quarta-feira, 30 de setembro de 2009

De cigarras e cigarros

Cigarra, cigarro; cigarra, cigarro.
Cigarra que pia, cigarro de palha;
Cigarra de dia, cigarro que falha.
Cigarra, cigarro; cigarra, cigarro.
Coff coff coff, cigarro que mata;
Cigarra que pia, canta e fala.
Coffee coffee coffee, e cigarro – sim!
Cigarra fala, canta e pia, assim:
Trim tru, trim tru, tru tru;
Fumaça, cigarra, fumaça, cigarra.
Acabou o cigarro! Ó governador!
Mas a cigarra fica, sim senhor!
Se agarra cigarra, segura o cigarro.
Ah, já foi! Sem cigarro, cigarra.
Ci, ci ci, e se, e se, cigarra?

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Cicici...



Que vontade de falar um monte de coisas! Engraçado que um acaba puxando o outro e tudo caminha, como num bom e velho trem. As outras coisas da vida hão de ser assim também, como já dizia um outro, vamos juntos... Animado por esse espírito de solidariedade, aceito o julgamento severo de Pedro, defiro a pretensão de Antonio e, assumindo o principal papel de um juiz trabalhista, homologo a transação, mas antes ouça-se o Parquet, pois a cigarra...ora, a cigarra tem a poesia no sangue!

Apelo à Dona Cigarra

Apelo para quinta emenda! E tratando-se de falha miúda, conforme prevê a Lei dos Miudinhos Criminais, proponho a composição. Porque digamos que eu esteja com bastante crédito neste blog. Sendo assim, ofereço uma cesta de frutas, a figura de um bobo (ou seria um palhaço?), mais meia dúzia de poemas variados da literatura universal. Em troca, a absolvição completa. Ah! E uma promessa como medida alternativa: que os senhores Antonio Carlos, João Augusto, Pedro Xavier e Miguel Távola, inclusive, procurem, nos próximos dias, a senhora cigarra que anda a cantar nesses primeiros dias de primavera na árvore mais próxima e acompanhem-na em sua cantoria. A tarefa é simples. Sugiro violão ou pandeiro, para os mais populares. Dizem que acordeon casa bem com o timbre da senhorita. Se metais, apenas os mais graves. Mas nada que proíba qualquer experimentação. Para os clássicos, o bom e velho piano. Mas, atenção: os senhores devem ir à cigarra, e não o contrário. Sob a árvore que ela escolher. E que a apresentação não dure menos de duas horas (foi a sugestão do sábio bobo que consultei, para a profilaxia da doença concursal). Sem mais, firmo o presente acordo e envio-o à homologação.

Sabedoria milenar


Com a paciência que lhe era peculiar, dizia minha avó em sua língua nativa "As pessoas comportam-se como o trigo em campo aberto. Quando este está pleno de grãos, encontra-se curvado. Quando vazio, está sempre de pé".

Pretendia ela dizer que os arrogantes, desprovidos de conteúdo, estão sempre com a cabeça erguida, proferindo bazófias e fanfarronices, vangloriando-se de um conhecimento que, não raro, não possuíam. Os sábios, estes sim, externavam a humildade que advém daquele que tem absoluta consciência da vastidão do conhecimento, não obstante tenham atingido certo amadurecimento intelectual.

Este era o comentário em resposta às minhas reclamações quanto ao ambiente da faculdade..."Quanta sabedoria!", dizia-me, maravilhado com aquilo que apenas pude compreender depois de velho, já que não conhecia o idioma em que o provérbio era expressado...

Aos poucos me dei conta do quanto estes provérbios estão impregnados na cultura do oriente, e do quanto ainda são atuais, não importa quanto tempo tenha passado.

Ao momento atual, certamente ouviria "Se cair sete vezes, levante oito". Ou ainda, "Após a tempestade, a terra endurece", como quem diz que as dificuldades moldam o caráter.

Sabedoria milenar... voltemo-nos aos sábios...


Contestação

Intimado de uma injusta (?) acusação, Antônio Carlos aqui se apresenta para declinar sua justificação. E o faz em peça escrita, tamanha inaptidão construída pelas horas de estudo concursal, cujo resultado mais evidente é a incapacidade para a prosa e a debilidade social.

