segunda-feira, 11 de março de 2013

Os riscos da politização do Judiciário e do ativismo judicial (Marcos Boeira)


O tema da politização do judiciário vem ganhando bastante notoriedade nos últimos dez anos no Brasil. O Supremo Tribunal Federal, frente à ordem de acontecimentos que ocasionaram transformações na jurisdição constitucional, encontra-se em um estágio de sua magistratura talvez não conhecido pelos clássicos do direito constitucional pátrio. É que, recentemente, a Corte enfrenta uma sucessão de casos que demandam, como nunca antes, um “atravessar de fronteiras” do papel judicial rumo às questões “essencialmente” não jurídicas, ou pelo menos, condizentes com a moral, o poder e mesmo com a justiça.
Os autores clássicos do direito constitucional brasileiro, como Rui Barbosa, entendiam ser “estranha” ao poder judiciário a análise de questões políticas, tema bastante debatido nos EUA, modelo de inspiração de nossas instituições político-jurídicas após o advento da república de 1891 (1).
Na verdade, a problematização das relações entre o direito e a política, tão afeita ao direito constitucional, era no passado matéria inerente ao chamado direito político, “direito” esse que estabelecia de forma mais satisfatória as fronteiras existentes entre o jurídico e o político (2). Atualmente, estamos a assistir, cada vez mais, o paulatino desaparecimento dessas fronteiras, ocasionado pelo “alargamento proposital” das funções do poder judiciário com relação à temáticas antes desconhecidas pelo mesmo. Esse fator de amplitude do campo de atribuições da jurisdição sobre matérias inerentes aos poderes políticos vem acarretando inúmeros problemas até então desconhecidos, como por exemplo, a natureza “não democrática” do poder judiciário querendo tomar para si atribuições inerentes ao processo político da democracia, ou então a anexação de funções “típicas” de outros poderes.
Assim, se é fato de que os demais poderes – poder executivo e poder legislativo- no Brasil legitimam-se segundo um processo deliberativo de escolha popular de seus membros e agentes, tal não se configura em relação ao poder judiciário. Com efeito, o poder judiciário é poder “aristocrático”, especializado e voltado para funções “jurídicas”, cujo sentido está, em última análise, na manutenção de conservação do direito ordinário e constitucional, razão pela qual seu método de escolha é de natureza “técnica”. Assim é a inteligência do art. 2º da Constituição do Brasil de 1988, em consonância com o Título IV.
A separação de poderes tem como foco a idéia genuína de “limitar o poder”, de estabelecer um “controle” recíproco entre os poderes a fim de garantir a liberdade. A limitação do poder é algo inerente ao Estado de Direito. Porém, o que estamos assistindo no Brasil é a progressiva flexibilização do “controle”, sua superação para um regime institucional inteiramente novo, estranho aos modelos imaginados pelo direito constitucional nos últimos dois séculos. De fato, o alargamento do poder judiciário no Brasil para além de suas competências, está a demonstrar que o atual cenário da jurisdição constitucional, entre nós, não se dá mais no campo do “tipicamente jurídico”, mostrando-se, de fato, que o poder judiciário está a realizar uma autêntica “jurisdição política”, segundo o qual aparece como “ultima ratio decidendi” no Estado de Direito democrático brasileiro.
Não obstante isso, subsistem Constituições que alargam funcionalmente o papel da jurisdição para além de atribuições anteriormente desconhecidas, ora em razão do aumento de competências das Cortes Constitucionais européias- órgãos de jurisdição especializada-, ora em Supremas Cortes do Poder Judiciário- órgãos de última instância do poder judiciário- que, em sistemas de “stare decisis”, por vezes encampam para si matérias relativas ao campo político. Assim, a politização da justiça, ou a judicialização da política, pode ser fenômeno previsto pelos sistemas jurídicos existentes. Por politização da justiça ou seu revés, judicialização da política, entende-se o ingresso do poder judiciário na área da política governamental, isto é, no conjunto de matérias próprias da governabilidade e da política propriamente dita, tendo por base uma previsão normativa que propicie essa ampliação funcional.
