quarta-feira, 29 de julho de 2009

Voltando ao tema...

Desculpem voltar novamente ao tema (se é que ele já tinha ido embora...), mas, "coincidentemente", estava lendo o blog "o Indivíduo" e encontrei o seguinte texto:

Tentação & maldição
Publicado em 30 de junho de 2009 por Pedro Sette Câmara

Quanto mais tento usar as lentes da teoria mimética de René Girard, mais recordo a frase que a serpente disse a Eva no Paraíso: “Sereis como deuses.” Parece que aí está, com o perdão da pomposidade, todo o problema humano.
Primeiro, o problema de ser. “Ser ou não ser, eis a questão.” A impressão de que a vida dos outros é sempre mais intensa e mais perfeita do que a nossa. De que enquanto mal suportamos a banalidade outras pessoas estão “vivendo”. Olhamos os outros como Fernando Pessoa olha a menina que come chocolates em “Tabacaria”.
Segundo, o problema do “como”. O tempo inevitavelmente à nossa frente parece prestar-se a qualquer uso. E quanto mais o tempo está para trás, mais vemos que certas possibilidades se fecharam. Se o tempo é uma folha em branco, como preenchê-la? Aquelas pessoas que “são” mais intensamente do que nós sugerem um “como”. Mas elas são elas, e nós somos nós. E nós, é claro, temos de ser originais. “Seja você mesmo”.
Terceiro, “deuses”. O plural é de grande ironia. Se há deuses, eles não são absolutos. Se não percebêssemos que a promessa da serpente era furada no “como”, o “deuses” não deixaria dúvidas. Isso, é claro, se estivéssemos prestando atenção. Muito fácil para mim dizer isso agora, e continuar caindo nessa promessa falsa a cada 15 minutos. Mas por que caímos? Porque queremos ser deuses. Ou cada um de nós quer ser um deus e fazer da sua vida a perfeita e maravilhosa sucessão de realizações de desejos puramente espontâneos. Ressentimo-nos da banalidade, de não saber escolher um programa de TV, de tudo. Os deuses “são”. Eu não sou. Há aí outra ironia: “sereis como aqueles que são”, remetendo à maneira como Deus se definiu a Moisés: “Eu sou Aquele que é”.
O contexto ainda sugere outra interpretação. Adão e Eva eram dois. “Sereis como deuses… um para o outro. Tirando o fato de que vocês não são de fato Deus, bem…” E daí vem o inferno dos relacionamentos (de todo tipo). Eu deifico certa pessoa, creio que ela “é”, que ela tem as respostas etc. E obviamente ela não tem. Então eu ainda me sinto heróico por ter derrubado aquele ídolo e parto para deificar outra pessoa. A qual faz isso comigo, e depois derruba o ídolo em que me transformou etc.
Não acaba. O demônio não é o “macaco de Deus”? Querer “ser como deuses” é querer macaquear Deus. A serpente quer transformar o homem nela mesma.

Vem Nérso, chacoalhá essa turma!

Depois desses temas difíceis, fez-se silêncio no blog. E para quebrar esse silêncio e recuperar o ritmo da caminhada, nada melhor que um pouco de Nelson Rodrigues. Algumas frases do figurão:
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- O jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: — o da imaturidade.
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- Tudo passa, menos a adúltera. Nos botecos e nos velórios, na esquina e nas farmácias, há sempre alguém falando nas senhores que traem. O amor bem-sucedido não interessa a ninguém.
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- Nós, da imprensa, somos uns criminosos do adjetivo. Com a mais eufórica das irresponsabilidades, chamamos de "ilustre", de "insigne", de "formidável", qualquer borra-botas.
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- A grande vaia é mil vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre do que a grande apoteose. Os admiradores corrompem.
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- O brasileiro não está preparado para ser "o maior do mundo" em coisa nenhuma. Ser "o maior do mundo" em qualquer coisa, mesmo em cuspe à distância, implica uma grave, pesada e sufocante responsabilidade.
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- Há na aeromoça a nostalgia de quem vai morrer cedo. Reparem como vê as coisas com a doçura de um último olhar.
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- Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível.
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- O homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já o desumaniza. Por exemplo: — um ministro. Não é nada, dirão. Mas o fato de ser ministro já o empalha. É como se ele tivesse algodão por dentro, e não entranhas vivas.
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- Assim como há uma rua Voluntários da Pátria, podia haver uma outra que se chamasse, inversamente, rua Traidores da Pátria.
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- Está se deteriorando a bondade brasileira. De quinze em quinze minutos, aumenta o desgaste da nossa delicadeza.
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- O boteco é ressoante como uma concha marinha. Todas as vozes brasileiras passam por ele.
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- A mais tola das virtudes é a idade. Que significa ter quinze, dezessete, dezoito ou vinte anos? Há pulhas, há imbecis, há santos, há gênios de todas as idades.
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- Outro dia ouvi um pai dizer, radiante: — "Eu vi pílulas anticoncepcionais na bolsa da minha filha de doze anos!". Estava satisfeito, com o olho rútilo. Veja você que paspalhão!
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- Em nosso século, o "grande homem" pode ser, ao mesmo tempo, uma boa besta.
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- O artista tem que ser gênio para alguns e imbecil para outros. Se puder ser imbecil para todos, melhor ainda.
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- Toda mulher bonita leva em si, como uma lesão da alma, o ressentimento. É uma ressentida contra si mesma.
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- Acho a velocidade um prazer de cretinos. Ainda conservo o deleite dos bondes que não chegam nunca.
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- Chegou às redações a notícia da minha morte. E os bons colegas trataram de fazer a notícia. Se é verdade o que de mim disseram os necrológios, com a generosa abundância de todos os necrológios, sou de fato um bom sujeito.

