para a literatura –, no qual os homens, sem perceber, se transformam em covardes, pois só têm uma única resposta aos seus desejos pessoais e ao senso comum: – Sim.

Fonte:

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Generosidade e Calculismo

O que faz Cristo chorar?
No primeiro dia da Semana Santa – que comemoramos no Domingo de Ramos -, Jesus, antes de entrar em Jerusalém, deteve-se na ladeira do monte das Oliveiras e dali contemplou o espetáculo da Cidade Santa brilhando ao sol do amanhecer. Uma golfada de dor invadiu-lhe a alma, e seus discípulos viram cintilar lágrimas sobre a sua face: Contemplou Jerusalém – diz São Lucas – e chorou sobre ela (Lc 19, 41).
Detenhamo-nos sobre essas lágrimas, pois elas nos podem dizer muitas coisas e mostrar-nos uma grande fonte de tristeza escondida no nosso coração.
O Evangelho dá-nos todos os elementos para que possamos saber qual foi a sua causa e a sua significação.
No monte das Oliveiras, olhando para a cidade, Cristo iniciou naquele “primeiro dia” – naquele domingo – um pranto que completaria na terça-feira no Templo. Revelou em ambos os momentos a sua dor, pronunciando palavras explícitas. No domingo, ao mesmo tempo que prorrompia em lágrimas, exclamou: Oh! Se também tu, ao menos neste dia que te é dado, conhecesses o que te pode trazer a paz! Mas não, isto está oculto aos teus olhos (Lc 19, 42). Na terça-feira, acrescentou: Jerusalém, Jerusalém [...], quantas vezes eu quis reunir os teus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das asas, e tu não quiseste! Eis que a tua casa ficará vazia (Mt 23, 37-38).
Guardemos bem, do conjunto dessas palavras, três expressões: -Se conhecesses o que te pode trazer a paz; -quantas vezes eu quis [...] e tu não quiseste; e -a tua casa ficará vazia; porque nelas se revela a razão dessas lágrimas de Cristo. Por elas compreendemos que Cristo estalou de dor em Jerusalém porque previa antecipadamente outra dor, outra tristeza enorme para a qual muitos homens e mulheres se encaminhavam e se encaminham também hoje cegamente: …isso está oculto aos teus olhos.
Jesus sentia doerem-lhe na alma todos aqueles que, iludindo-se a si mesmos, julgam que só poderão alcançar a felicidade defendendo-se de Deus, isto é, esquivando-se à carga amável dos mandamentos de Deus e da sua graça; todos aqueles que se enganam imaginando que é possível realizarem-se à margem de Deus e contrariando os seus planos. É bem provável que só venham a abrir os olhos quando se lhes tornar evidente, com tristeza amarga, que “a sua casa ficou vazia”.
Não há dúvida de que havia muitos com este coração mesquinho em Jerusalém. As páginas do Evangelho apresentam um retrato especialmente vivo dos escribas e fariseus hipócritas (cfr. Mt 23, 13), que se iam opondo num crescendo cada vez mais virulento à pessoa e à doutrina de Cristo, porque chamava à conversão, à autêntica pureza de vida. Tinham começado com insinuações difamatórias – mostrando-se escandalizados porque Jesus comia com os pecadores (cfr. Mt 8, 11) -, prosseguiram discutindo-lhe a doutrina e armando-lhe ciladas com perguntas insidiosas (cfr. Mc 2, 7; Lc 20, 21-22), e terminaram declarando insuportável o seu ensinamento (Jo 6, 60) e proclamando a necessidade de eliminá-lo sumariamente pelo bem do povo (Jo 11, 50).
Que acontecia, na realidade? Que a amorosa doutrina de Jesus, com as suas divinas exigências, lhes perturbava o egoísmo aureolado de religiosidade, a ambição encoberta por aparências de zelo pelas coisas de Deus.
A esses “honestos” avarentos, cobiçosos, orgulhosos e sensuais, Cristo desmontava-lhes o disfarce de honradez com a sua mensagem de sinceridade, pureza, humildade, desprendimento e doação, que era para eles uma bofetada. Dura é essa doutrina – acabarão por bradar -, quem pode suportá-la? (Jo 6, 60). E os principais de Jerusalém, irritados com o povo mais simples, que se deixara cativar pelos milagres e pela pregação de Jesus, tentarão desmoralizá-lo, dizendo: Há acaso alguém entre as autoridades ou dos fariseus que acredite nele? Esse povoléu que não conhece a Lei é amaldiçoado… (Jo 7, 48).

