terça-feira, 30 de junho de 2009

Saudação aos Calouros! (Ao Goffredo... Que ele nos inspire, de onde estiver...)

Prezados amigos, estudantes da Academia, Calouros, sejam bem-vindos ! As Arcadas da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco os acolhem amorosamente ! Recebam nosso quente abraço !
E queremos aplaudi-los com efusão sincera. Parabéns ! Queremos aplaudi-los vivamente pela decisão que tomaram. Desejamos felicitá-los pela excelente deliberação de fazer o curso universitário numa Faculdade de Direito.
Diante da imensidão de opções curriculares, que as Universidades oferecem aos candidatos de cada ano, vocês optaram pelo estudo do Direito.
Ah, meus amigos, permitam que eu lhes diga sinceramente, nesta intimidade familiar, que vocês optaram pelo estudo da Ciência mais preciosa da vida.
A Ciência mais preciosa ?
Sim ! A mais preciosa, sem dúvida. Não estou exagerando. Bem fácil é comprová-lo.
Vocês sabem, é claro, que a nossa vida _ a nossa vida comum, de todos os dias _ sempre se desenrola dentro de agrupamentos humanos ; dentro de sociedades diversas. De fato, para os seres humanos, viver é conviver. Desde seu nascimento, o ser humano convive com seus semelhantes. Começa convivendo com mãe, pai, irmãos. Depois, na escola, convive com seus colegas. Depois, convive com domésticos, com condôminos, com vizinhos, com sócios, com rivais e adversários, com amigos e inimigos. Vocês sabem que cada um de nós convive com toda essa multidão de pessoas de que a vida social é feita.
Notem, prezados amigos, notem que a convivência não é uma criação da nossa vontade. Não ! Ela é _ vocês bem sabem _ uma imposição de nossa natureza. Já o velho e eterno Aristóteles dizia : “O ser humano é um animal político”. É um animal feito para viver na “pólis”; um animal feito para viver “na cidade”, ou seja, na sociedade.
Ora, para viver bem, para bem conviver, é necessário bem se relacionar com o próximo. E isto significa que o relacionamento há de se realizar em consonância com normas, com imperativos que as contingências da vida social vão suscitando e impondo. Significa que a convivência exige disciplina. Sem disciplina para o comportamento das pessoas, a vida em sociedade seria uma permanente guerrilha, e se destruiria a si própria. Tornar-se-ía impossível.
Pois bem, tal disciplina _ que eu denomino DISCIPLINA DA CONVIVÊNCIA HUMANA _ é, precisamente, o objeto cardial do Curso na Faculdade.
Vejam o que realmente acontece numa Faculdade de Direito.
Durante os cinco anos do Curso, matérias muitas e diversas são explicadas e estudadas. Mas vocês vão ver que todas elas se prendem umas às outras. Embora cada matéria tenha seu objeto específico, todas elas se relacionam pelos seus primeiros princípios, pelos seus fundamentos, pelos últimos fins. Elas são ramos múltiplos de uma só árvore : da árvore da Ciência do Direito. Em verdade, podemos até dizer que, durante todo o multifário curso da Faculdade de Direito, o de que se estará sempre cuidando é da Disciplina da Convivência Humana.
Extraordinário objeto, este, para um Curso Universitário ! Extraordinário, em verdade, porque é um curso sobre as condições essenciais da vida em sociedade.
Não preciso acrescentar mais nada para deixar evidenciada a importância dos estudos que vocês deliberaram empreender. A Faculdade é uma Escola de Vida.
Quando o estudante termina seu Curso, recebe um diploma : o Diploma de Bacharel em Direito. Ele se torna Bacharel da Disciplina da Convivência. E se promove a cientista da convivência humana.
O que acabo de dizer merece, creio, um pensamento especial.
Aquele Diploma de Bacharel é, antes de mais nada, o título imprescindível para o exercício das nossas profissões na área do Direito _ para o ofício fascinante dos Advogados, dos Juízes, dos Promotores Públicos, dos Delegados de Polícia. Mas não é só isto. De fato, aquele Diploma é uma chave, uma valiosa chave, que abre muitas portas. Vocês vão logo perceber que o conhecimento científico da Disciplina Jurídica da Convivência, de que aquele Diploma constitui fiança e garantia, é também luz para um melhor desempenho de outras profissões, em múltiplas áreas de trabalho.
Por exemplo, é luz para o comerciante que, sendo Bacharel em Direito, saberá elaborar melhor seus contratos de compra e venda ; para o agricultor, que saberá melhor fixar as cláusulas de suas parcerias, e melhor negociar suas safras ; para o jornalista, que não cometerá os costumeiros erros de Direito, ao comentar fatos acontecidos e decisões do Judiciário ; para o político e para o economista, que terão uma visão correta das distinções entre a legalidade e a legitimidade.
Utilíssima chave, aquela, que abre tantas portas do mundo ! Reparem que a ciência jurídica da convivência é luz até para eventos comuns do dia-a-dia. É luz para o relacionamento de marido e mulher, do companheiro e companheira. É luz para entendimentos dos pais com seus filhos, dos filhos com seus pais, dos adotados com seus adotantes. Para o trato com empregados, com patrões. Para a vinculação com sócios, com parceiros, com condôminos, com vizinhos. É luz até para o comportamento com inimigos. É luz inspiradora da lealdade, da moderação e da paciência. É luz para as decisões cardiais, para as grandes e pequenas decisões, diante das embaraçosas alternativas. É luz para a escolha do caminho nas encruzilhadas da existência.
O diplomado em Curso de Direito possui o conhecimento científico do que pode fazer e do que não deve fazer, nos encontros e desencontros, nos acertos e desacertos, de que é constituída a trama da comunicação humana.
E, finalmente, o diplomado em Curso de Direito adquiriu a visão científica do Direito-Justiça. E vocês vão logo verificar que a Justiça _ a Justiça humana . . . _ é a operação de reconhecer e de declarar, em cada caso, o que É o SEU.
Em verdade, a Disciplina da Convivência Humana é a ordenação do respeito pelo próximo. Ordenação do respeito mútuo : do respeito pelos direitos dos outros ; do respeito dos outros pelos direitos próprios, de cada um.
Vocês estão vendo que, em verdade, a Disciplina da Convivência é, um conjunto de princípios morais ; é a Ética para o comportamento na “polis”, na sociedade. É a Ética Social, a Ética POLItica, em sentido amplo. A violação dessa Ética sempre perturba a convivência humana. Infringe a ordem, e necessita repressão.
Não é de estranhar que, em épocas corruptas, de “mensalões”, “sanguessugas” et caetera, os setores normais da população vivam a clamar por “Ética na Política”.
Ah, meus amigos Calouros ! Permitam que eu, aqui, lhes dirija um veemente apelo. Não se deixem jamais seduzir pelas tentações da corrupção ! O advogado corrupto é uma triste figura _ eu me refiro diretamente aos advogados porque eu sou advogado. Mas fiquem certos de que todo bacharel corrupto _ seja advogado, juiz, promotor público, delegado de polícia, seja o que for _ todo bacharel corrupto abre chaga no seio da sociedade. Ele é traidor de seu diploma, traidor da categoria de profissionais a que pertence. É traidor da ordem instituída na sociedade _ dessa ordem de que ele é esteio, intérprete, muitas vezes construtor. O bacharel corrupto é traidor da Disciplina da Convivência, traidor da ordem social de que ele precisa ser sentinela e guardião.
Aliás, toda corrupção constitui atentado ao respeito pelo próximo.
Tenho a certeza de que muitos de vocês são pensadores. E eu sei que os pensadores descobrirão, certamente, na já referida necessidade de respeito de uns pelos outros, um sentimento anterior, um sentimento liminar, que é uma aspiração, um anseio do espírito, almejo de paz, de entendimento entre os seres da comunidade ; um impulso do coração, elã espontâneo de solidariedade, de amor pelos outros, de amor pelos que compartilham a sorte da mesma comunidade. Um sentimento de amor ! Tal é, em verdade, a primordial razão-de-ser do respeito pelo próximo.
Sim, os estudantes pensadores descobrirão, na gênese do respeito pelo próximo _ vejam só, queridos Calouros ! _ aquele mesmo sentimento que, um dia, foi manifestado no sábio e doce aconselhamento de Jesus : “Ama teu próximo como a ti mesmo”.
Em suma, os estudantes pensadores _ os “filósofos” de cada turma perceberão, sem demora, que este amor, esta adesão espiritual à Disciplina da Convivência Humana e à Ética, é a condição da harmonia entre os seres humanos. Aliás, todos vocês logo verificarão que tal condição constitui, em verdade, o primeiro fundamento da Filosofia Jurídica das Arcadas.
Condição da HARMONIA ! Prestem bem atenção, senhores Calouros ! O Curso nesta Faculdade é um Curso de Harmonia. Logo, é um Curso de Beleza. E isto explica o fato de ser nosso Pateo, nosso mágico Pateo das Arcadas, o jardim de pedra onde sempre floresceu a Poesia.

