quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Caminho, Caminhão

Segunda-feira. As palavras tomam um rumo estranho e com elas as mãos e os pés. Tudo parece estar mergulhado em revogações tácitas, anulabilidades, princípios lógicos, procedimentos sumários, legalidades jurídicas. O único diálogo no mundo é o das defesas e acusações de um tribunal garantido por um juiz imparcial. È preciso conhecer bem os detalhes da legislação, os meandros da interpretação sistemática, a esperteza do examinador. O olho quer escapar, vez ou outra observa livros de poesia na estante, mira a janela com o céu azul de primavera. Mas pacientemente retorna a leitura ácida, ao compromisso assumido.
Ah, vontade de perder-se junto aos bois, naquele belo estouro de boiada narrada pelo poderoso João do sertão. Adentrar pelos labirintos das palavras inventadas e mais verdadeiras que qualquer outra jamais falada. Palavras saborosas, ricas, que desdobram o coração da gente, expandido, horizonte largo, raiz profunda. Ou encantar-se com o grito do salmista, com sua trova de alegria e milagre, amolecendo nosso coração de pedra e conduzindo a fé, apenas com palavras, à beira da pele extravasada pelos olhos.
Certo dia fui surpreendido por uma estranha experiência. A sala cheia de gente (olhavam atentos à explicação), enquanto eu, seguro e cheio de razão, narrava a disciplina jurídica. Num instante, percebi que havia me perdido nas palavras, como se algo dissesse tudo aquilo por mim, a boca fora de controle, palavras estranhas saindo pelos lábios, o pulso descontrolado escrevendo, escrevendo no quadro um emaranhado de esquisitices. Para disfarçar dei as costas à sala, e deparei-me com o quadro repleto de chaves, classificações, definições. Jamais aquilo pareceu tão ameaçador e perigoso. Vontade de correr pela rua ou, pior, vontade de rir, de gargalhar daquela maluquice. Quando retornei aos alunos, ainda fixos em mim, era como se soubessem o que acabara de ocorrer. Era como se houvessem perdido a referência dos meus olhos que diziam: apesar de tudo, da dificuldade em compreender o sistema, isto é realmente importante e fundamental, esforcem-se. Não! Já não viam em mim a mesma segurança. Multiplicavam-se os olhares de interrogação, como se exigissem uma explicação, porque afinal de contas o que eu fazia ali? Era como se eu tivesse perdido o controle da situação e confessasse, de peito aberto, que eu mesmo não podia responder a tal indagação. Medo de revelar uma verdade, de perder definitivamente o controle, de gritá-los: Dane-se isto tudo! Não percebem! Por sorte, respirei fundo, caminhei até o bebedouro da sala, tomei um copo d’água e recuperei meu estado normal. Novamente o código sobre a mesa pareceu-me bastante natural e triviais todos os conceitos expostos no quadro. Meus olhos novamente dizendo: Acreditem! Acreditem! O Direito!
Não é uma mera coincidência que o abandono deste blog ocorra precisamente quando mais precisamos mergulhar na linguagem técnica das apostilas e livros resumos. Se fossemos médicos também estaríamos perdidos em paredes celulares, reumatismos, fórceps, quadros letárgicos, doenças crônicas, internações urgentes, procedimentos, sulfatos, impulsos nervosos. Se engenheiros, em argamassas, cálculos estequiométricos, probabilidades, resistência dos materiais, dilatações, vigas mestras, andaimes, inequações de quinto grau, parábolas geométricas. Palavras feias, pobres, rígidas, realidade técnica e dura. Porque estive pensando: na vida vivida, a técnica é um detalhe tão pequeno, fica ali, reservada ao seu lugar, espremida no seu tamanho. Nada além. No dia-a-dia, entendem. Ela surge espontânea, vez ou outra é preciso consultá-la. No mais das vezes participa coadjuvante. Porque afinal de contas, o que move mesmo médicos, engenheiros e juristas é o coração, que técnica nenhuma dá conta de explicar.
Por isso, que sirva de consolo, neste texto tão autobigráfico, o fato de que esta pobreza de espírito vai passar. As apostilas vão ser queimadas, junto com livros resumos e a dominação das palavras sórdidas e vazias. Vai ser grande o dia em que vamos renegar toda classificação inútil, toda opinião meramente divergente, toda tentativa de instrumentalizar o conhecimento. Não posso continuar a viver sem estar apoiado neste ponto do horizonte que me diz, com precisão, que o ofício que eu abracei não tem absolutamente nada com esta baboseira que cresce sobre a minha mesa de estudo. Afinal de contas, o mundo doido tem dessas coisas, estupidez inventada, o mundo limitado. Temos é que saber ver o caminho e, diante da pedra, um belo chute ou, se há preguiça, desviar à esquerda ou à direita, mas sempre em frente. Apenas uma pedra, feita de palavras toscas, uma pedrinha à toa. O caminho, caminhão, eta caminho bão!, feito de preciosa direção, diretinho para o centro da poesia mais bela, jamais escrita. Eta poemão!

3 comentários:

  1. Ai, ai ai, ai ai, que bom, que demais, ter amigos, meu Pai!
    Daqui a pouco quero escrever um pouco mais, um bocadinho deste suco que pinga das minhas entranhas - coisas estranhas.
    Mas já quero dar um abraço no amigo Miguel, meu fiel Miguel, que não deixa o blog morrer. Vem dar ao pobre coitado um gole de água, que já de muito o sol torrava as telhas do maltrapilho deitado no chão.
    Abração.

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  2. O Borges tem um poema que diz: "Minha humanidade está em sentir que somos vozes de uma mesma penúria." Essa penúria do direito é tão comum que me faz pensar que não há solução aqui dentro, só em outro lugar.

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  3. Olha a Manu aí de novo! Boa essa do Borges! Todo mundo é feito com a mesma caca...

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