Frases elecionadas e organizadas por Ruy Castro, extraídas do livro "Flor de Obsessão", Cia. das Letras - São Paulo, 1997, págs. diversas.

sábado, 25 de julho de 2009

Filiaçao Divina

O que mais atrapalha nosso homem é a distância do Criador, do Criador que não é meramente aquele que gerou, mas que é Pai. O que é um filho sem Pai? Precisamos da filiaçao divina acima de tudo, somos carentes por excelência e a única soluçao a esta necessidade de nascença está neste grande Pai. Portanto, procuremos estreitar a distância, Deus não pode ser um ser distante, uma explicaçao lógica à nossa equação vital, deve ser nosso Pai-amigo, comecemos a procurá-Lo, a conversar com Ele em nosso dia-a-dia, a pedir-Lhe explicações de nossas angústias... Ele nunca deixa de nos responder...

domingo, 19 de julho de 2009

Autômato

Num belo dia o sujeito acorda e descobre que sua vida, aparentemente, não possui sentido algum. Ao voltar-se para si mesmo constata, a partir da análise de seu cotidiano, que se transformou em um autômato. Dentre outros significados, diz-se autômato, segundo o pai dos burros, o “aparelho com aparência humana ou de outros seres animados, que reproduz seus movimentos por meios mecânicos ou eletrônicos”. Inexiste em semelhante criatura um elemento tipicamente humano: a vontade. Todas as suas reações parecem-lhe mecânicas. Trabalha mecanicamente, caminha mecanicamente, sorri mecanicamente...

Não apenas automatizou-se, como não consegue livrar-se desta situação. E ciente deste fato, evita amigos, familiares, e todos aqueles cujas perguntas incômodas possam levá-lo a se indagar acerca de sua própria existência. Nada o aterroriza mais do que perguntas do tipo “E você? Como vai? O que tem feito da vida?”. Receoso, se pergunta: “O que separa o antigo eu, cheio de sonhos e aspirações, do eu atual, despido de todos estes maravilhosos atributos? O que se perdeu pelo caminho?

Temeroso de um dia acordar deste estado de torpor e constatar que sua vida de nada valeu, apenas lhe vem à mente uma certeza: “Preciso agir...”. Mas primeiro, faz-se necessário reencontrar a antiga vontade, o antigo móvel de suas condutas. E como que num insight, constata que esta vontade de agir só se delineia a partir da fixação de objetivos.

Surgem então novas perguntas. “Que objetivos escolher? Qual caminho tomar?”. E novamente se martiriza: “E se o caminho eu errar? Quais as conseqüências de retornar?

Imerso na indecisão que aflora de tão tormentosa indagação, decide nada decidir. Resolve nada resolver. E então retorna para a segurança de sua rotina, trabalhando, andando, e sorrindo mecanicamente, como se nada tivesse acontecido...