* * *

Queridos Calouros! Recebam nosso abraço fraterno ! Desejamos a todos saúde e paz ! Formulamos votos para que vocês logo sejam, no Brasil, fiéis guardiões da Ética, sentinelas atentas da Disciplina da Convivência Humana.
Não se desliguem jamais do sonho das Arcadas ! Mantenham, por toda a vida, em seus corações, a encantada lembrança da “VELHA E SEMPRE NOVA ACADEMIA DO LARGO DE SÃO FRANCISCO”.
Após receberem seus Diplomas de Bacharéis, inscrevam-se imediatamente na Associação dos Antigos Alunos da Faculdade. Isto assegurará, na memória de cada um de vocês, a presença pertinaz das Arcadas _ presença que permanecerá no tempo em que vocês já não mais habitarem as Arcadas, e delas estarão afastados por força da vida de cada um.
Lembrem-se, caros amigos, que, em 11 de Agosto de 2007, a Academia comemora 180 anos de existência. A partir de agora, vocês passam a participar da longa e linda Crônica de nossa Escola. Deixem-se atrair pelo seu secreto encanto. Desvendem seus mistérios ! Saibam o que significa amar a Faculdade.
Calouros da eterna Academia ! Estudem com afinco a fascinante Ciência do Direito _ e a iluminem com a Filosofia das Arcadas ! Amem-se uns aos outros. Sejam felizes !

GOFFREDO TELLES JUNIOR

Sua informalidade me incentivou...

João Augusto, rapaz, puta prazer o meu!!!

Tenho 41 anos e acho que você está em ultra vantagem, em relação a mim, na sua idade (26?). Sim, bem-formado, centrado na importância de definir seus PRÓPRIOS rumos, você está infinitamente melhor que a média. Em momento algum de sua conversa, você falou em dinheiro ou provar-isso-ou-aquilo-pra-sei-lá-quem... Você falou de VOCAÇÃO, missão..., fazer-com-tesão. Assim, acho que sua FILOSOFIA não é a de muitos de seus colegas de faculdade, mas é a MELHOR!!!

E, falando de filosofia, acho que vale a dica: Auguste Comte, em algum momento, dividiu a vida em 03 aspectos - conforto, trabalho e amor. François Gény, da Escola da Livre Pesquisa Científica, veio e disse que as relações humanas se distribuem por entre o individual (conforto), o público (trabalho) e o privado (nossos amores). Então, aproveite essa oportunidade para pensar (que lhe é um privilégio; quase ninguém se pode dar a esse luxo) e organize esses 03 setores de sua vida. Você vai ver que, na emoção desse processo, vai surgir uma agenda de todos os passos que tem que dar para definir o seu modo pessoal de realizar sua verdadeira vocação.

Penso eu que sua praia é na área jurídica, sim , mas não contenciosa (magistratura ou advocacia pública e privada); é escrevendo muito e estimulando os outros a lerem, mas não na literatura vulgar; e, sim, usando o conhecimeno jurídico para sensibilizar pessoas, formando opinião - um Mário de Andrade, com a técnica de Ruy Barbosa e a crítica de Nelson Rodrigues. Existe um palco próprio para isso e, parece, ele espera por você.

Vale pensar!

Bem, na boa, deixo meu celular e meu msn, pra torcarmos idéias. Não tenha cerimônias; curto dar palpites felizes!!

Grande abraço!!!

Professor

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Quem topa ir embora pra Pasárgada ponha o dedo aqui...

Carta desesperada a um professor

Caro professor,

procurei-o no último sábado e tivemos um rápido bate-papo "about life". Aproveito para deixar meu contato, assim talvez possamos continuar a conversa em algum momento. A verdade é que estou bem desnorteado (ou melhor, procurando um norte) desde que me formei e foi isto que tentei expor em poucas palavras. No fundo, ainda não me encontrei dentro do Direito e o que gosto, acima de tudo, é de ler e escrever (em especial, tudo o que esteja ligado à literatura). Desde o começo do ano, tenho direcionado minhas forças para a magistratura do trabalho, pretendendo estar pronto para encarar os concursos em 2010, mas ainda não estou certo disto, pois ainda que goste da área trabalhista e tenha certa experiência nela, não estou certo de que me realizaria como juiz e acredito muito pouco no Judiciário. O que fazer? Por onde começar? No fim das contas, só quero ser feliz e também ajudar os outros a serem, espero que não seja inocência de minha parte... Desculpe toda a liberdade, mas seu informalismo me incentivou, valeu!

Até,

João Augusto.

Escutatória (Rubem Alves)


Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória...

Todo mundo quer aprender a falar... Ninguém quer aprender a ouvir.

Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil.

Diz Alberto Caeiro que... Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores.

É preciso também não ter filosofia nenhuma.

Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas.

Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia.

Parafraseio o Alberto Caeiro:

Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito.

É preciso também que haja silêncio dentro da alma.

Daí a dificuldade:

A gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor...

Sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer.

Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração...

E precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor.

Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade.

No fundo, somos os mais bonitos...

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64.

Contou-me de sua experiência com os índios: Reunidos os participantes, ninguém fala.

Há um longo, longo silêncio.

Vejam a semelhança...

Os pianistas, por exemplo, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio...

Abrindo vazios de silêncio... Expulsando todas as idéias estranhas.

Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala.

Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio.

Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos...

Pensamentos que ele julgava essenciais.

São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que o outro falou.

Se eu falar logo a seguir... São duas as possibilidades.

Primeira: Fiquei em silêncio só por delicadeza.

Na verdade, não ouvi o que você falou.

Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala.

Falo como se você não tivesse falado.

Segunda: Ouvi o que você falou. Mas, isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo.

É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.

Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada.

O longo silêncio quer dizer: Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou.

E, assim vai a reunião.

Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos.

E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia.

Eu comecei a ouvir.

Fernando Pessoa conhecia a experiência...

E, se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras... No lugar onde não há palavras.

A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa.

No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos.

Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia...