Defender-se de Deus
À primeira vista, parece incrível, mas é uma grande verdade que muitos homens – agora como então – procuram defender-se do amor de Deus como de um inimigo. Talvez aceitem teoricamente que só no amor puro, que vem de Deus e leva a Deus, se encontram as promessas da plena felicidade. Mas não “acreditam” nisso. Na vida real, procuram a felicidade apenas no prazer egoísta e na auto-exaltação. É uma incoerência, mas é uma realidade. Enganam-se de forma mais ou menos consciente e, por receio de se complicarem com a grandeza dos ideais de Cristo, encerram-se numa cegueira voluntária. Assim, querendo proteger-se contra os sacrifícios que o Ideal cristão comporta, atiram-se à estrada do egoísmo – que parece bem mais garantida – e perdem o caminho do amor, o único capaz de orientar os seus passos para a alegria e para a paz (cfr. Lc 1, 79). Muito bem disse deles Cristo: O que te pode trazer a paz [...] está oculto aos teus olhos (Lc 19, 42).
É uma pena que esses pobres homens e mulheres fiquem eletrizados pelo seu próprio “eu”, do qual Deus acaba por ser um “rival”. O norte magnético, que neles polariza tudo, é constituído pelo que alguém resumia nos “três esses”: sossego, satisfação, sucesso. Aí estaria o único segredo da felicidade, a chave da alegria! Nesse clima interior de egoísmo glorificado, quando se lhes cruza Cristo pelo caminho da vida, quando deles se aproxima e lhes fala de ideais divinos, de sacrifício alegre, de humildade amorosa, de serviço aos outros…, sentem um arrepio percorrer-lhes a espinha. Apavorados com a perspectiva de perder a vida fácil, bradam: Não! E é por isso que Cristo chora: Não quiseste, não quiseste abrir-te confiadamente Àquele que te podia trazer a paz. Como conseqüência desse fechamento, virão inevitavelmente os frutos dolorosos do egoísmo, que tarde ou cedo acabam por aparecer e ressecam a alma: Eis que a tua casa ficará vazia.

Portas previamente fechadas
Meditemos um pouco mais sobre as possíveis formas desse “não querer” e sobre as suas conseqüências.
Num grau extremo, a recusa consiste em fechar deliberadamente os olhos da alma antes de que Cristo tenha chegado sequer perto da porta. É o caso das pessoas sem formação religiosa alguma, mas que de antemão “não querem saber”. Entre elas e Deus levantaram – sem dar a Deus a menor oportunidade – um muro, fabricado com as pedras da ignorância e da má vontade, unidas pelo cimento do preconceito. Os pilares que seguram esse muro são os sete pecados em que o egoísmo se subdivide: a soberba, a avareza, a luxúria, a ira, a gula, a inveja e a preguiça.
Não se pode passar por alto o fato, por demais comprovado, de que todos aqueles que repelem a religião ou dela se querem livrar – com as dez mil razões que a sem-razão inventa -, na realidade se estão deixando encarcerar pelo muro defensivo que eles próprios levantaram entre a sua alma e Deus: o muro dos sete pecados capitais, que acabamos de mencionar. Nesses vícios, que são o ácido corrosivo do amor – e o manancial turvo de todos os pecados dos homens -, colocam absurdamente a esperança de uma vida mais plena e livre, quando são esses vícios os que os escravizam e terminam por asfixiá-los.
Depois, quando o erro fica patente, não adianta exclamar com ingenuidade hipócrita: “Eu não sabia” até que extremo estava errado. Este é o recurso fácil dos que, defendendo embora ciosamente o egoísmo, querem desculpar-se quando começam a perceber – pelo vazio e pela tristeza que os invade – que se enganaram. Dizem: “Eu não sabia”, e Cristo retruca-lhes: Tu não quiseste. Naturalmente, têm que calar-se: é certo que não sabem, mas é mais certo ainda que a sua ignorância culpável procede de que antes “não quiseram” saber nem aceitar. Não é que não tivessem oportunidades – Quantas vezes eu quis, repete-lhes o Senhor -; a graça de Deus não lhes faltou. Umas vezes, chegou-lhes por meio de uma intranqüilidade de consciência que os remordia; outras, pela oportunidade de ler algum texto de formação cristã; outras ainda, pela ajuda rejeitada de um amigo ou uma amiga sincera… Mas preferiram não saber, para que Deus e as suas exigências – as divinas complicações! – não os perturbassem.

