quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Uma Descoberta Inusitada

Quis escrever uma história inventada. Criei uma personagem estranha, a quem, aos poucos, seria apresentado. Inventei uma vida, um lugar para nascer e um sonho. Era tudo fora de mim. Ou era para ser. Porque o sujeito precisava sentir e pensar para ganhar vida, para ser uma personagem de verdade, senão pareceria um fantoche e a minha história uma pura invenção. Acontece que a partir daí a história se complicou. Com o tempo de convívio passei a notar certas coincidências, reconhecendo no tal sujeito alguns traços e idéias que eram bastante familiares. Para a minha grata surpresa, em certo dia não tive mais dúvidas: vi a mim mesmo na pele daquele outro. Talvez não fosse, é verdade, exatamente aquele que costumava a andar por ai, no dia-a-dia, apresentando-se com meu nome. Talvez não fosse o homem arrumado e conveniente que meus amigos costumavam reconhecer, nem aquele que diariamente cumpria seu trabalho e retornava à casa. Mas era preciso confessar, a mim mesmo não podia enganar. De fato, eu jamais tivera total consciência da existência daquele ser dentro de mim. Todavia, as palavras o tinham trazido a vida, como se finalmente tivesse encontrado uma porta de saída para existir. Eu estava ali, em cada palavra, em cada gesto, em cada reação.

Então passei a criar outras histórias. A inusitada descoberta havia desencadeado uma seqüência de eventos até então imprevistos. Como um vício, uma obsessão, fiz passar pela porta aberta por aquele primeiro sujeito muitos outros homens e meninos, velhos, mulheres e loucos. E nesta brincadeira de descobrir outros eus, de investigar personagens e dar-lhes vida é que me perdi. Sem perceber fui aos poucos penetrando num labirinto profundo, seduzido por tantas histórias, por descobertas novas e possibilidades infinitas. Inebriado, não era capaz de perceber que a cada nova pessoa inventada, estranhamente, me enfraquecia. E segui de história em história, até que cansado e sem mais energias, sucumbi, caindo sobre a escrivaninha. Foi então que, obrigado a parar, deparei-me com meu total esgotamento. Estava esvaziado, dilacerado, como a um cadáver em aulas de anatomia. As folhas de papel se avolumavam sobre a mesa. Páginas e mais páginas, centenas de histórias, personalidades incansáveis. Mas afinal de contas, onde estaria eu? Quem afinal estava sentado naquele quarto, escrevendo aquelas folhas de papéis? Quem é que obcecado inventava aquelas vidas? Que vida dentre aquelas era verdadeiramente a minha? Como se eu mesmo fosse apenas mais uma personagem, de alguma história, que alguém inventava naquele instante, olhei-me fixamente no espelho do quarto e gritei: Mentira! Mentira!

Deitei-me na cama na esperança de me recompor. Era tarde demais. Agora eram vidas criadas, todas ferozmente reais. A cada uma dei um nome, era tarde demais. Ergui-me num salto, assustado com constatação tão absurda. Algo era preciso ser feito, antes que outros os descobrissem, antes que fossem revelados ao resto do mundo. Tomado de ira e desespero, agarrei as folhas de papel sobre a mesa e as levei até o quintal. Postas dentro de uma enorme bacia, despejei sobre elas o litro de álcool. A caixa de fósforos tremia em minhas mãos, era impossível conter as lágrimas. Risquei o palito e, como ato reflexo, soltei um grito rouco e longo, como um guerreiro que impele seu exército contra o inimigo. O fogo ergueu labaredas, tomou completamente as folhas, devorando a tinta e as letras. Estavam todos mortos. Recolhi os restos da cerimônia fúnebre, todos mortos e cremados. Era domingo. Do alto da janela do apartamento as cinzas se espalharam no ar, misturadas a poluição dos carros da avenida. E se perderam. Fui dormir cedo. Ao acordar estava recomposto. Saí pelas ruas, caminhei ao trabalho, voltei à casa. Todos me reconheceram. O mesmo homem conveniente e trivial, aquele que escolhi para apresentar ao mundo.

3 comentários:

  1. Alguma inconveniência é indispensável... Mas a sociedade nos quer dóceis, força-nos à conveniência, é cruel e esmagadora sua força, os mais frágeis rapidamente são convencidos... O que fazer? Decisões precisam ser tomadas, alguma conveniência precisa ser praticada, personagens devem ser assumidos... Os mais pacatos acabam sendo os que levam as piores contradições para casa, não raro escondem aberrações e mostruosidades por trás de máscaras comportadíssimas, trivialíssimas... "(...)-Fulano! Não diga... Ele parecia tão...(...)" Cabe-nos escolher, ser um só, ser muitos, não ser nenhum? Não sei a resposta, se é que ela existe, é preciso muita criatividade e inteligência para fugir do mais fácil, será que conseguirei? Espero que sim, creio que só pela atitude de busca já está na frente... Mas não se engane! Nem sempre tudo dá certo no final... Sem a batalha diária, tudo pode convergir para o caos...ou só para a própria trivialidade de sempre, que parece tão depressiva e desestimulante: o retrato de nossos homens cosmopolitas, muitos sonhos e aventuras acabando em uma enorme piscina amarga de lágrimas ou em um monte de cinzas em um domingo morto qualquer...

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  2. A agonia manifestada num universo de potencialidades. Nada mais angustiante do que cogitar sobre os caminhos que poderíamos tomar, sobre as vidas que poderíamos levar, sobre as existências que poderíamos ter...como fugir da conveniência que nos esmaga no dia-a-dia? Como fugir dos papéis que esperam que desempenhemos?

    Pudera eu tocar fogo nas pilhas de processos (inúteis, diga-se de passagem) que me cercam... pudera eu ter a coragem para incendiar aquilo que me afasta de meus irmãos neste momento tão difícil.

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  3. Que bom que o senhor Antônio reapareceu. Eu já tinha ido até a delegacia, anunciei no jornal, não sabia mais onde procurar...

    Mas os processos não afastam! É só uma situação nova, você vai se adaptar a ela em breve! Se bem que o fogo certamente cairia bem... Podíamos montar um esquadrão de queima de processos, taí a solução pros "nossos papéis"...

    Temos que descobrir esses papéis mesmo, não parece ser fácil, cada um tem o seu personalíssimo, vamos chegar lá, não podemos esmorecer, não podemos deixar de confiar em Deus, Ele mostrará a nossos corações!

    Assim, não vamos fugir de nada, simplesmente vamos deixar pra trás o que não queremos para ir até o que realmente desejamos.

    Vamos em frente! Para onde não sei, mas vamos em frente!

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