Que de tão linda nos faz chorar.

Para mim, Deus é isto: A beleza que se ouve no silêncio.

Daí a importância de saber ouvir os outros: A beleza mora lá também.

Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Meus Caros,

Em primeiro lugar: até o fim do dia de hoje ainda farei meus comentários aos cantos que andam piando pelas bandas do nosso terreno...

Por hora, gostaria de propor um exercício aos caminhantes. Não sei se vão acatar a idéia. Pensei que podíamos cada um escrever alguma coisa, qualquer coisa (prosa, poesia, piada, música, mini-contos pós modernos, instalação cibernética, enfim, ao gosto do freguês, afinal tudo vale, certo?), motivados por um mesmo ponto de partida. Fizemos este exercício no Ateliê e achei interessante (não sei se João Augusto vai gostar da idéia, já que não costumava simpatizar com estes exercícios, que para ele não serviam muito de inspiração...)

Não sei se conhecem o quadro que exponho abaixo. Ele pertence ao acervo do Louvre. É de Georges de La Tour, por volta de 1640-1645, chama-se "A Madalena com a lâmpada a óleo".

E então? Têm algo a dizer?


sexta-feira, 19 de junho de 2009

Riminha, por Joana Junqueira

Frio, não guento mais não...
Vou morar em Ribeirão!

Pós-modernidade

_ Descobriram tudo, já está resolvido.
_ Tudo? Mas eu tenho tantas dúvidas. Sei lá, por exemplo, a morte...
_ A morte não existe. Um grupo de cientistas chineses já comprovou, fizeram um experimento com voluntários. A morte é uma ilusão.
_ Pelo amor de Deus!
_ Nem o amor, nem Deus existem também, meu rapaz. Deu no noticiário que o amor é apenas o bombardeio de hormônios – tudo muito compreensível. A idéia do amor somente vingou em razão da ideologia dos poderosos, que a utilizaram para impregnar a sua moral nos outros. Foram os mesmos que inventaram este tal Deus. Deus não existe, o que existe é a história.
_ Você tem certeza disso?
_ Já foi aprovado no comitê representativo da classe contra-opressão. Amanhã mesmo será feita uma passeata. Os funcionários públicos, os estudantes, os sindicalistas, os movimentos sociais, todos aderiram. Vamos queimar uma igreja e exigir do governo que edite uma lei para proibir a crença.
_ Mas isto não é crime?
_ Rapaz, mas como você é ignorante. O crime é uma construção da elite. Os verdadeiros vilões são estes padres, que estão a mando dos capitalistas e dos americanos. Todos os religiosos são no fundo bandidos, querendo iludir o povo. Fizeram uma votação e já foi aprovado pelo comitê da liberdade que todos os que acreditam em um ser superior devem ser presos. Aliás, você não assiste à televisão? Todos os padres são pedófilos.
_ Eu pensei que você apoiava isto. Não foi você que organizou o movimento em prol dos direitos sexuais das crianças?
_ É claro, trata-se da aplicação do princípio da dignidade humana. Escrevi um livro sobre isto. Convenci um amigo meu a exigir no concurso, e ganhei rios de dinheiro. É por isto que sou presidente do partido.
_ Eu não sabia que você tinha estudado?
_ Imagina! Estudar? Eu assisti a uma palestra no congresso nacional anti-conservador e nem precisei ler livro. É muito chato e não dá tempo, eu tenho muito trabalho. Além disso, me contaram que aquela coisa de filosofia já foi superada, todo o besteirol sobre o “justo”, a “verdade”...
_ Até a “verdade”?
_ A verdade não existe. O que existe é a comunicação. Saiu um panfleto dizendo que foi aprovado por unanimidade pelo grupo revolucionário do ensino para todos. É uma nova técnica pedagógica que já está sendo aplicada nas escolas.
_ Mas assim fica difícil compreender a realidade.
_ Olha, pensei que fosse mais inteligente. Isso de “realidade” é uma mentira fabricada pelos exploradores do proletariado. É uma tentativa de destruir o movimento libertário.
_ Mas, se a realidade não existe, então, eu...
_ Você ainda não entendeu? Você não existe.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Um certo homem das leis

Vive de dizer a todos
-Isto pode
aquilo deve
isso necessita!

Não se passa de um tolo
talvez só um prepotente
um ator
um pobre moralista.

Não traz certezas
ao contrário
com sua frieza
faz ao outro: -Otário!

Interrogação e vileza no rosto
e a fraqueza d’outro alimenta.
A sensação por dentro
“paciência”...

sábado, 13 de junho de 2009

Considerações sobre a “Pescada” de Miguel Távola

O simples verso de Miguel Távola, nomeado de produto da pescaria, não deve ser lido de forma que simplórias referências às coisas mais corriqueiras da vida levem a transcender os pesados fardos vitais. A primeira leitura certamente é esta, até por certo induzimento da ordem com que a construção do texto está feita – o primeiro verso, que guia todos os demais, é inequívoco: “Viver fosse feito”. Mas o autor quer mais, pretende brindar-nos com lições das mesmas que foram dadas por Pessoa, em suas dores diante das loucuras produzidas pela modernidade, ou alertar-nos como Eça, em “As cidades e as serras”, para os verdadeiros benefícios trazidos pela vida nos grandes centros urbanos. Seja de modo deliberado ou não, a verdade é que é indeclinável sua tendência a seguir os modernos autores lusitanos, especialmente àqueles que choram por um passado ainda preso em seu íntimo, sempre procurando resgatar, para não perder, suas mais profundas raízes. Quem conhece os textos de Miguel sabe da inegável influência que a literatura portuguesa produziu em seu espírito e da nostalgia que sente por uma vida de menos avareza (“E um dedo de prosa.”; “E mais dois dedinhos de prosa.”; “E o resto do dia só prosear.”). O que quer o autor, senão o diálogo com qualquer leitor que seja capaz de se desprender da mesquinhez dos falsos ideais insuflados pela vida moderna? Espero de coração que nosso poeta encontre interlocutores sedentos por travar essa necessária boa prosa.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Pescada

Viver fosse feito
sentar na beirada dum lago
esperar, esperar
a fisgada do bicho
prestes à lutar.
E um dedo de prosa.
Então correr linha, suar,
tirar d’água,
limpar barrigada,
descamar.
E mais dois dedinhos de prosa.
Por fim pôr a mesa,
O assado saído do forno,
Comer, comer,
E o resto do dia só prosear.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Mário Ferreira dos Santos e o nosso futuro, por Olavo de Carvalho

