O professor de processo civil se mete a falar em Verdade (assim mesmo, com letra maiúscula). Gaba-se de ter sido monitor de física no colégio, acreditem, um advogado bem sucedido, para contrariar a máxima de que advogado não entende nada de cálculos. Um racionalista nato, amante da lógica. Eu penso: Ora, professor, não se arrisque em perigo tão grande, guarde o entusiasmo para a hora certa, não se empolgue, por favor. Está certo que o senhor faz um espetáculo com seus raciocínios aplicados a técnica e deixa os confrades das humanas no chinelo. Mas estará pronto para um salto tão grande? O mestre insiste, quer dar o seu parecer. Com as mãos sobre a pilha de livros editados no último ano, oferece aos alunos a sua opinião autorizada. A verdade não existe. Sim, de fato é difícil reproduzir os fatos no processo, então buscar... Não! Você não me entendeu. A verdade não existe. Sim, entendi. Em nome da verdade muitos homens já padeceram tormentos para confessar o inconfessável, então... Não! O que digo é que a verdade não existe. É, acho que não entendi. Explique-se. Uma vez deparei-me com a epígrafe de um livro, um livro que não li de João Ubaldo Ribeiro, foi um êxtase para mim. Êxtase? É esta a palavra? Sim, dizia: “o segredo da verdade consiste em saber que não existem fatos, só existem histórias”. Que beleza! A frase é bonita, tem efeito. Mas você disse que não leu o livro? João Ubaldo... “Povo Brasileiro”... Não sei que pito toca, também nunca li. Mas... E se for uma ironia? Não é, claro que não é, evidente que não é. Tudo são histórias, sabemos lá o que aconteceu? Nada mais existe, além de histórias, versões, relatos parciais de gente humana, com a criatividade e a indecência de cada um. Verdadeira é a história que convence, no processo ou na vida, a peso de pau, de argumento ou de autoridade constituída. E o convencimento, ora, ora, o convencimento é um ato de fé: ou se acredita ou não, simples assim. Já diriam os Titãs, “não há amor, só há provas de amor”. Não há amor? Que maluquice é essa? Tudo são histórias? Tudo, tudo, tudo! Só histórias?! Inclusive eu e você, a cadeira em que você se senta, o nascer do sol desta manhã, a minha dor de dente, tudo, tudo mesmo? Tudo. Só histórias. Síntese perfeita. Veja bem. Se de fato o convencimento é um ato de fé, como de fato é, então, simples concluir que a verdade, igualmente, é um ato de fé: ou se acredita, ou não. E fé, todo mundo sabe, é a crença que cada um carrega no coração. Não há discussão, além do dever de respeitar e conviver. Minha nossa, você vai longe, difícil acompanhar. Eu avisei, ninguém me ouviu. A tudo quer dar um tratamento processual, mete-se a falar de coisas além, muito além da disciplina estudada. Por quê? É a pergunta que me faço, inconsolado. Olho ao redor, alguém o escuta, prestaram atenção? Terei eu mesmo que responder, que continuar a refutação? Por onde? Chateação, deve ser a ordem do mundo colocando minha fidelidade à prova, ou o meu orgulho querendo aparecer e dar sinal de pedante sabedoria. Por onde? Ele é o professor, eu o aluno. É com ele a opinião cientificamente autorizada, comigo só os ouvidos, a caneta e o papel: anote! E continua... Sim, respeitar e conviver. Veja bem. O sujeito escolhe a fé que quer ter: espiritismo, umbanda, candomblé, católico ou judeu. Cada um na sua. Sendo possível, inclusive, misturar, por que não? O sujeito que sabe de si. Pois há no Brasil, pense na Bahia, muitos católico-espíritas freqüentando o candomblé... Ora, ora. O sujeito vai, o sujeito gosta, o sujeito segue. Quem vai dizer que não? Igualzinho a verdade. Eu, por exemplo, acho uma beleza tudo isso, muito bonitas as manifestações artístico-religiosas. Justamente eu, que não acredito em nada. Isto é o respeito. Em nada? O senhor se esqueceu de citar a tolerância... É verdade! Acho que agora você me entendeu... Verdade? Não fale em verdade, professor, vai causar confusão. Concorde ou não. Mas em nada, nada mesmo? Nada, nada, nada! Só histórias. Pois eu acredito que o senhor acredita em algo sim: o senhor acredita no senhor mesmo, e isto é um fato. É verdade... Quer dizer, pode ser... Acredita, também, que tudo não passa de opinião, sendo que umas opiniões valem mais do que as outras, digo, convencem mais do que outras? Convencimento... É isto, isto mesmo, você, finalmente, me entendeu. Entendi? Bem, então, seguindo o raciocínio, a opinião de um professor é mais verdadeira que a de um aluno? Não, eu não disse isto. Que arrogância é esta? Mais autorizada, então? Não, eu falei em respeito, principalmente, em respeito e tolerância. Jamais afirmaria que a minha opinião vale mais ou é mais autorizada que a de um aluno. Isto afronta, claramente, a isonomia. Não ousaria, não ousaria... Isonomia? Ah, então está certo, professor! Agora acho que entendi, compreendi tudo perfeitamente... Tudo está claro como os fatos! Quer dizer... Ah! Deixa pra lá...
É duro aguentar alguém falar uma bobagem destas em nome da lógica. Comecemos pela lição primeira: o princípio da identidade. Uma coisa é ela mesma e não outra. A verdade é verdade ou mentira? Pronto, matei o professor.
ResponderExcluirMas, tudo bem, às vezes fica difícil entender, e como o mestre é bem didático em outros terrenos, concedo maiores esclarecimentos.
Para que uma coisa seja, ela tem que o ser verdadeiramente, senão não é. O professor diz que a verdade não existe, mas diz isso de verdade ou de mentira? No primeiro caso se desmente, no segundo, apenas mente.
Eu não sei, mas quase não consigo acreditar que um sujeito que afirme dominar a lógica não perceba que a negação da verdade simplesmente não faz sentido algum, pois toda e qualquer afirmação, todo e qualquer ato de conhecimento, ou, enfim, tudo, nada menos do que tudo depende da verdade.
Como diria Antonio Machado: "La verdad es lo que es, y sigue siendo verdad, aunque se piense al reves".
Sugiro outro título ao seu texto, fiel Miguel: convite à loucura...
Não podemos levar a sério esses disparates, não podemos conceder o mínimo respeito a tamanho absurdo, não devemos prestar atenção alguma a meras verborragias vazias, que nada dizem, mas que apenas atormentam o ar com vibrações inúteis, vindo a se instalar em nossos ouvidos, contaminando nosso coração e roubando nossa inteligência.
Mas diga pra ele: Professor, eu entendi perfeitamente, mas o senhor não entendeu nada.
Esse aí só leu livros de processo civil e nada mais. Se especializou tanto que perdeu noção do resto, o mundo se tornou processo civil, e acabou enlouquecendo, perdeu o juízo, já não vê mais nada sem ser pela bitola estreita adquirida.
ResponderExcluirSó acrescento um item: Tudo que foi dito é parafraseado dos livros do Professor Fredie Didier (Proc. Civil) e do Aury Lopes (Proc Penal), inclusive a passagem de "Viva o Povo Brasileiro".
ResponderExcluirAcho que esse professor sou eu...
ResponderExcluirAbraços.
Fredie