No
primeiro dia da Semana Santa – que comemoramos no Domingo de Ramos -, Jesus,
antes de entrar em Jerusalém, deteve-se na ladeira do monte das Oliveiras e
dali contemplou o espetáculo da Cidade Santa brilhando ao sol do amanhecer. Uma
golfada de dor invadiu-lhe a alma, e seus discípulos viram cintilar lágrimas
sobre a sua face: Contemplou Jerusalém – diz São Lucas – e chorou sobre ela (Lc
19, 41).
Detenhamo-nos
sobre essas lágrimas, pois elas nos podem dizer muitas coisas e mostrar-nos uma
grande fonte de tristeza escondida no nosso coração.
O
Evangelho dá-nos todos os elementos para que possamos saber qual foi a sua
causa e a sua significação.
No
monte das Oliveiras, olhando para a cidade, Cristo iniciou naquele “primeiro
dia” – naquele domingo – um pranto que completaria na terça-feira no Templo.
Revelou em ambos os momentos a sua dor, pronunciando palavras explícitas. No
domingo, ao mesmo tempo que prorrompia em lágrimas, exclamou: Oh! Se também tu,
ao menos neste dia que te é dado, conhecesses o que te pode trazer a paz! Mas
não, isto está oculto aos teus olhos (Lc 19, 42). Na terça-feira, acrescentou:
Jerusalém, Jerusalém [...], quantas vezes eu quis reunir os teus filhos, como a
galinha reúne os seus pintinhos debaixo das asas, e tu não quiseste! Eis que a
tua casa ficará vazia (Mt 23, 37-38).
Guardemos
bem, do conjunto dessas palavras, três expressões: -Se conhecesses o que te
pode trazer a paz; -quantas vezes eu quis [...] e tu não quiseste; e -a tua
casa ficará vazia; porque nelas se revela a razão dessas lágrimas de Cristo.
Por elas compreendemos que Cristo estalou de dor em Jerusalém porque previa
antecipadamente outra dor, outra tristeza enorme para a qual muitos homens e
mulheres se encaminhavam e se encaminham também hoje cegamente: …isso está
oculto aos teus olhos.
Jesus
sentia doerem-lhe na alma todos aqueles que, iludindo-se a si mesmos, julgam
que só poderão alcançar a felicidade defendendo-se de Deus, isto é,
esquivando-se à carga amável dos mandamentos de Deus e da sua graça; todos
aqueles que se enganam imaginando que é possível realizarem-se à margem de Deus
e contrariando os seus planos. É bem provável que só venham a abrir os olhos
quando se lhes tornar evidente, com tristeza amarga, que “a sua casa ficou
vazia”.
Não
há dúvida de que havia muitos com este coração mesquinho em Jerusalém. As
páginas do Evangelho apresentam um retrato especialmente vivo dos escribas e
fariseus hipócritas (cfr. Mt 23, 13), que se iam opondo num crescendo cada vez
mais virulento à pessoa e à doutrina de Cristo, porque chamava à conversão, à
autêntica pureza de vida. Tinham começado com insinuações difamatórias –
mostrando-se escandalizados porque Jesus comia com os pecadores (cfr. Mt 8, 11)
-, prosseguiram discutindo-lhe a doutrina e armando-lhe ciladas com perguntas
insidiosas (cfr. Mc 2, 7; Lc 20, 21-22), e terminaram declarando insuportável o
seu ensinamento (Jo 6, 60) e proclamando a necessidade de eliminá-lo
sumariamente pelo bem do povo (Jo 11, 50).
Que
acontecia, na realidade? Que a amorosa doutrina de Jesus, com as suas divinas
exigências, lhes perturbava o egoísmo aureolado de religiosidade, a ambição
encoberta por aparências de zelo pelas coisas de Deus.
A
esses “honestos” avarentos, cobiçosos, orgulhosos e sensuais, Cristo
desmontava-lhes o disfarce de honradez com a sua mensagem de sinceridade,
pureza, humildade, desprendimento e doação, que era para eles uma bofetada.
Dura é essa doutrina – acabarão por bradar -, quem pode suportá-la? (Jo 6, 60).