Quando a obra de um único autor é mais rica e poderosa que a cultura inteira do seu país, das duas uma: ou o país consente em aprender com ele ou recusa o presente dos céus e inflige a si próprio o merecido castigo pelo pecado da soberba, condenando-se ao definhamento intelectual e a todo o cortejo de misérias morais que necessariamente o acompanham.
Mário Ferreira ocupa no Brasil uma posição similar à de Giambattista Vico na cultura napolitana do século XVIII ou de Gottfried von Leibniz na Alemanha da mesma época: um gênio universal perdido num ambiente provinciano incapaz não só de compreendê-lo, mas de enxergá-lo. Leibniz ainda teve o recurso de escrever em francês e latim, abrindo assim algum diálogo com interlocutores estrangeiros. Mário está mais próximo de Vico no seu isolamento absoluto, que faz dele uma espécie de monstro. Quem, num ambiente intelectual prisioneiro do imediatismo mais mesquinho e do materialismo mais deprimente – materialismo compreendido nem mesmo como postura filosófica, mas como vício de só crer no que tem impacto corporal –, poderia suspeitar que, num escritório modesto da Vila Olimpia, na verdade uma passagem repleta de livros entre a cozinha e a sala de visitas, um desconhecido discutia em pé de igualdade com os grandes filósofos de todas as épocas, demolia com meticulosidade cruel as escolas de pensamento mais em moda e sobre seus escombros erigia um novo padrão de inteligibilidade universal?
Os problemas que Mário enfrentou foram os mais altos e complexos da filosofia, mas, por isso mesmo, estão tão acima das cogitações banais da nossa intelectualidade, que esta não poderia defrontar-se com ele sem passar por uma metanóia, uma conversão do espírito, a descoberta de uma dimensão ignorada e infinita. Foi talvez a premonição inconsciente do terror e do espanto – do thambos aristotélico – que a impeliu a fugir dessa experiência, buscando abrigo nas suas miudezas usuais e definhando pouco a pouco, até chegar à nulidade completa; decerto o maior fenômeno de auto-aniquilação intelectual já transcorrido em tempo tão breve em qualquer época ou país. A desproporção entre o nosso filósofo e os seus contemporâneos – muito superiores, no entanto, à atual geração – mede-se por um episódio transcorrido num centro anarquista, em data que agora me escapa, quando se defrontaram, num debate, Mário e o então mais eminente intelectual oficial do Partido Comunista Brasileiro, Caio Prado Júnior. Caio falou primeiro, respondendo desde o ponto de vista marxista à questão proposta como Leitmotiv do debate. Quando ele terminou, Mário se ergueu e disse mais ou menos o seguinte:
– Lamento informar, mas o ponto de vista marxista sobre os tópicos escolhidos não é o que você expôs. Vou portanto refazer a sua conferência antes de fazer a minha.
E assim fez. Muito apreciado no grupo anarquista, não por ser integralmente um anarquista ele próprio, mas por defender as idéias econômicas de Pierre-Joseph Proudhon, Mário jamais foi perdoado pelos comunistas por esse vexame imposto a uma vaca sagrada do Partidão. O fato pode ter contribuído em algo para o muro de silêncio que cercou a obra do filósofo desde a sua morte. O Partido Comunista sempre se arrogou a autoridade de tirar de circulação os autores que o incomodavam, usando para isso a rede de seus agentes colocados em altos postos na mídia, no mundo editorial e no sistema de ensino. A lista dos condenados ao ostracismo é grande e notável. Mas, no caso de Mário, não creio que tenha sido esse o fator decisivo. O Brasil preferiu ignorar o filósofo simplesmente porque não sabia do que ele estava falando. Essa confissão coletiva de inépcia tem, decerto, o atenuante de que as obras do filósofo, publicadas por ele mesmo e vendidas de porta em porta com um sucesso que contrastava pateticamente com a ausência completa de menções a respeito na mídia cultural, vinham impressas com tantos erros de omissões, frases truncadas e erros gerais de revisão, que sua leitura se tornava um verdadeiro suplício até para os estudiosos mais interessados – o que, decerto, explica mas não justifica. A desproporção evidenciada naquele episódio torna-se ainda mais eloqüente porque o marxismo era o centro dominante ou único dos interesses intelectuais de Caio Prado Júnior, ao passo que, no horizonte infinitamente mais vasto dos campos de estudo de Mário Ferreira, era apenas um detalhe ao qual ele não poderia ter dedicado senão alguns meses de atenção: nesses meses, aprendera mais do que o especialista que dedicara ao assunto uma vida inteira.
A mente de Mário Ferreira era tão formidavelmente organizada que para ele era a coisa mais fácil localizar imediatamente no conjunto da ordem intelectual qualquer conhecimento novo que lhe chegasse desde área estranha e desconhecida. Numa outra conferência, interrogado por um mineralogista de profissão que desejava saber como aplicar ao seu campo especializado as técnicas lógicas que Mário desenvolvera, o filósofo respondeu que nada sabia de mineralogia mas que, por dedução desde os fundamentos gerais da ciência, os princípios da mineralogia só poderiam ser tais e quais – e enunciou quatorze. O profissional reconheceu que, desses, só conhecia oito.
A biografia do filósofo é repleta dessas demonstrações de força, que assustavam a platéia, mas que para ele não significavam nada. Quem ouve as gravações das suas aulas, registradas já na voz cambaleante do homem afetado pela grave doença cardíaca que haveria de matá-lo aos 65 anos, não pode deixar de reparar na modéstia tocante com que o maior sábio já havido em terras lusófonas se dirigia, com educação e paciência mais que paternais, mesmo às platéias mais despreparadas e toscas. Nessas gravações, pouco se nota dos hiatos e incongruências gramaticais próprios da expressão oral, quase inevitáveis num país onde a distância entre a fala e a escrita se amplia dia após dia. As frases vêm completas, acabadas, numa seqüência hierárquica admirável, pronunciadas em recto tono, como num ditado.
Quando me refiro à organização mental, não estou falando só de uma habilidade pessoal do filósofo, mas da marca mais característica de sua obra escrita. Se, num primeiro momento, essa obra dá a impressão de um caos inabarcável, de um desastre editorial completo, o exame mais demorado acaba revelando nela, como demonstrei na introdução à Sabedoria das Leis Eternas[1], um plano de excepcional clareza e integridade, realizado quase sem falhas ao longo dos 52 volumes da sua construção monumental, a Enciclopédia das Ciências Filosóficas.
Além dos maus cuidados editoriais – um pecado que o próprio autor reconhecia e que explicava, com justeza, pela falta de tempo –, outro fator que torna difícil ao leitor perceber a ordem por trás do caos aparente provém de uma causa biográfica. A obra escrita de Mário reflete três etapas distintas no seu desenvolvimento intelectual, das quais a primeira não deixa prever em nada as duas subseqüentes, e a terceira, comparada à segunda, é um salto tão formidável na escala dos graus de abstração que aí parecemos nos defrontar já não com um filósofo em luta com suas incertezas e sim com um profeta-legislador a enunciar leis reveladas ante as quais a capacidade humana de discutir tem de ceder à autoridade da evidência universal.
A biografia interior de Mário Ferreira é realmente um mistério, tão grandes foram os dois milagres intelectuais que a moldaram. O primeiro transformou um mero ensaísta e divulgador cultural em filósofo na acepção mais técnica e rigorosa do termo, um dominador completo das questões debatidas ao longo de dois milênios, especialmente nos campos da lógica e da dialética. O segundo fez dele o único – repito, o único – filósofo moderno que suporta uma comparação direta com Platão e Aristóteles. Este segundo milagre anuncia-se ao longo de toda a segunda fase da obra, numa seqüência de enigmas e tensões que exigiam, de certo modo, explodir numa tempestade de evidências e, escapando ao jogo dialético, convidar a inteligência a uma atitude de êxtase contemplativo. Mas o primeiro milagre, sobrevindo ao filósofo no seu quadragésimo-terceiro ano de idade, não tem nada, absolutamente nada, que o deixe prever na obra publicada até então. A família do filósofo foi testemunha do inesperado. Mário fazia uma conferência, no tom meio literário, meio filosófico dos seus escritos usuais, quando de repente pediu desculpas ao auditório e se retirou, alegando que “tivera uma idéia” e precisava anotá-la urgentemente. A idéia era nada mais, nada menos que as teses numeradas destinadas a constituir o núcleo da Filosofia Concreta, por sua vez coroamento dos dez volumes iniciais da Enciclopédia, que viriam a ser escritos uns ao mesmo tempo, outros em seguida, mas que ali já estavam embutidos de algum modo. A Filosofia Concreta é construída geometricamente como uma seqüência de afirmações auto-evidentes e de conclusões exaustivamente fundadas nelas – uma ambiciosa e bem sucedida tentativa de descrever a estrutura geral da realidade tal como tem de ser concebida necessariamente para que as afirmações da ciência façam sentido.
Mário denomina a sua filosofia “positiva”, mas não no sentido comteano. Positividade (do verbo “pôr”) significa aí apenas “afirmação”. O objetivo da filosofia positiva de Mário Ferreira é buscar aquilo que legitimamente se pode afirmar sobre o conjunto da realidade à luz do que foi investigado pelos filósofos ao longo de vinte e quatro séculos. Por baixo das diferenças entre escolas e correntes de pensamento, Mário discerne uma infinidade de pontos de convergência onde todos estiveram de acordo, mesmo sem declará-lo, e ao mesmo tempo vai construindo e sintetizando os métodos de demonstração necessários a fundamentá-los sob todos os ângulos concebíveis.
