_ Sabe, Gabriel, uma das coisas que mais me intriga nos seres humanos é essa tal aposentadoria?
_ Aposen... o quê?
_ APO-SEN-TA-DO-RIA.
_ Nunca ouvi dizer, Rafael.
_ Ora, mas é algo muito falado, pelo menos entre os humanos...
_ Mesmo assim, acho que nunca tinha ouvido antes.
_ Bom, talvez entre nós o tópico apareça em outras roupagens, você bem sabe que divergimos na nomenclatura de quase tudo com relação aos homens.
_ É, pode ser isso.
_ Enfim, trata-se de um acontecimento muito curioso, esta tal aposentadoria. Veja bem, todos aqui sabemos que uma das aflições mais constantes no espírito humano é a incapacidade crescente para escutar o chamado Dele, não é?
_ Sim, eu vejo isso sempre, é fato corriqueiro, Rafael.
_ Mas também sabemos que muitos acabam por atender ao chamado, ainda que de forma inusitada. Eles embarcam horas e horas do dia em afazeres estranhos, recebendo por isso um instrumento que lhes permite a sobrevivência, mas que também atrai o pecado de forma assustadora.
_ Ah, sim, conheço bem o tipo. Não têm a menor consciência de que algemam as próprias mãos. Certa vez eu cuidei de um deles que agregou uma quantia exageradamente grande dessa coisa e depois, quando a perdeu, simplesmente...
_ Espere um pouco, Gabriel, desculpe-me interrompê-lo, mas não quero perder o foco. Sei que suas histórias são bastante empolgantes e que em seguida traria uma lição de altíssimo valor. Porém, deixe-me terminar o raciocínio, e depois voltamos a isso.
_ Pois não, meu caro, a paciência é a maior das virtudes.
_ Onde eu estava mesmo? Ah, sim, as horas perdidas. Os humanos, dessa forma, embarcam numa atividade perigosa e de frutos potencialmente venenosos, mas, ao mesmo tempo, aproximam-se do chamado Dele.
_ Os dois lados, sempre unidos.
_ Sim, sim, mas aqui a contradição é digna de nota. Pois se o caminho que leva à perdição igualmente traz a observância do chamado, então, o perdão pode ser alcançado mais facilmente, não acha?
_ Pode ser, precisaria meditar sobre a questão, mas provisoriamente aceito seu argumento.
_ Então, concordamos que o labor dos homens, muito nocivo de uma parte, revela no seu reverso a quase aceitação dos desígnios do Alto, correto?
_ Sim, acredito que seu pensamento é claro e verdadeiro.
_ E é neste ponto que entra a aposentadoria.
_ Explique-me melhor, pois não percebo onde deseja chegar.
_ Veja bem, após um breve período dedicado a essa tarefa de esforços mundanos, os homens rebelam-se contra sua obra e deixam de cumprir as obrigações que haviam assumido. Todavia, permanecem angariando o suco da empreitada, e entregam-se sem pudor e sem demora a um banho de delícias, de regalos.
_ Compreendo. E isso é a aposentadoria?
_ Exatamente, é a consagração dos efeitos terrestres do dito trabalho, mas sem os benefícios do alto, porque a vocação deixa de ser atendida.
_ Que tenebroso! Deve ser coisa do Inominado, com certeza que é!
_ Não sei, não sei, talvez o seja; perguntaremos depois a Miguel, mas antes me deixe terminar.
_ Sim, é claro, pensei que já tivesse acabado.
_ Apenas mais um minuto, meu amigo. O mais fantástico de tudo é que há uma grande luta, intensa e incessante, feita por cada um deles para que esse momento chegue o mais rápido possível, como se houvesse um desejo de recolher o fruto mundano antes mesmo de aproximar-se do chamado.
_ Agora entendo, muito interessante.
_ E, mais paradoxalmente ainda, eles...
_ Eu não gosto de paradoxos, lembram-me de guerras passadas, que até hoje não consegui compreender muito bem.
_ Foco, Gabriel, foco!
_ Perdão, meu amigo, às vezes me perco no pensamento.
_ Para sempre perdoado. O paradoxo, a contradição estranha do fenômeno, está na força que atua contrariamente a esse desejo.
_ Bom, deve ser nossa, ou de nossos aliados.
_ Nada disso, Gabriel. Quem hoje afasta este tempo de deserto, de aridez vocacional, e de efeitos descontrolados, é o Estado!
_ Não!
_ Sim, o Estado, ele mesmo, o Estado vem criando embaraços para os humanos atingirem a aposentadoria, e acaba protelando os tempos escuros.
_ Curioso, sem dúvida, curioso.
_ Não sei o significado de tais absurdidades. Talvez Miguel nos ajude...
_ Com certeza algo haverá para dizer, sempre há. Agora, desculpe-me a mudança brusca, querido Rafael, mas peço para iniciar minha narrativa.
_ Pois diga, amigo, eu falei e agora devo escutar.
Boa! Podia ser o primeiro ato da peça! Os dois arcanjos seguros, como se estivessem voando, com suas asas... E falando sobre a estranha relidade humana... Acho que até podia ser um pouco mais longo o diálogo... Com boas pitadas de bom humor...
ResponderExcluirAugustíssimo João,
ResponderExcluirque idéia sua essa Saga, uma Saga de fôlego!
Dá muito pano pra manga, uma verdadeira peça de teatro.
Os méritos são todos seus, meu amigo, os demais caminhantes só estamos coadjuvando...
Que nada! Colocou na caminhança já virou coletivo... A caminhança é nossa caminhada no plural. Se não desejasse que os outros dessem suas sugestões e até virassem coautores, não tinha blogado os textos. Sintam-se à vontade! O impulso foi meu, mas não tira os méritos da criatividade de cada um, aliás, até enriquece o texto!
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