E os principais de Jerusalém, irritados com o povo mais simples, que se deixara
cativar pelos milagres e pela pregação de Jesus, tentarão desmoralizá-lo,
dizendo: Há acaso alguém entre as autoridades ou dos fariseus que acredite
nele? Esse povoléu que não conhece a Lei é amaldiçoado… (Jo 7, 48).
Defender-se de Deus
À
primeira vista, parece incrível, mas é uma grande verdade que muitos homens –
agora como então – procuram defender-se do amor de Deus como de um inimigo.
Talvez aceitem teoricamente que só no amor puro, que vem de Deus e leva a Deus,
se encontram as promessas da plena felicidade. Mas não “acreditam” nisso. Na
vida real, procuram a felicidade apenas no prazer egoísta e na auto-exaltação.
É uma incoerência, mas é uma realidade. Enganam-se de forma mais ou menos
consciente e, por receio de se complicarem com a grandeza dos ideais de Cristo,
encerram-se numa cegueira voluntária. Assim, querendo proteger-se contra os
sacrifícios que o Ideal cristão comporta, atiram-se à estrada do egoísmo – que
parece bem mais garantida – e perdem o caminho do amor, o único capaz de
orientar os seus passos para a alegria e para a paz (cfr. Lc 1, 79). Muito bem
disse deles Cristo: O que te pode trazer a paz [...] está oculto aos teus olhos
(Lc 19, 42).
É
uma pena que esses pobres homens e mulheres fiquem eletrizados pelo seu próprio
“eu”, do qual Deus acaba por ser um “rival”. O norte magnético, que neles
polariza tudo, é constituído pelo que alguém resumia nos “três esses”: sossego,
satisfação, sucesso. Aí estaria o único segredo da felicidade, a chave da
alegria! Nesse clima interior de egoísmo glorificado, quando se lhes cruza
Cristo pelo caminho da vida, quando deles se aproxima e lhes fala de ideais
divinos, de sacrifício alegre, de humildade amorosa, de serviço aos outros…,
sentem um arrepio percorrer-lhes a espinha. Apavorados com a perspectiva de
perder a vida fácil, bradam: Não! E é por isso que Cristo chora: Não quiseste,
não quiseste abrir-te confiadamente Àquele que te podia trazer a paz. Como
conseqüência desse fechamento, virão inevitavelmente os frutos dolorosos do
egoísmo, que tarde ou cedo acabam por aparecer e ressecam a alma: Eis que a tua
casa ficará vazia.
Portas previamente fechadas
Meditemos
um pouco mais sobre as possíveis formas desse “não querer” e sobre as suas
conseqüências.
Num
grau extremo, a recusa consiste em fechar deliberadamente os olhos da alma
antes de que Cristo tenha chegado sequer perto da porta. É o caso das pessoas
sem formação religiosa alguma, mas que de antemão “não querem saber”. Entre
elas e Deus levantaram – sem dar a Deus a menor oportunidade – um muro,
fabricado com as pedras da ignorância e da má vontade, unidas pelo cimento do
preconceito. Os pilares que seguram esse muro são os sete pecados em que o
egoísmo se subdivide: a soberba, a avareza, a luxúria, a ira, a gula, a inveja
e a preguiça.
Não
se pode passar por alto o fato, por demais comprovado, de que todos aqueles que
repelem a religião ou dela se querem livrar – com as dez mil razões que a
sem-razão inventa -, na realidade se estão deixando encarcerar pelo muro
defensivo que eles próprios levantaram entre a sua alma e Deus: o muro dos sete
pecados capitais, que acabamos de mencionar. Nesses vícios, que são o ácido
corrosivo do amor – e o manancial turvo de todos os pecados dos homens -,
colocam absurdamente a esperança de uma vida mais plena e livre, quando são
esses vícios os que os escravizam e terminam por asfixiá-los.
Depois,
quando o erro fica patente, não adianta exclamar com ingenuidade hipócrita: “Eu
não sabia” até que extremo estava errado. Este é o recurso fácil dos que,
defendendo embora ciosamente o egoísmo, querem desculpar-se quando começam a
perceber – pelo vazio e pela tristeza que os invade – que se enganaram. Dizem:
“Eu não sabia”, e Cristo retruca-lhes: Tu não quiseste. Naturalmente, têm que
calar-se: é certo que não sabem, mas é mais certo ainda que a sua ignorância
culpável procede de que antes “não quiseram” saber nem aceitar. Não é que não
tivessem oportunidades – Quantas vezes eu quis, repete-lhes o Senhor -; a graça
de Deus não lhes faltou. Umas vezes, chegou-lhes por meio de uma
intranqüilidade de consciência que os remordia; outras, pela oportunidade de
ler algum texto de formação cristã; outras ainda, pela ajuda rejeitada de um
amigo ou uma amiga sincera… Mas preferiram não saber, para que Deus e as suas
exigências – as divinas complicações! – não os perturbassem.