Daí que a filosofia positiva seja também “concreta”. Um conhecimento concreto, enfatiza ele, é um conhecimento circular, que conexiona tudo quanto pertence ao objeto estudado, desde a sua definição geral até os fatores que determinam a sua entrada e saída da existência, a sua inserção em totalidades maiores, o seu posto na ordem dos conhecimentos, etc. Por isso é que à seqüência de demonstrações geométricas se articula um conjunto de investigações dialéticas, de modo que aquilo que foi obtido na esfera da alta abstração seja reencontrado no âmbito da experiência mais singular e imediata. A subida e descida entre os dois planos opera-se por meio da decadialética, que enfoca o seu objeto sob dez aspectos:
1. Campo sujeito-objeto. Todo e qualquer ser, seja físico, espiritual, existente, inexistente, hipotético, individual, universal, etc. é simultaneamente objeto e sujeito, o que é o mesmo que dizer – em termos que não são os usados pelo autor – receptor e emissor de informações. Se tomarmos o objeto mais alto e universal – Deus –, Ele é evidentemente sujeito, e só sujeito, ontologicamente: gerando todos os processos, não é objeto de nenhum. No entanto, para nós, é objeto dos nossos pensamentos. Deus, que ontologicamente é puro sujeito, pode ser objeto do ponto de vista cognitivo. No outro extremo, um objeto inerte, como uma pedra, parece ser puro objeto, sem nada de sujeito. No entanto, é óbvio que ela está em algum lugar e emite aos objetos circundantes alguma informação sobre a sua presença, por exemplo, o peso com que ela repousa sobre outra pedra. Com uma imensa gradação de diferenciações, cada ente pode ser precisamente descrito nas suas respectivas funções de sujeito e objeto. Conhecer um ente é, em primeiro lugar, saber a diferenciação e a articulação dessas funções. Alguns exercícios para o leitor se aquecer antes de entrar no estudo da obra de Mário Ferreira: (1) Diferencie os aspectos e ocasiões em que um fantasma é sujeito e objeto. (2) E uma idéia abstrata, quando é sujeito, quando é objeto? (3) E um personagem de ficção, como Dom Quixote?
2. Campo da atualidade e virtualidade. Dado um ente qualquer, pode-se distinguir entre o que ele é efetivamente num certo momento e aquilo em que ele pode (ou não) se transformar no instante seguinte. Alguns entes abstratos, como por exemplo a liberdade ou a justiça, podem se transformar nos seus contrários. Mas um gato não pode se transformar num antigato.
3. Distinção entre as virtualidades (possibilidades reais) e as possibilidades não-reais, ou meramente hipotéticas. Toda possibilidade, uma vez logicamente enunciada, pode ser concebida como real ou irreal. Só podemos obter essa gradação pelo conhecimento dialético que temos das potências do objeto.
4. Intensidade e extensidade. Mário toma esses termos emprestados do físico alemão Wilhelm Ostwald (1853-1932), separando aquilo que só pode variar em diferença de estados, como por exemplo o sentimento de temor ou a plenitude de significados de uma palavra, e aquilo que se pode medir por meio de unidades homogêneas, como por exemplo linhas e volumes.
5. Intensidade e extensidade nas atualizações. Quando os entes passam por mudanças, elas podem ser tanto de natureza intensiva quanto extensiva. A descrição precisa das mudanças exige a articulação dos dois pontos de vista.
6. Campo das oposições no sujeito: razão e intuição. O estudo de qualquer ente sob os cinco primeiros aspectos não pode ser feito só com base no que se sabe deles, mas tem de levar em conta a modalidade do seu conhecimento, especialmente a distinção entre os elementos racionais e intuitivos que entram em jogo.
7. Campo das oposições da razão: conhecimento e desconhecimento. Se a razão fornece o conhecimento do geral e a intuição o do particular, em ambos os casos há uma seleção: conhecer é também desconhecer. Todos os dualismos da razão – concreto-abstrato, objetividade-subjetividade, finito-infinito, etc. – procedem da articulação entre conhecer e desconhecer. Não se conhece um objeto enquanto não se sabe o que tem de ser desconhecido para que ele se torne conhecido.
8. Campo das atualizações e virtualizações racionais. A razão opera sobre o trabalho da intuição, atualizando ou virtualizando, isto é, trazendo para o primeiro plano ou relegando para um plano de fundo os vários aspectos do objeto percebido. Toda análise crítica de conceitos abstratos supõe uma clara consciência do que aí foi atualizado e virtualizado.
9. Campo das oposições da intuição. A mesma separação do atual e do virtual já acontece no nível da intuição, que é espontaneamente seletiva. Se, por exemplo, olhamos esta revista como uma singularidade, fazemos abstração dos demais exemplares da mesma tiragem. Tal como a razão, a intuição conhece e desconhece.
10. Campo do variante e do invariante. Não há fato absolutamente novo nem absolutamente idêntico a seus antecessores. Distinguir os vários graus de novidade e repetição é o décimo e último procedimento da decadialética.
Mário complementa o método com a pentadialética, uma distinção de cinco planos diferentes nos quais um ente ou fato pode ser examinado: como unidade, como parte de um todo do qual é elemento, como capítulo de uma série, como peça de um sistema (ou estrutura de tensões) e como parte do universo.
Nos dez primeiros volumes da Enciclopédia, Mário aplica esses métodos à resolução de vários problemas filosóficos divididos segundo a distinção tradicional entre as disciplinas que compõem a filosofia – lógica, ontologia, teoria do conhecimento, etc. –, compondo assim a armadura geral com que, na segunda série, se aprofundará no estudo pormenorizado de determinados temas singulares.
Aconteceu que, na elaboração dessa segunda série, ele se deteve mais demoradamente no estudo dos números em Platão e Pitágoras, o que acabou por determinar o upgrade espetacular que marca a segunda metanóia do filósofo e os dez volumes finais da Enciclopédia, tal como expliquei na introdução à Sabedoria das Leis Eternas. O livro Pitágoras e o Tema do Número, um dos mais importantes do autor, dá testemunho da mutação. O que chamou a atenção de Mário foi que, na tradição pitagórico-platônica, os números não eram encarados como meras quantidades, no sentido em que são usados nas medições, mas sim como formas, isto é, articulações lógicas de relações possíveis. O que Pitágoras queria dizer com sua famosa afirmação de que “tudo são números” não é que todas as qualidades diferenciadoras podiam se reduzir a quantidades, mas que as quantidades mesmas eram por assim dizer qualitativas: cada uma delas expressava um certo tipo de articulação de tensões cujo conjunto formava um objeto. Mas, se de fato é assim, conclui Mário, a seqüência dos números inteiros não é apenas uma contagem, mas uma série ordenada de categorias lógicas. Contar é, mesmo inconscientemente, galgar os degraus de uma compreensão progressiva da estrutura do real. Vejamos, só para exemplificar, o que acontece no trânsito do número um ao número cinco. Todo e qualquer objeto é necessariamente uma unidade. Ens et unum convertuntur, “o ser e a unidade são a mesma coisa”, dirá Duns Scot. Ao mesmo tempo, porém, esse objeto conterá em si alguma dualidade essencial. Mesmo a unidade simples, ou Deus, não escapa ao dualismo gnoseológico do conhecido e do desconhecido, já que aquilo que Ele conhece de si mesmo é desconhecido por nós. Ao mesmo tempo, os dois aspectos da dualidade têm de estar ligados entre si, o que exige a presença de um terceiro elemento, a relação. Mas a relação, ao articular os dois aspectos anteriores, estabelece entre eles uma proporção, ou quaternidade. A quaternidade, considerada como forma diferenciada do ente cuja unidade abstrata captamos no princípio, é por sua vez uma quinta forma. E assim por diante.
A mera contagem exprime, sinteticamente, o conjunto das determinações internas e externas que compõem qualquer objeto material ou espiritual, atual ou possível, real ou irreal. Os números são portanto “leis” que expressam a estrutura da realidade. O próprio Mário confessa não saber se essa sua versão muito pessoal do pitagorismo coincide materialmente com a filosofia do Pitágoras histórico. Seja uma descoberta ou uma redescoberta, a filosofia de Mário descerra diante dos nossos olhos, de maneira diferenciada e meticulosamente acabada, um edifício doutrinal inteiro que, em Pitágoras – e mesmo em Platão – estava apenas embutido de maneira compacta e obscura. Ao mesmo tempo, em A Sabedoria dos Princípios e demais volumes finais da Enciclopédia, ele dá ao seu próprio projeto filosófico um alcance incomparavelmente maior do que se poderia prever até mesmo pela magistral Filosofia Concreta. A esta altura, aquilo que começara como conjunto de regras metodológicas se transmuta num sistema completo de metafísica, a mathesis megiste ou “ensinamento supremo”, ultrapassando de muito a ambição originária da Enciclopédia e elevando a obra de Mário Ferreira ao estatuto de uma das mais altas realizações do gênio filosófico de todos os tempos.
Não tenho a menor dúvida de que, quando passar a atual fase de degradação intelectual e moral do país e for possível pensar numa reconstrução, essa obra, mais que qualquer outra, deve tornar-se o alicerce de uma nova cultura brasileira. A obra, em si, não precisa disso: ela sobreviverá muito bem quando a mera recordação da existência de algo chamado “Brasil” tiver desaparecido. O que está em jogo não é o futuro de Mário Ferreira dos Santos: é o futuro de um país que a ele não deu nada, nem mesmo um reconhecimento da boca para fora, mas ao qual ele pode dar uma nova vida no espírito.

