quinta-feira, 4 de junho de 2009

A História da Filosofia e o Ensino Universitário, por Álvaro Ribeiro

A divisão da história da filosofia em antiga, medieval, moderna e contemporânea resulta de um preconceito didáctico que só tem por defesa a origem estrangeira. E porque «lá fora» a organização universitária mantém no ensino um esquema que se reflecte nos compêndios escolares, «entre nós» parece quase irreverência, merecedora de áspero castigo, levantar a voz contra a conveniência de uma rotina consagrada pela internacionalidade. No entanto, difícil será justificar a referida divisão da história da filosofia durante uma discussão criteriosa, e muito especialmente depois de gastos os falaciosos argumentos da conformidade com o modelo estrangeiro e da comodidade própria dos velhos hábitos.
A questão merece ser discutida pelos curiosos de filosofia e pelos responsáveis do ensino nacional. Mais ainda: deverá ser conduzida até ao plano da isenta investigação da verdade que é, exactamente, aquele onde aparece mais justificável o autêntico nacionalismo. A narrativa da filosofia como um saber que se desenvolve numa só linha de história, divisível em segmentos antigo, medieval, moderno e contemporâneo, leva a crer num falso universalismo que, bem analisado, se revela apenas artifício excelente para um povo astucioso impor aos outros a sua própria cultura. É admirável que um pensador de génio, como Hegel, tivesse procurado, nas suas prelecções de história da filosofia, dar satisfação ao orgulho da raça de que era ilustre representante. É, porém, lamentável que estudiosos, bem avisados contra a sedução do estilo e do pensamento do filósofo de Estugarda, confiem por leviandade noutros tratadistas igualmente universitários mas de mais recente erudição. Razões de ordem pedagógica, mas também razões de ordem política, reprovam o ensino da história da filosofia numa só linha que não pode registar a inegável pluralidade de aspectos etnológicos e filológicos.
Devemos ao Dr. Delfim Santos o primeiro protesto contra a divisão, por idades, da história da filosofia no ensino superior. Em 1934, no seu opúsculo intitulado «Linha Geral da Nova Universidade» afirmou o ilustre professor que «a perspectiva cronológica não é a mais fecunda para o estudo dos grandes pensadores e das grandes correntes de pensamento» e, com esse fundamento, propôs que a história da filosofia fosse ensinada numa só cadeira anual, a título de propedêutica. Anos depois, em 1939, ao aprofundar as noções de progresso e história no seu trabalho «Da Filosofia», o Dr. Delfim Santos confirmou a doutrina, tão felizmente defendida, que vai sendo cada vez mais perfilhada pelos alunos dos cursos superiores.
É evidente que uma cadeira anual de história da filosofia pode servir o ensino comum a várias licenciaturas, mas de pouco vale para o estudo verdadeiramente filosófico. O mesmo ensino, quando dividido por sucessivas cadeiras anuais, passa a ser contraproducente. Observemos que a legislação em vigor não impede que a regência das cadeiras de história da filosofia possa ser confiada a professores que ignorem os idiomas em que foram escritas as obras que constam dos programas; e como ainda não existem traduções portuguesas dos clássicos da filosofia, a possível deficiência do professor é agravada pelas consequências do recurso às traduções em línguas intermediárias e pela confusão propícia às doutrinas estrangeiras que estejam bem disfarçadas de universalistas.
Razões de ordem pedagógica aconseIham, pois, que a divisão da história da filosofia obedeça naturalmente a um critério filológico, ou seja, à divisão por idiomas e povos. A história da literatura tem sido dividida por este critério, e do facto só tem resultado vantagem para o ensino. A correlação da filologia com a filosofia permite também confiar nalguns casos com vantagem administrativa, ao mesmo professor a regência de disciplinas que pertencem a licenciaturas diversas. Ao estudar o grego, o latim medieval e o alemão, - não falando já no hebraico e no árabe - verificaria o aluno, perante três exemplos diferentes, a falsidade da silhueta mtelectualista que costuma ser apresentada em nome da filosofia universal.
É certo que existe no plano do ensino superior uma cadeira de «História da Filosofia em Portugal», mas o respectivo trabalho de professores e alunos ainda não atingiu volume digno de ser tormado em consideração. Já a própria denominação da cadeira revela a dúvida do legislador acerca da existência de uma filosofia portuguesa; efectivamente se o estudo tiver de ser feito no quadro sinóptico mais utilizado pelas Universidades da Europa Central, o respectivo resultado será a inevitável conclusão de que o pensamento português é destituído de originalidade e de que a cultura portuguesa andou sempre atrasada em relação à dos povos superiores. Citemos, a propósito, o exemplo mais corrente. A «História da filosofia em Portugal» diz-nos que não tivemos uma reforma cartesiana nem uma revolução kantiana: fácil é concluir, com todos os juizos desvalorativos, que estamos ainda numa época de Escolástica.
Razões de ordem política aconselham a imediata remodelação de um ensino de que está resultando um pessimismo deprimente para a consciência nacional e a vulgarização de uma historiografia que não corresponde à verdade.
A Escolástica representa para nós, portugueses, um período de formação filosófica. A Idade Média é a idade das nossas origens. O nosso subconsciente poético revela-se por imagens medievais.
Não vale, para nós, de modelo, a filosofia helénica. Nunca atribuímos à Grécia uma exagerada importância na cultura e na civilização, porque nunca esquecemos a contribuição dos povos orientais. Não há dúvida de que a nossa saudade esteve voltada para a 1ndia.
Para sair da Escolástica não é indispensável entrar no Iluminismo. Se o pensamento português nunca assimilou o essencial do pensamento de Descartes e de Kant, o facto é para explicar e não para condenar. A aceitação do positivismo em Portugal e a influência perdurável dessa doutrina na nossa literatura possuem um significado digno de interpretação especulativa.
Fácil é verificar, pela análise do ensino público e das obras dos publicistas, que a doutrina dominante em Portugal já não é a Escolástica, mas tão só uma flexível modalidade de positivismo para uso de crédulos e incrédulos. A escolástica, propriamente dita, eleva a inteligência humana até ao nível da Revelação Cristã. Abandonámos a Escolástica de tal modo que sofremos uma decadência de pensamento filosófico, e nessa queda houve dois momentos fatídicos: a instituição do Curso Superior de Letras de Lisboa, que veio a ser foco de radiação do positivismo e a extinção da Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra por inevitável conclusão de ordem política. Não tivemos em Portugal reforma cartesiana nem revolução kantiana - é certo - mas tivemos no século passado, e infelizmente continuamos a ter no século que vai já em meio, a equivalente revolta das Letras contra o Espírito.
A influência do positivismo explica, pois, que o ensino universitário da história da filosofia tenha obedecido à «lei dos três estados» ou a outra ficção anáIoga; não devemos, por isso, estranhar que tal programa didáctico suscite, entre os estudantes, a credulidade no advento de uma fase definitiva da humanidade e que, ao mesmo tempo, vá gerando o descontentamento dos pedantes contra o povo português que, durante séculos, permaneceu indócil às lições de europeismo vulgar. A ser julgada pelo critério da «lei dos três estados», a História da Filosofia em Portugal merece severa condenação - sem recurso possível, porque nem vale de atenuante a laboriosa hipótese de ter havido alguns precursores.
Tudo quanto de injusto se tem escrito contra o passado (e até contra o futuro!) do pensamento português, assenta na admitida falsidade de que a filosofia se desenvolve como um só fio que teve origem em Tales de Mileto, por exemplo, e que termina actualmente nas mãos de determinado professor, um universitário cujo renome é mundial.
A verdade é-nos dada, porém, numa figura mais complexa do que a recta intelectualista. Vemos que todos os povos superiores - e o povo grego nos oferece o mais nítido exemplo - desenvolveram esforços diferentes para atingirem a sabedoria a raros acessível.
Poderemos também ver, quando a isso colectivamente nos dispusermos, que o povo português lutou e tem lutado pela expressão de um pensamento original. Não sabemos, porém, quando chegará a manhã de lucidez patriótica.