O “sim” que esconde um “não”
Essas
almas de “recusas prévias” enquadram-se nos que chamávamos “casos extremos”.
Vejamos agora um segundo tipo de recusa, talvez mais próximo de nós.
Trata-se
dos que aceitam Cristo, até mesmo com entusiasmo, e lhe dizem um sim que parece
pronunciado de todo o coração. Acontece, porém, que no bojo desse sim viaja,
agarrado a ele com unhas e dentes, um não. Isso faz com que o “sim” se torne
condicionado e parcial e que, na hora da verdade, acabe por transformar-se num
“não” melancólico, talvez mais vazio e triste que a recusa peremptória dos
“casos extremos”.
Houve
uma vez em que Cristo
escutou um desses “sim” entusiásticos, pronunciado por um coração jovem. Mas,
quando foi penetrar no âmago desse assentimento, viu emergir dele um “não”
desolador.
O
Evangelho narra o caso com luxo de detalhes. Cristo tinha saído de casa – onde
acabava de abençoar um enxame de crianças – e pusera-se a caminho. Poucos
passos havia dado, quando um jovem veio correndo e, de forma espalhafatosa, lhe
caiu de joelhos na frente, obrigando-o a parar. Os olhos do rapaz ardiam com a
chama do fervor, o coração batia-lhe forte: Bom Mestre – disse a Jesus -, que
devo fazer para alcançar a vida eterna?
Desde
logo percebemos uma coisa: esse jovem era completamente diferente dos que
considerávamos há um instante, dos que não querem saber. Ele “queria saber”
mesmo.
Jesus
dá à pergunta formulada a resposta mais simples: – Queres entrar na vida
eterna? Cumpre os mandamentos. Mas o jovem queria saber mais, queria ter noções
tão claras que não admitissem dúvidas, e por isso ampliou a pergunta: Quais?
Quais mandamentos? – Não matarás – lembra-lhe o Senhor -, não cometerás
adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho, honra teu pai e tua mãe,
amarás o teu próximo como a ti mesmo. O diálogo vai-se tornando empolgante,
porque o moço, cada vez mais eufórico, responde depressa: Tudo isso tenho
observado desde a minha infância. Que me falta ainda?
Poderá
alguém duvidar de que esse rapaz não fosse dos que procuram ardentemente os
caminhos de Deus, dos que querem conhecê-los sinceramente, dos que querem saber
a fundo? Havia nas suas palavras e no seu gesto tal expressão de generosidade,
que Cristo ficou comovido: Jesus fixou nele o olhar, amou-o e disse-lhe… Assim
fala o Evangelho, deixando entrever as grandes expectativas que o Senhor
depositou naquela alma que podia dar muito, pois até então tinha caminhado
pelos rumos de Deus. Podia dar tudo. Por isso, Cristo disse-lhe: Uma só coisa
te falta; vai e vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no
céu; depois vem e segue-me.
Naquele
instante, Deus estava passando muito perto do coração do jovem. Um miligrama
mais de generosidade, e ele entraria a fazer parte da turma jubilosa dos
Apóstolos de Cristo. Mas a história, que começara tão bem, dá a partir desse
momento uma reviravolta sombria: Ouvindo essas palavras, o jovem foi-se embora
muito triste, porque possuía muitos bens (cfr. Mt 19, 16-22 e Mc 10, 17-22)
E
assim, sumindo-se na nuvem cinzenta da tristeza, a figura desse rapaz promissor
desaparece das páginas do Evangelho e apaga-se, sem nunca mais voltar a ser
mencionado na história de Jesus, que poderia ter sido também a sua feliz
aventura. Foi-se embora triste, profundamente entristecido. Não percebemos que
também neste caso Jesus viu aquilo que lhe fez brotar lágrimas perto de
Jerusalém: e não quiseste? O jovem inicialmente quis…, sim, quis quase tudo
aquele moço de ar generoso, mas houve um ponto em que o “sim” se lhe derreteu
num “não”. Foi quando o chamado do amor tocou no seu dinheiro. Ah, não, isso
não! E bastou um “isso não” para deixar-lhe a “casa vazia”.