Notas:
[1] São Paulo, É-Realizações, 2001.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

O Valor do Amanhã.

Por falar em ontem, hoje e amanhã...

Assistam ao vídeo abaixo no site do Sempre um Papo, da TV Câmara, e digam se é bom mesmo ou se eu é que tô louco. O que já ouviram falar sobre o autor?

www.sempreumpapo.com.br/audiovideo/resultado.php?letra=e

1 - Eduardo Giannetti fala sobre o livro O Valor do Amanhã 22/04/2006

À parte isto...

À parte tudo o que já disse, estou muito contente de ter o amigo de volta... Respiro mais aliviado... Sinto o chão mais firme... Acredito de novo... Vislumbro mais próxima a silhueta da nossa Escola... Será miragem? Não, não acredito. É a direção certa. Vamos! Vamos juntos!

Pedro Xavier: Curupira? Andarilho? Ou miragem?

Ééééé, Sr. Pedro Xavier... Quem te viu, quem te vê! Tardou, tardou, mas não falhou! E veio chegando e trazendo desde curupira e seu enigma de pé-de-trás, até samba, moda de viola, estilo de repente e tudo mais. Chegou em bom estilo! E veio tão empolgado, tão afoito (energia acumulada...), que nem bem foi reconhecido já veio exigindo a explicação, o foguete, a comemoração. Calma, lá, é o que lhe digo. Calma, lá! Preste atenção no que disse o caro João Augusto... Porque é dessa opinião e desse sentimento que eu mesmo compartilho. E digo mais. Da primeira vez que vi a vitrola sozinha, cantando o canto tão alegre do Cartola, eu mesmo me senti um pouco só. Porque meu sentimento não era bem esta alegria toda. Eu estava era muito desconfiado. E ainda estou, se quer mesmo que lhe diga. Porque a tardança foi demais. E os chamados muitos... E o tempo foi criando na gente uma dura carcaça (a contragosto, é bom ressaltar). E não sei se convém, mas eu a custo confesso, que este meu silêncio (não digo pelos outros), esta minha ausência, foi de certo modo planejado. Mas não por pura sede de vingança (uma vingancinha sem maldade ninguém pode evitar...), que não é para isso que inventamos esse nosso blog. Mas para que todos nós tivéssemos a mesma vivência, na pele, no íntimo, facilitando assim a compreensão. Neste intervalo, é verdade, calhou de o acesso ao cibernético ficar prejudicado por uns dias... No fim das contas tudo serviu ao mesmo propósito. Assim explico.
Por isso, chego sem comemorar. Pois pouco se sabe se é de ressurreição ou de último suspiro do cadáver. Quisera eu ter forças para dizer o merecido. Dizer todas as horas na espera, no aguardo, quando o leite derramado da chaleira no fogão restou todo escorrido, escorrendo, sem alma viva para pôr fim à derrama. Não foram poucas as horas, justo nesses tempos de seca desordem. Feito atravessar deserto esperando fonte limpa e vislumbrar o brilho das águas, mas tudo miragens, nada além de miragens. Assim tem sido a caminhança por essas terras. Porque pior que não encontrar é esperar em vão aquilo que promete vir e não vem. Pois entenda que cada linha escrita, não é a esmo tocada. É palavra dedicada, destacada do mais profundo que se pôde cavar. É palavra a custo liberada, aliviada do ser, intimamente posta à prova na mesa da refeição fraterna. Ignoradas as palavras assim postas, melhor tivessem guardadas, doloridas apenas pelo seu valor, não agravadas por um desprezo amigo (pior, muito pior que o desprezo inimigo).
Mas, eh piedade! Quisera ter forças para dizer o merecido. Sim! O merecido! Não venham com esfarrapadas! Sem necessidade! Contento-me com o retorno. E minha piedade não é ventania de fora, é nascida no caro de dentro, do sentimento. Assustam-me as palavras lançadas, o grito que interrompe o réquiem. E, distraidamente, percebo-me perseguindo o curupira e sonhando que a vida fosse como um bonito samba. Não! Porque devo agora compartilhar samba e curupira? Em tempos de outrora, quando se ouviu o pio encantado do passarinho uirapuru, pobre coitado, açoitado feito urubu, justo ele poetinha sagrado, justo ele... Restamos eu e a alegria solitária de ver um canto amanhecer e se perder feito fosse nada, feito um tom de mau gosto que ninguém prefere. Sem contar outros tantos cantos, abandonados já no primeiro sinal de nascença, para evitar o mesmo triste fim trágico do querido e amado uirapuru poetinha.
Mas vão dizer que isso é tempo de passados, que a hora é agora, em novos tempos feita e criada. Pois digo que aguardo, sem grande espera. O tempo, essa sabedoria, há de pôr nas coisas o seu devido tamanho. O que tenho a acrescentar é pouco, muito pouco. Mas não posso ficar calado, quietinho no meu canto, feito o tal Pedro Xavier. Que deste erro basta um ter padecido, assim espero. Porque de fato, no dizer de Jão Augusto, este buraco preto encardido é deveras tentação e dele fiquemos afastados. Quem nunca sucumbiu ao buraco que prove, porque nem pedra atirada há de convencer tamanha resistência. Quanto a Toninho Carlo, este que profetizou a ressurreição do compadre, paralelando, inclusive, com a de nosso senhor, digo cuidado, na espera, no aguardo. Que talvez sejam miragens, só miragem. O tempo, essa sabedoria.
Antes de me despedir, contudo, devo acrescer a minha prosa uma palavrinha sobre a ventura do irmão Pedro. Irmão. Não assuste mais os seus confrades. Devo lembrar, tal qual a raposa ao principezinho: “Tu te tornas eternamente responsável por aquele que cativas” (de grande valia esta tamanha simples lição). Quanto a isolar-se, proteger-se... De que? Não, não busque mais o seu sossego se ele é artificial, se ele é de isolamento. Não se iluda. Não há buraco que lhe assegure, porque o perigo lhe persegue, lhe encontra, lhe pega, no escurinho do seu canto, onde você esteja. É preciso, antes, enfrentá-lo! E bem armado! Porque sossego de verdade só nasce é da convivência bem vivida, da amizade cultivada, da doação diária, do ombro presente. A caminhada isolada é seca, é triste e a sede mata. Não o corpo. Esse perambula. Mata a alma. Sorrateira, de emboscada, na tocaia. Pois estar vivo é estar sempre prestes à próxima esquina. Ao chamado de hoje, ao agora. A vida não aceita o depois (e aqui repito o caro João Augusto). Nem a fuga. Sempre se caminha, vivo ou morto, inevitável. A caminhança. Vamos juntos, vivos!, em caravana por este deserto onde a sede é fraterna, pois a água mais pura é o amor.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