Em consequencia de tamanho estudo, mal consegue conversar. Aborda pessoas na rua e nada tem sobre o que dialogar. Assuntos? Quais? Nem a todos interessa a "
tipicidade conglobante" que ora está a devorar.

E agora? O que fazer? O diálogo é um dos pilares do bom viver... Se nada tem a compartilhar, como deveria proceder? O resultado, prestem atenção, é livrar-se dos livros e de toda distração. Verdadeiro mal que nos está a consumir, outro destino não merece a não ser o de se esvair.

Isto posto, julgando-a procedente, termina esta defesa, em forma de Repente.
E nesta hora, sem alegar outro fundamento, pede aos verdugos que lhe dê deferimento.

Julgamento

_ Eu protesto, Excelência! Estes homens não são culpados de desídia. Apenas foram engolidos pelos afazeres diários, neste desbravar da selva escura chamada por alguns de concurso público.
_ Excelência, não lhe dê ouvidos. Já se passaram dias desde a última manifestação de vida de tais rapazes, que tudo tem à sua disposição. Antigamente, homens e mulheres eram obrigados a caminhar por longas veredas até ter com os compadres. Faziam sacrifícios de toda ordem para poderem desfrutar da mútua presença. Estes garotos, com toda a tecnologia cibernética, com o poderio interminável dos cabos e dos satélites, com esta avalanche de descobrimentos científicos a tudo facilitar, ousam vacilar e deixar os companheiros à sua própria sorte, presos a um isolamento perverso. Todos são culpados e merecem a condenação. A revelia está configurada e nada mais resta do que lhes sentenciar.
_ Ora, mas Excelência, é preciso compreensão. Há muito o que fazer, folhear livros, rabiscar cadernos, decorar númerosos artigos e recitar conceitos. Não se pode exigir tanto em tais ocasiões...
_ Hahaha, está vendo Excelência? A defesa não passa de justificativas vazias, de ecos do desespero. Quem não tem para si os compromissos, as tarefas? Nada disto pode afastar o dever de comparecer e de compartilhar.
_ Mas não é isto, Excelência. É que...
_ Basta! Já ouvi dos doutores o suficiente. A balança não pende muito para quaisquer dos lados. Sendo assim, que se dê mais tempo para que os réus Antônio Carlos, João Augusto e Miguel Távola venham a esta Corte Suprema. Saem daqui intimados o defensor Pedro Xavier e o acusador Aiatolavo. É como decido.

Um corvo preto no céu branco

Um corvo preto no céu branco. Uma nuvem sem fim faz do céu branco. E um corvo preto voando...
Corvo preto não é coisa boa. Dizem que os corvos estão ligados à morte. Quando um corvo chora, alguém morre. CORVO, palavra estranha, lembra cova e lembra corpo. CORVO, palavra muito estranha.
O grunhido que o corvo faz nada tem de canto. Parece um engasgo, uma afronta, uma expressão de desprezo. O pio do corvo é muito estranho.
As asas do corvo são pretas, todas as suas penas são pretas. São pretas as suas pernas e também as suas patas. Os olhos do corvo são inteiramente pretos e seu bico, mais preto ainda. O corvo é inteiro preto. CORVO: palavra estranha, muito estranha.
Tem dias que faz um frio triste e que o céu é todo branco. Parece que uma nuvem dominou o mundo, roubou o Sol e se espalhou por toda parte, uma nuvem branca, mas sem luz, um branco sem felicidade. É mais gelado quando o dia é assim, de céu branco, de nuvem branca pairando sobre todas as cabeças. Tudo fica sem cor, tudo fica igual.
Coisa estranha, coisa mais estranha o que me aconteceu. Estava sem vida , perambulando no dia frio, quando ele surgiu tão belo! Lembrei da poesia, da música e do amor, daquele contraste gostoso, que transforma nosso sorriso, nosso sabor. Nada extravagante, nem foi preciso cor. Um corvo preto no céu branco.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