O “sim” que esconde um “não”
Essas almas de “recusas prévias” enquadram-se nos que chamávamos “casos extremos”. Vejamos agora um segundo tipo de recusa, talvez mais próximo de nós.
Trata-se dos que aceitam Cristo, até mesmo com entusiasmo, e lhe dizem um sim que parece pronunciado de todo o coração. Acontece, porém, que no bojo desse sim viaja, agarrado a ele com unhas e dentes, um não. Isso faz com que o “sim” se torne condicionado e parcial e que, na hora da verdade, acabe por transformar-se num “não” melancólico, talvez mais vazio e triste que a recusa peremptória dos “casos extremos”.
Houve uma vez em que Cristo escutou um desses “sim” entusiásticos, pronunciado por um coração jovem. Mas, quando foi penetrar no âmago desse assentimento, viu emergir dele um “não” desolador.
O Evangelho narra o caso com luxo de detalhes. Cristo tinha saído de casa – onde acabava de abençoar um enxame de crianças – e pusera-se a caminho. Poucos passos havia dado, quando um jovem veio correndo e, de forma espalhafatosa, lhe caiu de joelhos na frente, obrigando-o a parar. Os olhos do rapaz ardiam com a chama do fervor, o coração batia-lhe forte: Bom Mestre – disse a Jesus -, que devo fazer para alcançar a vida eterna?
Desde logo percebemos uma coisa: esse jovem era completamente diferente dos que considerávamos há um instante, dos que não querem saber. Ele “queria saber” mesmo.
Jesus dá à pergunta formulada a resposta mais simples: – Queres entrar na vida eterna? Cumpre os mandamentos. Mas o jovem queria saber mais, queria ter noções tão claras que não admitissem dúvidas, e por isso ampliou a pergunta: Quais? Quais mandamentos? – Não matarás – lembra-lhe o Senhor -, não cometerás adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho, honra teu pai e tua mãe, amarás o teu próximo como a ti mesmo. O diálogo vai-se tornando empolgante, porque o moço, cada vez mais eufórico, responde depressa: Tudo isso tenho observado desde a minha infância. Que me falta ainda?
Poderá alguém duvidar de que esse rapaz não fosse dos que procuram ardentemente os caminhos de Deus, dos que querem conhecê-los sinceramente, dos que querem saber a fundo? Havia nas suas palavras e no seu gesto tal expressão de generosidade, que Cristo ficou comovido: Jesus fixou nele o olhar, amou-o e disse-lhe… Assim fala o Evangelho, deixando entrever as grandes expectativas que o Senhor depositou naquela alma que podia dar muito, pois até então tinha caminhado pelos rumos de Deus. Podia dar tudo. Por isso, Cristo disse-lhe: Uma só coisa te falta; vai e vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois vem e segue-me.
Naquele instante, Deus estava passando muito perto do coração do jovem. Um miligrama mais de generosidade, e ele entraria a fazer parte da turma jubilosa dos Apóstolos de Cristo. Mas a história, que começara tão bem, dá a partir desse momento uma reviravolta sombria: Ouvindo essas palavras, o jovem foi-se embora muito triste, porque possuía muitos bens (cfr. Mt 19, 16-22 e Mc 10, 17-22)
E assim, sumindo-se na nuvem cinzenta da tristeza, a figura desse rapaz promissor desaparece das páginas do Evangelho e apaga-se, sem nunca mais voltar a ser mencionado na história de Jesus, que poderia ter sido também a sua feliz aventura. Foi-se embora triste, profundamente entristecido. Não percebemos que também neste caso Jesus viu aquilo que lhe fez brotar lágrimas perto de Jerusalém: e não quiseste? O jovem inicialmente quis…, sim, quis quase tudo aquele moço de ar generoso, mas houve um ponto em que o “sim” se lhe derreteu num “não”. Foi quando o chamado do amor tocou no seu dinheiro. Ah, não, isso não! E bastou um “isso não” para deixar-lhe a “casa vazia”.