A História da Filosofia e o Ensino Universitário, por Álvaro Ribeiro

A divisão da história da filosofia em antiga, medieval, moderna e contemporânea resulta de um preconceito didáctico que só tem por defesa a origem estrangeira. E porque «lá fora» a organização universitária mantém no ensino um esquema que se reflecte nos compêndios escolares, «entre nós» parece quase irreverência, merecedora de áspero castigo, levantar a voz contra a conveniência de uma rotina consagrada pela internacionalidade. No entanto, difícil será justificar a referida divisão da história da filosofia durante uma discussão criteriosa, e muito especialmente depois de gastos os falaciosos argumentos da conformidade com o modelo estrangeiro e da comodidade própria dos velhos hábitos.
A questão merece ser discutida pelos curiosos de filosofia e pelos responsáveis do ensino nacional. Mais ainda: deverá ser conduzida até ao plano da isenta investigação da verdade que é, exactamente, aquele onde aparece mais justificável o autêntico nacionalismo. A narrativa da filosofia como um saber que se desenvolve numa só linha de história, divisível em segmentos antigo, medieval, moderno e contemporâneo, leva a crer num falso universalismo que, bem analisado, se revela apenas artifício excelente para um povo astucioso impor aos outros a sua própria cultura. É admirável que um pensador de génio, como Hegel, tivesse procurado, nas suas prelecções de história da filosofia, dar satisfação ao orgulho da raça de que era ilustre representante. É, porém, lamentável que estudiosos, bem avisados contra a sedução do estilo e do pensamento do filósofo de Estugarda, confiem por leviandade noutros tratadistas igualmente universitários mas de mais recente erudição. Razões de ordem pedagógica, mas também razões de ordem política, reprovam o ensino da história da filosofia numa só linha que não pode registar a inegável pluralidade de aspectos etnológicos e filológicos.
Devemos ao Dr. Delfim Santos o primeiro protesto contra a divisão, por idades, da história da filosofia no ensino superior. Em 1934, no seu opúsculo intitulado «Linha Geral da Nova Universidade» afirmou o ilustre professor que «a perspectiva cronológica não é a mais fecunda para o estudo dos grandes pensadores e das grandes correntes de pensamento» e, com esse fundamento, propôs que a história da filosofia fosse ensinada numa só cadeira anual, a título de propedêutica. Anos depois, em 1939, ao aprofundar as noções de progresso e história no seu trabalho «Da Filosofia», o Dr. Delfim Santos confirmou a doutrina, tão felizmente defendida, que vai sendo cada vez mais perfilhada pelos alunos dos cursos superiores.
É evidente que uma cadeira anual de história da filosofia pode servir o ensino comum a várias licenciaturas, mas de pouco vale para o estudo verdadeiramente filosófico. O mesmo ensino, quando dividido por sucessivas cadeiras anuais, passa a ser contraproducente. Observemos que a legislação em vigor não impede que a regência das cadeiras de história da filosofia possa ser confiada a professores que ignorem os idiomas em que foram escritas as obras que constam dos programas; e como ainda não existem traduções portuguesas dos clássicos da filosofia, a possível deficiência do professor é agravada pelas consequências do recurso às traduções em línguas intermediárias e pela confusão propícia às doutrinas estrangeiras que estejam bem disfarçadas de universalistas.
Razões de ordem pedagógica aconseIham, pois, que a divisão da história da filosofia obedeça naturalmente a um critério filológico, ou seja, à divisão por idiomas e povos. A história da literatura tem sido dividida por este critério, e do facto só tem resultado vantagem para o ensino. A correlação da filologia com a filosofia permite também confiar nalguns casos com vantagem administrativa, ao mesmo professor a regência de disciplinas que pertencem a licenciaturas diversas. Ao estudar o grego, o latim medieval e o alemão, - não falando já no hebraico e no árabe - verificaria o aluno, perante três exemplos diferentes, a falsidade da silhueta mtelectualista que costuma ser apresentada em nome da filosofia universal.
É certo que existe no plano do ensino superior uma cadeira de «História da Filosofia em Portugal», mas o respectivo trabalho de professores e alunos ainda não atingiu volume digno de ser tormado em consideração. Já a própria denominação da cadeira revela a dúvida do legislador acerca da existência de uma filosofia portuguesa; efectivamente se o estudo tiver de ser feito no quadro sinóptico mais utilizado pelas Universidades da Europa Central, o respectivo resultado será a inevitável conclusão de que o pensamento português é destituído de originalidade e de que a cultura portuguesa andou sempre atrasada em relação à dos povos superiores. Citemos, a propósito, o exemplo mais corrente. A «História da filosofia em Portugal» diz-nos que não tivemos uma reforma cartesiana nem uma revolução kantiana: fácil é concluir, com todos os juizos desvalorativos, que estamos ainda numa época de Escolástica.
Razões de ordem política aconselham a imediata remodelação de um ensino de que está resultando um pessimismo deprimente para a consciência nacional e a vulgarização de uma historiografia que não corresponde à verdade.
A Escolástica representa para nós, portugueses, um período de formação filosófica. A Idade Média é a idade das nossas origens. O nosso subconsciente poético revela-se por imagens medievais.
Não vale, para nós, de modelo, a filosofia helénica. Nunca atribuímos à Grécia uma exagerada importância na cultura e na civilização, porque nunca esquecemos a contribuição dos povos orientais. Não há dúvida de que a nossa saudade esteve voltada para a 1ndia.
Para sair da Escolástica não é indispensável entrar no Iluminismo. Se o pensamento português nunca assimilou o essencial do pensamento de Descartes e de Kant, o facto é para explicar e não para condenar. A aceitação do positivismo em Portugal e a influência perdurável dessa doutrina na nossa literatura possuem um significado digno de interpretação especulativa.
Fácil é verificar, pela análise do ensino público e das obras dos publicistas, que a doutrina dominante em Portugal já não é a Escolástica, mas tão só uma flexível modalidade de positivismo para uso de crédulos e incrédulos. A escolástica, propriamente dita, eleva a inteligência humana até ao nível da Revelação Cristã. Abandonámos a Escolástica de tal modo que sofremos uma decadência de pensamento filosófico, e nessa queda houve dois momentos fatídicos: a instituição do Curso Superior de Letras de Lisboa, que veio a ser foco de radiação do positivismo e a extinção da Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra por inevitável conclusão de ordem política. Não tivemos em Portugal reforma cartesiana nem revolução kantiana - é certo - mas tivemos no século passado, e infelizmente continuamos a ter no século que vai já em meio, a equivalente revolta das Letras contra o Espírito.
A influência do positivismo explica, pois, que o ensino universitário da história da filosofia tenha obedecido à «lei dos três estados» ou a outra ficção anáIoga; não devemos, por isso, estranhar que tal programa didáctico suscite, entre os estudantes, a credulidade no advento de uma fase definitiva da humanidade e que, ao mesmo tempo, vá gerando o descontentamento dos pedantes contra o povo português que, durante séculos, permaneceu indócil às lições de europeismo vulgar. A ser julgada pelo critério da «lei dos três estados», a História da Filosofia em Portugal merece severa condenação - sem recurso possível, porque nem vale de atenuante a laboriosa hipótese de ter havido alguns precursores.
Tudo quanto de injusto se tem escrito contra o passado (e até contra o futuro!) do pensamento português, assenta na admitida falsidade de que a filosofia se desenvolve como um só fio que teve origem em Tales de Mileto, por exemplo, e que termina actualmente nas mãos de determinado professor, um universitário cujo renome é mundial.
A verdade é-nos dada, porém, numa figura mais complexa do que a recta intelectualista. Vemos que todos os povos superiores - e o povo grego nos oferece o mais nítido exemplo - desenvolveram esforços diferentes para atingirem a sabedoria a raros acessível.
Poderemos também ver, quando a isso colectivamente nos dispusermos, que o povo português lutou e tem lutado pela expressão de um pensamento original. Não sabemos, porém, quando chegará a manhã de lucidez patriótica.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Não é que é verdade mesmo!