Ordenamentos jurídicos existem, por outro lado, que não prevêem tal fenômeno. Geralmente, Constituições de tais sistemas não estipulam diretamente a ampliação do judiciário para questões políticas, embora na prática tal possa se suceder com reformas institucionais e dinâmicas processuais. Entre nós, reformas institucionais e processuais tais como a ampliação de instrumentos do controle abstrato de normas com as leis n. 9.868 e 9.882, ambas de 1999, bem como a importação de idéias “distorcidas e mal compreendidas” do direito anglo-saxônico por parte da atual jus publicística nacional, como é o caso do chamado neoconstitucionalismo, estão a acarretar a deformação do papel clássico do poder judiciário no atual sistema judicial brasileiro. Temas como bioética (3), fidelidade partidária(4) , medidas provisórias (5), comissões parlamentares de inquérito (6), dentre outros, não só permitiram o alargamento da judicialização para além de seu campo próprio, senão também a entrada do Supremo Tribunal Federal em temas específicos da política. A analise do “mérito” de tais questões levou e ainda está levando o poder judiciário brasileiro a assenhorear questões existenciais e políticas estranhas à sua natureza funcional.
Diante disso, cabe a pergunta: isso se deve a judicialização da política ou à postura ativista de nossos magistrados, sedentos por “dizer” o direito em áreas que, até pouco, não lhes cabiam manifestar-se? É um fenômeno de politização do poder judiciário ou de ativismo judicial? O que estamos vivenciando com o “novo poder judiciário” brasileiro?
Importa, diante disso, afirmar que politização do poder judiciário (7) e ativismo são dois fenômenos que, embora possam se completar, são distintos por definição. Se por politização do poder judiciário entendemos um alargamento funcional para além do jurídico rumo ao político, ativismo judicial corresponde ao papel abusivo de determinado juiz que, colocando-se para fora de seu campo de atuação funcional, passa a interferir em áreas que não lhe diz respeito. Elival da Silva Ramos afirma que “por ativismo judicial deve-se entender o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos)” (8).
Assim, ao passo que a politização condiz com a funcionalidade, com a operacionalização do poder judiciário, o ativismo extrapola esse conceito, para admitir uma invasão indevida do juiz em questões que não lhe competem. Pode, então, um sistema jurídico prever a politização do poder judiciário e não admitir o ativismo. Sim, pois se uma Constituição admitir que o poder judiciário possa analisar e julgar “questões políticas”, e um juiz dentro desse sistema assim proceder, não estará “abusando” de sua competência funcional, senão realizando aquilo para o qual fora designado pelo sistema jurídico.
De outro modo, quando o sistema jurídico ignora tal caso, ou o proíbe expressamente, há uma limitação jurídica prevista normativamente para a atividade judicial. Assim, caso o juiz “abuse” de sua condição funcional, entrando em questões que não lhe cabem, haverá o chamado “ativismo judicial”.
De qualquer modo, o neoconstitucionalismo em marcha no Brasil está a modificar os padrões normais de nosso sistema jurídico. O incentivo para uma maior judicialização da vida vem proporcionando, cada vez mais, uma “revolução” em nossos quadros institucionais. A judicialização da política está indo além do mero campo político, atingindo outras áreas da vida social. Uma autêntica “judicialização da existência humana” está a firmar-se, em contraposição aos postulados legítimos de nossa história constitucional. Até mesmo matérias como a “origem da vida”, pesquisas com seres humanos- células-tronco- estão a transformar o poder judiciário, particularmente o Supremo Tribunal Federal, em uma Corte da existência social e política do ser humano, podendo determinar, segundo seus juízos de “proporcionalidade” e “razoabilidade”, qual o início e qual o sentido da vida humana, inclusive com base em uma religião secular, nas palavras da Ministra Carmem Lúcia Antunes Rocha, para quem sua religião é o Brasil, e sua Bíblia é a Constituição (9). Claro, tudo isso com base em uma interpretação “própria” do que sejam religião e interpretação razoável!
Ora, com a crescente politização de todas as dimensões da vida social e individual, problemas antigos como, por exemplo, o velho debate acerca dos limites da intervenção do Estado ganham novos contornos, já que, se antes experimentou-se uma luta entre a liberdade e o poder, se está a experimentar, no contexto atual, a judicialização da existência, é dizer, a interferência do poder judiciário em áreas estranhas à sua função clássica.