Razões profundas das nossas tristezas
É
bem possível que muitos cristãos bons, bem dispostos e até idealistas, possam
reconhecer-se, como num espelho, na cena do jovem rico; e que – depois de se
verem nela refletidos – fiquem em melhores condições de descobrir por que andam
tristes, por que se sentem frustrados, por que, apesar dos seus ideais e
esforços espirituais, se encontram encalhados e não só não avançam, como
parecem recuar com o correr dos anos. A resposta a esses porquês é simples:
Cristo disse-lhes também: Ainda te falta uma coisa; mas eles, lá no fundo de si
mesmos, retrucaram: “Isso não!”
Contava
São Josemaría Escrivá que conhecera um menino a quem a mãe ensinara, desde
pequeno, a rezar de manhã e à noite. Ao acordar, recitava juntamente com ela o
ato de consagração a Nossa Senhora: “Ó Senhora minha, ó minha Mãe, eu me
ofereço todo a Vós, e em prova da minha devoção para convosco, vos consagro
neste dia meus olhos, meus ouvidos, minha boca…” Não terminava, porém, a
enumeração, porque – como quem quer prevenir equívocos – intercalava com
veemência: “menos o meu coelhinho”. Tudo estava ele disposto a oferecer a Nossa
Senhora…, menos o seu coelhinho. Mons. Escrivá, ao narrar esse episódio, dizia
aos que tínhamos a fortuna de ouvi-lo que pensássemos também se não teríamos o
nosso “coelhinho”.
Será
que não temos mesmo? Seja qual for a nossa idade – ainda que já estejamos
descendo a última ladeira da vida -, o “coelhinho” é todo e qualquer “menos
isto” que nós opomos a Deus, ou seja, toda e qualquer reserva ou condição
intocável.
Para
o jovem rico, o problema residia nas riquezas. Para nós, onde está? Qual é a
nossa ressalva, o nosso “menos isto”?
Uns
colocam o rótulo de intocável no seu comodismo burguês: vida cristã, sim, mas
sem falar muito em sacrifícios nem renúncias. Outros desconversam quando Deus,
de algum modo, lhes pede que vivam bem a castidade: parecem-se com o governador
romano Félix, que gostava de ouvir São Paulo, prisioneiro em Cesaréia, até o
dia em que o Apóstolo começou a falar-lhe sobre a castidade e o juízo futuro.
Félix, então, todo atemorizado, disse-lhe: Por ora podes retirar-te;
mandar-te-ei chamar em outra ocasião (At 24, 25). Há outros que têm o seu
“menos isto” no filho que Deus lhes pede – mais um filho! – e que eles não
querem aceitar; outros fecham os ouvidos à sua própria consciência, quando lhes
diz que a honestidade nos negócios está acima da ganância; outros ainda querem
ser bons cristãos, mas sem combater os defeitos que mais os dominam e lhes
estão deteriorando o convívio familiar, prejudicando o trabalho ou congelando o
crescimento espiritual: tudo menos renunciar à prepotência, ao comodismo, à
inconstância, à crítica, ao excesso nos “aperitivos”, à desordem nos horários,
etc.
E,
dentro deste triste campo das recusas, é amargamente penoso – deploravelmente
melancólico – o caso dos que chegam à beira de uma entrega total, para a qual
Deus os escolheu desde toda a eternidade; dos que enxergam uma vocação divina
que com a sua claridade os deslumbra e, na hora decisiva, se encolhem por medo
e se “retiram tristes”, escondendo-se sob o manto cinzento do egoísmo, como o
jovem rico.
Seja
qual for o caso, existe em todos um denominador comum: o “não querer”, que fez
chorar Cristo em Jerusalém, e que acaba por fazer chorar muito amargamente os
que o pronunciam. Afinal, Cristo chorou com as lágrimas do amor, e esses choram
com as lágrimas da recusa: destruíram, com efeito, o plano que Deus preparara
para eles.
(Adaptação de um trecho do livro de F. Faus: Lágrimas de Cristo,
lágrimas dos homens)
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