À procura dos sábios

Para onde foram os sábios, aqueles tranqüilos senhores imunes à perturbação, assentados na paz do saber, no trono de um conhecimento suave e sem tremores? Por que diabos extinguimos tais anciãos, estes seres em quem podíamos confiar, estes homens que nos revelavam um mistério de paz e doçura?
Ia-se até o oráculo com perguntas, mas não se viam rugas em sua testa, não se via acelerar a respiração, nem roer de unhas ou mexer de pernas. Nada disso. O santo apenas balançava lentamente a cabeça, num gesto de compreensão, matutava um pouco, e, como sem movimentar músculos e quase sem agitar o ar, balbuciava verbos magníficos, palavras caídas do céu, que eriçavam a beleza dos enigmas mundanos até o mais longínquo altiplano, onde nosso sorriso não passa de mais um verso na poesia de uma terra feita de pura verdade.
Ai, mas que sonho bom, que dias tão ensolarados, nem sei mesmo se os sábios existiram, se são mitos, história ou estória, ilusão ou paixão, esperança ou tempo perdido. Sinto falta deles, sem os ter conhecido.
Às vezes fico cansado desta gente verborrágica, que não segura a matraca para disparar disparates. Queria perguntar ao sábio o que fazer diante de tão besta gente, que tudo culpa aos outros, ao capitalismo, às elites, ao neoliberalismo (se alguém souber o que é, por favor, mande um telegrama), à discriminação, ao plano econômico, blá blá blá. Quanta falta de imaginação e de pudor!
Ouvi uma mãe contar a triste história dela e de seu filho, que veio a entrar para as drogas e descambar para o crime e ser aprisionado, em prisões e no desespero. Chorei com ela e com sua sofrida luta. Depois de suas palavras, nada ouvi sobre o descaminhar da juventude, a falta de rigor na educação, sobre os malefícios das drogas, a irresponsabilidade da família e dos amigos, a falta de amor. Nada, absolutamente nada, a não ser que o governo isto, a escola aquilo, a polícia também aquilo outro e a sociedade mais um tanto.
Depois, um juiz de toga antiga contou de sua vida fora dos tribunais. Aprendeu a amar desde cedo e conseguiu ser amigo dos negros, dos pobres e dos doentes, das crianças abandonadas e dos que dormem nas praças. A todo momento, apontava o dedo para o próprio peito e alertava para sua imperfeição, contando como foi desbravar o cipoal de sua alma.
Mas o juiz não estava tranqüilo, não estava em paz. Sim, parecia até ser feliz, mais do que a média, talvez. Só que não era o sábio, não, não se parecia com aquele senhor imperturbável, de serenidade sólida e coração macio. Gostei de conhecer seu exemplo, de compartilhar seus sentimentos. Porém, nada de grande encantamento, de procurar seguir, nenhum ímpeto de discípulo. Aquele sujeito era como eu, quem sabe melhor do que eu, mas não deixava de ser assim miserável, como sou e somos.
Parece que estamos esperando algo acontecer e este algo não aparece. Teima em ficar na espreita, atrapalhando nosso sossego, não vem nem vai, não chega nem sai. Deve ser a pós-modernidade... Piada sem graça. Coisa mais desnecessária inventar palavras para dizer que simplesmente não sabemos o que está havendo. Os sábios fazem muita falta.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Bobagem

Aqui estou, o Direito tem me deixado tão esperto que não consigo mais ter qualquer inspiração de um simples idiota, vai conseguir explicar essas coisas... E é pura verdade! Quem sabe eu acorde desse sonho em que a realidade mais concreta me meteu, quem sabe eu acorde para voltar a sonhar como os mentecaptos. No entanto, também acredito que um bobo possa se formar a partir da área jurídica, ainda não estou convencido se na área jurídica (risos). Ao menos teríamos esperança... A tarefa não é fácil, é preciso fugir de muitos, talvez da esmagadora maioria, de maus exemplos que estão por aí. O pior exemplo nem é notado, é travestido de qualidade, creio que é o arrogante, aquele que parece ter nascido para autoridade. Será? Sempre tive os sábios por humildes, a verdade é seu único argumento, preferem ser bobos...