Estamos a vivenciar um exagero: exagero decorrente da postura “ativa” do Supremo Tribunal Federal em certas áreas que lhes são estranhas. O tema da bioética, pro exemplo, demonstra a invasão de nossos magistrados em temas relativos à biologia ou mesmo à antropologia transcendental, inerentes ao homem como gênero em sua dimensão científico-religiosa. Tal “exagero” não está previsto na Constituição de 1988, nem mesmo seria aceitável imaginá-lo sem o recurso à mutação constitucional. Contudo, a atual conjuntura da magistratura constitucional, no Brasil, parte do pressuposto de que “tudo é constitucional e, assim, cabível dentro do amplexo jurisdicional do Supremo Tribunal”. Eis o ativismo velado: a “crença” de que a Constituição é uma “bíblia”, como afirmou Carmem Lucia, e, assim, correspondente à totalidade existencial da sociedade brasileira.
Se a Constituição é tudo, então não há mais área estranha para a Corte: de política, transformou-se em Soberana, podendo decidir tudo, inclusive sobre a manutenção ou não do Estado de Direito, bem como em momentos de Estado de Exceção, tal como entendera Carl Schmitt, em sua Teologia Política (10). Há um autêntico “totalitarismo jurídico”, na feliz expressão de Miguel Reale (11).
Na visão neoconstitucionalista, subsume-se um estado de total insegurança jurídica, a ser garantida não pela lei e nem mesmo pela Constituição, mas sim pelo seu interprete, por aquele que pode decidir inclusive à margem do próprio texto literal da Constituição “em nome da Constituição mesma”. Eis, como diria Hegel, uma fenomenologia do Espírito, em que a razão da história é definida pelo próprio espírito absoluto da história mesma! Analogamente, o Supremo Tribunal Federal pode inclusive modificar o “espírito” da Constituição, em nome dela mesma, a fim de fazer da vida social uma “vida constitucional”, de acordo com os padrões “constitucionais” definidos pelos membros do Tribunal. Uma ratio decidendi inteiramente voltada para a definição dos padrões morais da existência humana. Nada diferente daquilo que assistimos nos regimes autocráticos clássicos, em que a obrigação de consciência (12) é definida por algum órgão político, seja partidário ou não, responsável por mudar os padrões de comportamento da sociedade. Uma onda “politicamente correta” segundo as definições seculares de uma Corte ativista no sentido político-ideológico da expressão.
Por isso, estamos assistindo uma legítima “escatologia jurídica”, em que o juiz não aparece mais como juiz “no” Estado de Direito, mas como juiz “do” Estado de Direito, colocando-se como Soberano no hiato entre a ordem jurídica e a desordem política.
O juiz, de acordo com a visão neoconstitucionalista, é uma ativista social, não apenas assumindo funções governativas e legislativas do que acredita ser o bem comum, senão também fazendo às vezes de um profeta político, antevendo, por juízo particular, àquilo que é próprio da deliberação política nas democracias, cujos “juízos” advêm da dialética entre opiniões políticas.
Nesse sentido, o juiz ativista faz de sua “opinio juris” uma verdade histórica e jurídica incontestável, sem a intermediação do processo legislativo e governamental. Estabelece-se, aí, a idéia de que a decisão judicial é, em princípio, inabalável.
Portanto, no atual cenário, desenhado segundo falsas concepções de direito constitucional, dentro daquilo que os neoconstitucionalistas entendem por importação de alguns institutos do common law estadunidense, ou por realização da justiça independentemente das condições institucionais do Estado de Direito, está levando a distorção da separação de poderes e a aceitação do ativismo judicial como uma postura “normalizadora” das relações sociais e políticas no Brasil.
A insegurança jurídica está em marcha, não como causa institucional do Direito – o que poderia ocorrer num ambiente de politização da justiça-, mas por ocasião do abuso institucional por que estamos a presenciar, a saber, um ativismo que corrói as bases da certeza judicial e que é movido, no âmago volitivo de nossas elites jurisdicionais, por uma pretensa ideologização judicial. Com a judicialização da existência, verifica-se uma ideologização da vida social, segundo a mentalidade dos agentes da magistratura constitucional, que por suas decisões “obrigam a consciência” de nossas classes jurídicas. Tal fenômeno, que abarca o foro da consciência individual e à transforma em foro coletivo segundo o entendimento dos “agentes constitucionais”, está ocasionando a perda da imparcialidade jurisdicional em nome da “justiça”!