Enfim, sinto-me mais seguro, vejo que o renascimento é real, tanto que mal chegou e quer festa. Que ótimo!!!

Peço desculpas pela recepção fria de minha parte e dos demais, mas não se esqueça que temos bons motivos para sentir medo diante de acontecimento tão inusitado.
Eis que um defunto reaparece, nada mais ilógico e hábil a justificar o temor de todos, a incredulidade diante do misterioso/mágico acontecimento.

Minha saudação foi simplesmente musical, dei vida à vitrola e fugi, não sabendo se a sensação em meu íntimo era de terror ou de esperança. Pus o vinil por via das dúvidas...pelo menos, o morto, agora vivo, poderia ter um alento, mas eu, hein!? Comparo-me a uma mistura de Tomé com os amendrontados de Poe...aliás, nos dias de hoje, vai saber o que não pode acontecer, quem sabe não seria algum professor universitário querendo roubar minha carteira ou um apresentador de TV em busca de um furo virtual. Até Cristo tem sido falsificado por aí, vai saber?

Mas deixando o trololó de lado: - Que alegria tê-lo conosco! E tô muito contente com seu tom provocativo! O Miguel diria/dirá que gosta quando o outro tá nesse pique, eu também digo! Não podemos fugir daquilo que mais dá sentido a nossa vida, a beleza mora no fundo da alma de cada um de nós, já dizia uma velha amiga. Sem o belo, sem atender aos chamados de nosso íntimo em prol do belo, vamos acabando conosco e exterminando toda possibilidade da inspiração se manifestar. Não nego que todos estamos em situações de contato pouco intenso com a boa arte, em virtude das circunstâncias peculiares em que nos encontramos, mas não é desculpa para nos acabrunharmos em nosssos cantinhos e só ficarmos pensando em como será bom quando... Quando não existe!!! Só existe o hoje, o agora!!! O ontem já era e, como diria Manuel, "o futuro a Deus pertence, a Deus? Adeus."

Andarilho

Meus amigos e meus inimigos,

Lá estava um berrando a este pseudobloguista a morte virtual. O cadáver se desembrulhou do caixão lacrado e foi ter prosa com o acusador, e até – cúmplice do próprio assassinato – numa necropsia verdadeiramente autopsia, dissecou os motivos da ida ao túmulo, em um despertar das trevas esperançoso.

Chegado ao local do encontro, dentessorrindo por alegria do reencontro com vida da amizade, o ex-defunto não compreendeu. Talvez fosse um convencido, desses apaixonados por espelhos, mas realmente construíra uma esperança, confiante de que o evento da ressureição, ainda que estrelado por alma minguada, fosse bem recebido por vivas ou ao menos um tá-bão, sô?

Nem foguetes, nem confete, o salão vazio de sertão. Para quem esperava festa, restou esconder o caixão, com o próprio corpo não – que já estava cansado da solidão subterrânea – mas sem pá nem braço amigo, com as unhas da própria mão.

Limpando o suar das telhas, pensou no som da infância, onde o sertanejo tocava o duelo de reis, ocorrido em Ribeirão. Depois de longa viagem, o peão foi tomar uma pinga e se envolveu em confusão – foi guerreado por um destes senhores da região. Pegou nas armas, então, e amarrou o empina-nariz com os laços de sua boiada.

Salivando o chopp da lenda, versada em moda-viola, o revivido foi interrompido, e aguçando ouvido, viu o batuque de uma cartola. As notas da alegria enviadas do além? Que mistério seria este, onde havia música e mais ninguém?

Quem sabe ao sair da sepultura, violara alguma norma fúnebre, e agora estava sancionado ao sem-sentido? Pensamento excluído, já que o feliz acorde provinha do céu.

Mais provável que fosse uma resposta ao seu enigma de renascimento. Embora nada aparentasse que sua charada dos pés-virados tivesse sido descoberta, poderia estar errado, isto costumava acontecer...

Concluiu que era isto: um diálogo insinuante. Somente meias palavras de cá e de lá. Gestos poucos, conversa nenhuma, bastava o resvalar, o quase-nada.

Matutou e não vingou. Desistia. Impacientou-se e sem pudor lançou a toalha branca.

E agora, vem pedir explicações ao autor do segredo e aos demais asseclas: onde estão as boas-vindas a este companheiro de andanças? Não viajo com tanta postura, nem verso com tanta frescura, mas, pé-ante-pé, sigo o caminho, mal-trajado e cabelo sujo, um peregrino, um andarilho.