segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O Natal de Alfredo Corriqueiro

Novembro termina. É tempo do advento. No coração de Alfredo se renova a mesma prece. Vale de fato a pena cargo e carreira e a pequena ilusão diária de que o mundo não é, assim, tão perigoso. Quanto ao ensaio de uma rebeldia vinda de dentro ou do grito que insiste em perturbar, Alfredo, corriqueiro, pratica caminhadas, prende-se a agendas, realiza tudo na hora marcada. Afinal, há uma forma não tão traumática de carrear os dias, de organizar os medos e administrar o pensamento. O preço da vida pacata, da miséria cotidiana, que não é externa, mas nasce de dentro, de um coração ainda mais pacato e cômodo. Talvez mais tarde, quando amadurecer, ou em outra vida, se houver. Salvação nesta é difícil acreditar. No mais, devem ser histórias, lendas fabricadas pelo remorso, a vida dos santos, dos mártires e dos heróis. Eu que sou feito do puro tecido humano, não mais que ossos, músculos e pele, animados por um espírito que lhes dá vida, não posso mais que a covardia e as pequenas alegrias nascidas do bem viver. Alfredo é um homem comum de seu tempo, dividido pelo conformismo e a sede de dizer: está tudo certo, tudo no devido lugar. Não merece aspiração mais alta que o emprego, a família e um jeitinho qualquer de sobreviver. Diariamente, assume o mesmo compromisso de calar diante do espelho algo que, todas as manhãs, renova um pedido para nascer. Tal qual um ritual, ele pondera por alguns segundos e se despede, convenientemente. A loucura não é um preço que convém. O espelho não serve mais que um instrumento para a fabricação de um perfeito nó de gravata e a preparação de um penteado usual. A escolha das roupas, o café da manhã, a relação com os colegas e mesmo as cervejas depois do expediente, tudo tende ao mesmo objetivo. A vida regular e garantida, racionalmente construída sobre as expectativas e os cálculos, como deve ser. Não que Alfredo ignore os riscos, as probabilidades e os acidentes. Todavia, os possui, também, sob controle. Nem mesmo a morte o surpreenderia, suficientemente acobertado que está por completos planos de seguro: até o acaso lhe é pontual. Sobre filhos e a relação amorosa com a esposa, Alfredo é um homem não mais que normal: escolhera uma digna mulher, de beleza sensual, porém recatada, com boa formação profissional e boa remuneração. Tivera dois filhos, muito educados e inteligentes. É fiel, a despeito de pequenas escapadelas com clientes, casas de massagem, alguns casinhos, nada que não seja socialmente tolerável e mesmo desejável, num ambiente profissional. A mulher, talvez fosse o caso de comunicá-la, os filhos, mas prefere fazer às escondidas, aceitando, inclusive, o fato de que não é improvável que ela também se permita a certas aventuras. Contraprestação que está disposto a pagar em nome da manutenção de seu casamento, um tanto esfriado e desapaixonado, é verdade, depois de tantos anos de convivência. Convém aos filhos, como aos pais e aos chefes que se mantenha. Afinal de contas, nada lhe poderá ser mais seguro e confiável do que uma relação estável. Os filhos, por fim, serão úteis na velhice. Tudo somado, ponderado e minuciosamente pensado, dá-lhe a conclusão necessária para o abandono do espelho, rumo aos mesmos horários. É feliz? Pergunta a qual não se dá o luxo de conceber. Felicidade é uma dessas lendas criadas em momentos de remorsos por homens fracos e inconformados. O que há de fato é a vida. E é sobre o chão da vida que Alfredo constrói sua história. Retilíneo e comedido, não se permite a sonhos e ilusões, horas perdidas. O que o tempo lhe trouxe aproveita, o que não está nas mãos dispensa. Ardiloso arquiteto das oportunidades, é um homem bem sucedido e com um talento especial para convergir tudo ao redor em seu próprio favor. A cartilha que o mundo lhe ensina segue à risca. É um bom homem, politicamente engajado, socialmente respeitado, economicamente ativo. Cogitado para prefeito, chefe de sessão, diretor, presidente. Admirado, honrado, intitulado. É doutor em universidade estrangeira, professor em faculdade pública, digníssimo mestre e exemplo a todos os seus pares. Bom filho, mensalmente encaminha uma mesada caprichada aos pais, que só têm a agradecer. Homem elegante, freqüenta os melhores alfaiates, eloqüente, rebuscado, capaz de entreter por horas uma platéia. Um cidadão sob medida. Este é Alfredo, o homem que poderia render muitas histórias, mas cuja história está, suficientemente, contida nestas linhas. O mais são fatos sem importância, pequenos encontros, viagens, homenagens, convites, nada de tão diferente e relevante que não possa ser extraído, logicamente, de tudo o que já se narrou. É fim de novembro, tempo do advento. Em dezembro, antes mesmo do Natal, Alfredo morrerá aos cinqüenta e dois anos. Ele não sabe. E mesmo que lhe dissessem não acreditaria. A expectativa de vida prevista pelos cientistas para os homens no ano de dois mil e onze é de oitenta anos e ele confia, de fato, nas estatísticas. Além do mais, mensagens do além-chão não lhe são aprazíveis: não há espaço para tal mistério na vida tão científica e previsível de Alfredo. O homem das decisões bem tomadas e seguras terá que enfrentar, em breve, este fato tão simples e corriqueiro da vida: a própria morte. Para ele, provavelmente, em suas divagações noturnas, não mais que um fato, que causará algum transtorno à família e ao trabalho, mas que logo passará, segurado que está pelos planos completos, como se disse. Mas aos cinqüenta e dois? Talvez, seja surpreendido quando perceber a inevitabilidade de seu destino. Na certa, ponderará as razões, calculará, rapidamente, os erros e acertos, sopesará as perdas e ganhos e, nos segundos que lhe sobrarem antes do suspiro final, chegará a uma última conclusão. Racionalmente perfeita e discreta a conclusão que lhe dará as forças para se decidir e se entregar, passo a passo, em segurança, ao seu leito definitivo. Todavia, tendo sob controle até o último segundo de vida, Alfredo fechará, talvez, os olhos, diante de sua derradeira cena. Quando, num ato de loucura impensada, saltará do chão em que esteve preso e libertará, porventura, um grito profundo. Sozinho numa sala escura, em que nada persiste, apenas o grito, ele estará pronto diante do mesmo matinal espelho. O corpo, corriqueiro, falecerá para sempre no chão duro e imóvel, e Alfredo se soltará, finalmente, seguindo o eco de seu ato de misericórdia. Talvez, então, não se pode saber, já será véspera de Natal.

2 comentários:

  1. Seria a véspera do nascimento do Sr. Corriqueiro? Tomara que sim, espero que para cada um de nós também... Que bom seria se pudéssemos nascer todos os dias! A vida pode ser um bom aprendizado, quem sabe Deus tenha piedade de nós e só nos chame quando realmente estivermos prontos, seja lá o que isso quer dizer... Uma verdade eu sei, Deus é bom! Uma certeza eu tenho, não quero ser o Sr. Corriqueiro! Mas quem consegue tudo que pretende? Resta-me depositar minhas esperanças nas mãos desse Criador bondoso...

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  2. Fiz umas pequenas alterações no texto (principalmente no final). Além de algumas correções. Acho que ficou melhor assim... se é que mudou alguma coisa... Depois volto para dizer algo sobre o comentário.

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