Das Vantagens de Ser Bobo (Clarice Linspector)

O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando." Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia. O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski. Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu. Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?" Bobo não reclama. Em compensação, como exclama! Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz. O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem. Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas! Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

12 de setembro de 1970

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Um Encontro

Não sei se fui ao seu encontro ou se ele é que veio ao meu socorro. Falamos pouco, muito pouco. Eu o admirei, ele se acanhou. Engraçado acanhamento, porque costumava ser do tipo vaidoso. Depois sorriu e murmurou algo que não compreendi. Antes de partir, deixou em minhas mãos um papel em branco e uma pena. Depois sumiu.
Foi como numa tarde, numa cidade mineira, em que uma velha senhora tocava piano em seu fogão e afastava o avental para tirar poemas escondidos numa cesta de frutas. Depois, fechava os olhos, como se sentisse algo nas palavras saídas da sua boca, inclinando levemente a cadeira de balanço. Natural, explicava a poesia e a vida, falava mal das escolas e dos governos, e insistia: Sejam felizes! Por fim, muito prática, explicava o caminho mais curto ao visitante, dava benção como se o conhecesse desde sempre e dizia: Vai sim a Cordisburgo!
Outra vez, um senhor gordo e bem humorado caminhava comigo pela noite de uma capital, quando, inevitável, encontramos a rua dos inferninhos. Entramos em silêncio no território das putas. Braços, bundas, quadris, corpos retorcidos, insinuando olhares, oferecendo preços. Eram apenas putas, nada além de putas, eu insistia. Mas pediu ao garçom um guardanapo, e entre copos de cerveja e batidas de samba, disse-me: Nunca desista Dela! Nunca se negue a Ela! Depois, entregou-me o papel em que registrou o que Ela acabara de lhe soprar:
.
.
Balada do mangue

Pobres flores gonocócicas
Que à noite despetalais
As vossas pétalas tóxicas!
Pobre de vós, pensas, murchas
Orquídeas do despudor
Não sois Lœlia tenebrosa
Nem sois Vanda tricolor:
Sois frágeis, desmilingüidas
Dálias cortadas ao pé
Corolas descoloridas
Enclausuradas sem fé,
Ah, jovens putas das tardes
O que vos aconteceu
Para assim envenenardes
O pólen que Deus vos deu?
No entanto crispais sorrisos
Em vossas jaulas acesas
Mostrando o rubro das presas
Falando coisas do amor
E às vezes cantais uivando
Como cadelas à lua
Que em vossa rua sem nome
Rola perdida no céu...
Mas que brilho mau de estrela
Em vossos olhos lilases
Percebo quando, falazes,
Fazeis rapazes entrar!
Sinto então nos vossos sexos
Formarem-se imediatos
Os venenos putrefatos
Com que os envenenar
Ó misericordiosas!
Glabras, glúteas caftinas
Embebidas em jasmim
Jogando cantos felizes
Em perspectivas sem fim
Cantais, maternais hienas
Canções de caftinizar
Gordas polacas serenas
Sempre prestes a chorar.
Como sofreis, que silêncio
Não deve gritar em vós
Esse imenso, atroz silêncio
Dos santos e dos heróis!
E o contraponto de vozes
Com que ampliais o mistério
Como é semelhante às luzes
Votivas de um cemitério
Esculpido de memórias!
Pobres, trágicas mulheres
Multidimensionais
Ponto morto de choferes
Passadiço de navais!
Louras mulatas francesas
Vestidas de carnaval:
Viveis a festa das flores
Pelo convés dessas ruas
Ancoradas no canal?
Para onde irão vossos cantos
Para onde irá vossa nau?
Por que vos deixais imóveis
Alérgicas sensitivas
Nos jardins desse hospital
Etílico e heliotrópico?
Por que não vos trucidais
Ó inimigas? ou bem
Não ateais fogo às vestes
E vos lançais como tochas
Contra esses homens de nada
Nessa terra de ninguém!
(Vinícius de Moraes)