Razões profundas das nossas tristezas
É bem possível que muitos cristãos bons, bem dispostos e até idealistas, possam reconhecer-se, como num espelho, na cena do jovem rico; e que – depois de se verem nela refletidos – fiquem em melhores condições de descobrir por que andam tristes, por que se sentem frustrados, por que, apesar dos seus ideais e esforços espirituais, se encontram encalhados e não só não avançam, como parecem recuar com o correr dos anos. A resposta a esses porquês é simples: Cristo disse-lhes também: Ainda te falta uma coisa; mas eles, lá no fundo de si mesmos, retrucaram: “Isso não!”
Contava São Josemaría Escrivá que conhecera um menino a quem a mãe ensinara, desde pequeno, a rezar de manhã e à noite. Ao acordar, recitava juntamente com ela o ato de consagração a Nossa Senhora: “Ó Senhora minha, ó minha Mãe, eu me ofereço todo a Vós, e em prova da minha devoção para convosco, vos consagro neste dia meus olhos, meus ouvidos, minha boca…” Não terminava, porém, a enumeração, porque – como quem quer prevenir equívocos – intercalava com veemência: “menos o meu coelhinho”. Tudo estava ele disposto a oferecer a Nossa Senhora…, menos o seu coelhinho. Mons. Escrivá, ao narrar esse episódio, dizia aos que tínhamos a fortuna de ouvi-lo que pensássemos também se não teríamos o nosso “coelhinho”.
Será que não temos mesmo? Seja qual for a nossa idade – ainda que já estejamos descendo a última ladeira da vida -, o “coelhinho” é todo e qualquer “menos isto” que nós opomos a Deus, ou seja, toda e qualquer reserva ou condição intocável.
Para o jovem rico, o problema residia nas riquezas. Para nós, onde está? Qual é a nossa ressalva, o nosso “menos isto”?
Uns colocam o rótulo de intocável no seu comodismo burguês: vida cristã, sim, mas sem falar muito em sacrifícios nem renúncias. Outros desconversam quando Deus, de algum modo, lhes pede que vivam bem a castidade: parecem-se com o governador romano Félix, que gostava de ouvir São Paulo, prisioneiro em Cesaréia, até o dia em que o Apóstolo começou a falar-lhe sobre a castidade e o juízo futuro. Félix, então, todo atemorizado, disse-lhe: Por ora podes retirar-te; mandar-te-ei chamar em outra ocasião (At 24, 25). Há outros que têm o seu “menos isto” no filho que Deus lhes pede – mais um filho! – e que eles não querem aceitar; outros fecham os ouvidos à sua própria consciência, quando lhes diz que a honestidade nos negócios está acima da ganância; outros ainda querem ser bons cristãos, mas sem combater os defeitos que mais os dominam e lhes estão deteriorando o convívio familiar, prejudicando o trabalho ou congelando o crescimento espiritual: tudo menos renunciar à prepotência, ao comodismo, à inconstância, à crítica, ao excesso nos “aperitivos”, à desordem nos horários, etc.
E, dentro deste triste campo das recusas, é amargamente penoso – deploravelmente melancólico – o caso dos que chegam à beira de uma entrega total, para a qual Deus os escolheu desde toda a eternidade; dos que enxergam uma vocação divina que com a sua claridade os deslumbra e, na hora decisiva, se encolhem por medo e se “retiram tristes”, escondendo-se sob o manto cinzento do egoísmo, como o jovem rico.
Seja qual for o caso, existe em todos um denominador comum: o “não querer”, que fez chorar Cristo em Jerusalém, e que acaba por fazer chorar muito amargamente os que o pronunciam. Afinal, Cristo chorou com as lágrimas do amor, e esses choram com as lágrimas da recusa: destruíram, com efeito, o plano que Deus preparara para eles.

(Adaptação de um trecho do livro de F. Faus: Lágrimas de Cristo, lágrimas dos homens)