3 comentários:

  1. O povo português é muito curioso, engraçado como nos esquecemos que nosso espírito vem em grande parte do deles, mas como entender isto? Eu acho esse pessoal tão diferente de nós... E vocês, o que pensam?
    Quanto à divisão da Filosofia em períodos, gostei bastante da visão do autor.
    Por fim, o que poderíamos falar do Brasil em termos de Filosofia? Será que não seria melhor bebermos nos estrangeiros?

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  2. Eu acreditava ser muito diferente de nossos irmãos portugueses até ir para Portugal. Depois de passar uns dias na "terrinha", parei de acreditar e tive certeza: a separação é oceânica.
    Coloquei o texto porque comungo da idéia segundo a qual as divisões do pensamento estão equivocadas. De fato, uma das idéias que mais me incomodam é aquela da "evolução" ou "superação" do pensamento. Uma baita balela. Além do mais, dá a falsa impressão de que o conhecimento vai sendo acumulado, o que talvez aconteça nas bibliotecas, mas não na cultura.
    Já quanto a uma filosofia brasileira, é preciso cuidado. É que tenho verdadeira ojeriza à idéia de procurar uma "brasilidade" ou qualquer outra noção caetanesca para classificar o pensamento nascido nestas terras. O que temos são brasileiros que pensaram e pensaram bem.
    A obra do Mário Ferreira dos Santos, de proporções gigantescas, já vale todo um país.
    Evidentemente, a filosofia é algo que essencialmente extravasa culturas. A compreensão do próprio Mário depende de um passeio por toda a tradição platônica, aristotélica, tomista, enfim, toda a verdadeira tradição filosófica.

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  3. Também gostei desta crítica à divisão estanque do pensamento. Outro dia li o Ariano SUassuna dizendo que para ele o Baroco, o Clássico e o Romântico não devem ser fixados no tempo, mas que são tradições sempre presentes, são formas diferentes de conceber a arte... POr isso nada impede um obra barroca nos dias de hoje.
    Por outro lado, não gostei do tom nacionalista do autor. Acho que esta é um marca dos portugueses, porque sempre tem presente um certo remorso de serem considerados os irmãos pobres da Europa. Acho que se corre o risco de construções caetanescas mesmo (como bem lembrou o Pedro). Não se pode esquecer que a filosofia tende sim ao universal, como investigação da verdade e independe de cultura, de povo, de tempo.
    Outra questão interessante é pensarmos na influência política de um certo pensamento, numa determinada época. Até que ponto um pensamento foi reconhecido pelo seu valor ou pela influência política do país e da cultura em que surgiu, ou da força social do seu autor? Um autor pode ser bem influente ou não socialmente e como isso gera efeitos no seu pensamento? Acredito que os grandes pensamentos, a grande arte é aquela que acaba permanecendo no tempo. O tempo acaba corrigindo estes equivocos humanos, eliminando esses elementos mais contingentes e o que acaba permanecendo é o que tem valor verdadeiro.

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