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Caminho, Caminhão

Segunda-feira. As palavras tomam um rumo estranho e com elas as mãos e os pés. Tudo parece estar mergulhado em revogações tácitas, anulabilidades, princípios lógicos, procedimentos sumários, legalidades jurídicas. O único diálogo no mundo é o das defesas e acusações de um tribunal garantido por um juiz imparcial. È preciso conhecer bem os detalhes da legislação, os meandros da interpretação sistemática, a esperteza do examinador. O olho quer escapar, vez ou outra observa livros de poesia na estante, mira a janela com o céu azul de primavera. Mas pacientemente retorna a leitura ácida, ao compromisso assumido.
Ah, vontade de perder-se junto aos bois, naquele belo estouro de boiada narrada pelo poderoso João do sertão. Adentrar pelos labirintos das palavras inventadas e mais verdadeiras que qualquer outra jamais falada. Palavras saborosas, ricas, que desdobram o coração da gente, expandido, horizonte largo, raiz profunda. Ou encantar-se com o grito do salmista, com sua trova de alegria e milagre, amolecendo nosso coração de pedra e conduzindo a fé, apenas com palavras, à beira da pele extravasada pelos olhos.
Certo dia fui surpreendido por uma estranha experiência. A sala cheia de gente (olhavam atentos à explicação), enquanto eu, seguro e cheio de razão, narrava a disciplina jurídica. Num instante, percebi que havia me perdido nas palavras, como se algo dissesse tudo aquilo por mim, a boca fora de controle, palavras estranhas saindo pelos lábios, o pulso descontrolado escrevendo, escrevendo no quadro um emaranhado de esquisitices. Para disfarçar dei as costas à sala, e deparei-me com o quadro repleto de chaves, classificações, definições. Jamais aquilo pareceu tão ameaçador e perigoso. Vontade de correr pela rua ou, pior, vontade de rir, de gargalhar daquela maluquice. Quando retornei aos alunos, ainda fixos em mim, era como se soubessem o que acabara de ocorrer. Era como se houvessem perdido a referência dos meus olhos que diziam: apesar de tudo, da dificuldade em compreender o sistema, isto é realmente importante e fundamental, esforcem-se. Não! Já não viam em mim a mesma segurança. Multiplicavam-se os olhares de interrogação, como se exigissem uma explicação, porque afinal de contas o que eu fazia ali? Era como se eu tivesse perdido o controle da situação e confessasse, de peito aberto, que eu mesmo não podia responder a tal indagação. Medo de revelar uma verdade, de perder definitivamente o controle, de gritá-los: Dane-se isto tudo! Não percebem! Por sorte, respirei fundo, caminhei até o bebedouro da sala, tomei um copo d’água e recuperei meu estado normal. Novamente o código sobre a mesa pareceu-me bastante natural e triviais todos os conceitos expostos no quadro. Meus olhos novamente dizendo: Acreditem! Acreditem! O Direito!
Não é uma mera coincidência que o abandono deste blog ocorra precisamente quando mais precisamos mergulhar na linguagem técnica das apostilas e livros resumos. Se fossemos médicos também estaríamos perdidos em paredes celulares, reumatismos, fórceps, quadros letárgicos, doenças crônicas, internações urgentes, procedimentos, sulfatos, impulsos nervosos. Se engenheiros, em argamassas, cálculos estequiométricos, probabilidades, resistência dos materiais, dilatações, vigas mestras, andaimes, inequações de quinto grau, parábolas geométricas. Palavras feias, pobres, rígidas, realidade técnica e dura. Porque estive pensando: na vida vivida, a técnica é um detalhe tão pequeno, fica ali, reservada ao seu lugar, espremida no seu tamanho. Nada além. No dia-a-dia, entendem. Ela surge espontânea, vez ou outra é preciso consultá-la. No mais das vezes participa coadjuvante. Porque afinal de contas, o que move mesmo médicos, engenheiros e juristas é o coração, que técnica nenhuma dá conta de explicar.
Por isso, que sirva de consolo, neste texto tão autobigráfico, o fato de que esta pobreza de espírito vai passar. As apostilas vão ser queimadas, junto com livros resumos e a dominação das palavras sórdidas e vazias. Vai ser grande o dia em que vamos renegar toda classificação inútil, toda opinião meramente divergente, toda tentativa de instrumentalizar o conhecimento. Não posso continuar a viver sem estar apoiado neste ponto do horizonte que me diz, com precisão, que o ofício que eu abracei não tem absolutamente nada com esta baboseira que cresce sobre a minha mesa de estudo. Afinal de contas, o mundo doido tem dessas coisas, estupidez inventada, o mundo limitado. Temos é que saber ver o caminho e, diante da pedra, um belo chute ou, se há preguiça, desviar à esquerda ou à direita, mas sempre em frente. Apenas uma pedra, feita de palavras toscas, uma pedrinha à toa. O caminho, caminhão, eta caminho bão!, feito de preciosa direção, diretinho para o centro da poesia mais bela, jamais escrita. Eta poemão!