A partidarização e a conseqüente ideologização dos temas sociais, econômicos e políticos, sem a intermediação da deliberação popular ou mesmo das clivagens existentes nas disputas partidárias, algo inerente aos parlamentos, ou mesmo aos governos, está sofrendo não a democratização, senão a redução do espaço de decisões políticas para o fórum das decisões parciais dos magistrados que, sem o vínculo democrático, fazem às vezes de “representantes do povo”. Na verdade, mostram-se representantes de suas idéias, de seus entendimentos particulares sobre as relações entre a política e a moral, em latente destruição do Estado de Direito democrático no Brasil.
Notas:
1 – BARBOSA, Rui. Comentários à Constituição Federal Brasileira. São Paulo: Saraiva, 1933.
2 – Nesse sentido, ver TEJADA, Francisco Elías de. Derecho Político. 1ª ed. Madrid: marcial pons, 2008, p. 17 e seguintes.
3 – STF, ADIn nº 3.510-0, DF, 2008.
4 – STF, Mandado de Segurança nº 26.603-1 – DF, 2007.
5 – STF, Mc-ADIn nº 1.910- DF.
6 – STF, Mandado de Segurança nº 24.831- DF, 2005.
7 – FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do direito constitucional. 1ª ed. São Paulo: saraiva, 2009, p. 301. Interessante notar o que afirma o professor, a respeito da temática em questão: “quanto ao Judiciário, não é mais ele concebido num papel passivo- como ‘boca da lei’- mas se estimula que efetive um controle de legitimidade sobre os atos do Governo e as próprias leis. Isto se manifesta no caráter relativamente ‘aberto’ das Constituições modernas, que somam ‘princípios’ a ‘regras’. Ora, aquelas dão oportunidade a esse controle de legitimidade. Observe-se que o fenômeno apontado fragiliza a segurança jurídica. Com efeito, não mais basta para o indivíduo, ou para o próprio governante, cumprir a lei, mas fica também sujeito a princípios, cuja concentração enseja opções subjetivas por parte do magistrado. Abre-se assim espaço para a judicialização da política em geral e, sobretudo, das políticas públicas em particular. O magistrado nisto se confunde com o administrador, como o juiz constitucional- já se apontou- com o legislador. De tudo isso, decorre o perigo de que a judicialização resvale para uma politização a justiça, com tudo o que de negativo possa daí resultar”.
8 – RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. 1ª ed. São Paulo: saraiva, 2010, p. 129.
9 – A ministra proferiu voto com o seguinte teor: “a Constituição é a minha bíblia, o Brasil, minha única religião”. STF, ADIn nº 3.510, Min. Carmem Lúcia Antunes Rocha.
10 – SCHMITT, Carl. Teologia Política. 1ª ed. Buenos Aires: Struhart e Cia, 2005, p. 23. Em SCHMITT, percebemos a idéia de que a teologia política corresponde a formação de uma filosofia da história cujo sentido é definido pelo Soberano. Há, nesse particular, uma autêntica cristalização das categorias espirituais na análise sobre a fenomenologia do poder, de forma que a posição do Soberano é a representação de uma divinização secular do representante do poder político.
11 – REALE, Miguel. Teoria Geral do Direito e do Estado. 5ª ed. São Paulo: saraiva, 2000, p. 33 e seguintes.
12- A obrigação de consciência foi instituto levantado pelo Rei Jaime I da Inglaterra, no sentido de obrigar os católicos ingleses a jurar fidelidade ao rei, e não ao Papa, obrigando-os à aceitação das determinações do próprio monarca em contraste com o Bispo de Roma. Tudo isso em nome de Deus, segundo o direito divino.
Estamos a vivenciar um exagero: exagero decorrente da postura “ativa” do Supremo Tribunal Federal em certas áreas que lhes são estranhas.

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