sábado, 12 de dezembro de 2009

“...essa velhinha, essa velhota chata que vem e bate à nossa porta...”

Semelhante ao que dorme num sonho, sentia-me docemente oprimido pelo peso do século. Os pensamentos com que em Vós meditava pareciam-me com os esforços daqueles que desejavam despertar, mas que, vencidos pela profundeza da sonolência, de novo mergulhavam no sono. Não há ninguém que queira dormir sempre. A sã razão de todos concorda que é preferível estar acordado. E contudo, quando o torpor torna os membros pesados, retarda-se, as mais das vezes, a hora de sacudir o sono, e vai-se continuando, de boa vontade, a prolonga-lo até ao aborrecimento, mesmo depois de haver chegado o tempo de levantar.
Também eu estava certo de que o entregar-se ao vosso amo era melhor que ceder ao meu apetite. Mas o primeiro agradava-me e vencia-me; o segundo aprazia-me e encadeava-me. Não tinha, por isso, nada que Vos responder, quando me dizíeis: “Desperta, ó tu que dormes; levanta-te de entre os mortos e Cristo te iluminará” (Ef 5,14). Mostrando-me Vós, por toda parte, que faláveis verdade, eu, que já estava convencido, não tinha absolutamente nada que Vos responder senão palavras preguiçosas e sonolentas: “Um instante, um instantinho, esperai um momento”. Mas este “instante” não tinha fim, e este “esperai um momento” ia-se prolongando.
“Deleitava-me com a vossa Lei segundo o homem interior, mas em vão, porque em meus membros outra lei repugnava à lei do meu espírito, e me mantinha cativo na lei do pecado que está em meus membros” (Rom, 7,2). Com efeito, a lei do pecado é a violência do hábito, pela qual a alma, mesmo contrafeita, é arrastada e presa, mas merecidamente, porque, querendo, se deixa escorregar. Ah! Miserável de mim! “Quem me livrará deste corpo mortal, senão a vossa graça, por Jesus Cristo Nosso Senhor?” (Rom 7, 22-25).

(do Livro VIII, capítulo 5, das "Confissões" de Santo Agostinho)
(Título: Bruno Tolentino, “Do Enigma ao Mistério”, Dicta&Contradicta, número 01, jun/08)

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