sábado, 18 de julho de 2009

O pão saboroso de Pedro Xavier

Pois é Pedro, meu amigo, você vem nos trazer um tema bastante incômodo e “misterioso”, como bem ressaltou. Talvez seja mesmo o tema principal, aquele que deveria ser o centro das nossas preocupações (Lembro do Bruno falando da santidade, como aquela que diariamente nos importuna de manhã quando acordamos e que sempre estamos deixando de lado, como se disséssemos: Hoje não! Por favor! Deixa isso para amanhã!).
Sinto que traz um pão saboroso e sadio à nossa mesa fraterna, pois comungo com você a mesma idéia, a da doença e a do pecado, aquela como uma condição do homem, este como o seu efeito mais indesejado. Outro dia li um texto do Olavo que mencionava um ensinamento da Igreja a respeito dos inimigos da alma que achei bastante interessante e que, talvez, esclareça um pouco mais a questão. Segundo ele, a Igreja ensina que são inimigos da alma: o mundo, o diabo e a carne. O diabo é a estrutura do poder espiritual maligno, que leva o conjunto da humanidade para o mal. A carne, por sua vez, é o pedaço seu que diz que você existe e que faz com que você acredite que exista, afastando-o da experiência de contingência e nulidade de si próprio: sei que sou, mas não sei por que sou (na verdade você só existe em confronto com a infinitude, só existe como uma partícula do fundamento da existência). Finalmente, o mundo, que é aquilo que as pessoas falam, as crenças, as crendices, as tagarelices (aquilo que faz, por exemplo, com que você se contente quando diz algo que as pessoas que você gosta concordam). Todos os três são inimigos da alma, afastando o homem de Deus. Neste sentido, lutar contra o pecado é lutar contra estes três inimigos.
Você fala dos santos... Puxa, conhecer a vida dos santos é algo ainda mais misterioso e instigante. É inacreditável, é vergonhoso, é revelador. Os santos são, em primeiro lugar, grandes pecadores. E este paradoxo terrível é o que mais instiga. A vida desses homens e mulheres, o modo como eles caminharam em direção a Deus, é um ensinamento muito grande para a humanidade. O exemplo é algo muito forte. O que choca não são as palavras ditas por eles, mas a vida que levaram. Para nós que vivemos num mundo tão mundano, é quase impossível vislumbrar que uma pessoa real possa ter vivido deste modo. É difícil para nós aceitarmos valores como a renúncia, a obediência, a resignação, a solidão. É difícil compreender o caminho da santidade. É difícil vislumbrar que todos os homens são chamados a este mesmo caminho, pois basta uma mínima consciência de si mesmo para perceber o quanto longe estamos dele. E, no entanto, estamos todos vocacionados a isto.
Enfim, meu amigo Pedro. Nisto tudo o que mais me instiga é perceber que não vamos jamais conseguir compreender completamente. A vivência da fé é muito mais profunda do que qualquer argumento possa dar conta, do que a nossa mente possa imaginar. Quando lembro que Cristo escolheu simples pescadores, que eram os homens mais pobres e ignorantes do seu tempo, para serem os arautos da boa nova, sinto que devemos deixar de lado a vontade de compreender tudo e cultivar a humildade de obedecer com fé ao ensinamento que nos foi dado e dedicar os nossos dias a vivê-lo realmente. Por alguma razão, que desconhecemos, Deus preferiu ver-nos livres a garantir que fossemos bons apenas pela sua vontade. Ele quis que fossemos livres e o “preço” da liberdade é a possibilidade da escolha pelo mal. Deus quer que escolhamos por nossa vontade seguir o seu caminho. E o nosso dever é este e não outro. Simplesmente porque Ele, na sua bondade, quis assim. E Ele nos ajudará a atingir essa meta, desde que permaneçamos Seus fiéis. A cada tombo, a cada erro, a cada pecado, levantamos de novo e seguimos na mesma direção. Arrependidos, perdoados, vamos pouco a pouco, tornando-nos, misteriosamente, homens melhores. Ainda que sejamos incapazes de compreender como.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Doença ou pecado? O pão, a migalha e o bolor.

Quem sabe a prudência determinasse que antes de a boca se abrir fossemos procurar o verbo mais ajustado, seja em lábio alheio ou nas páginas pintadas. Talvez. Mas também se corre o risco de perder a efusão, o momento de fazer correr. Daí porque, entre uma e outra, escolho o andar, o falar sobre aquilo que ainda me é obscuro. Não tanto para ensinar, informar ou qualquer outra atitude professoresca, mas sim para compartilhar, não sei se pão, ou só migalhas.
O caso é que das palavras de Padre Paulo Ricardo, cheguei a uma distinção interessante. Ignoro se a obra é do próprio pastor, de santo antigo, ou confusão de minha parte, mas ela me apareceu, sei lá como, nem por quem. Sempre me senti (e ainda me sinto, ora bolas!) bastante desorientado quando o assunto é o pecado. Nunca compreendi bem o que isto significava, nem a razão de seu existir. Sim, o sentido da escolha, a queda do maligno, a tentação de Adão, tudo isto é uma luz, embora de luminosidade misteriosa, aquela que dá e tira ao mesmo tempo. Ainda assim, o pecado me atormentava, não só na carne, mas na idéia.
Certo dia Miguel me disse que os mandamentos seriam como nosso manual de instruções. Conclui, então, que o pecado era um defeito de funcionamento. Pois é. Porém, a sensação de desconhecimento persistiu.
Ocorreu-me, num repente, o pensamento: há que separar a doença e o pecado.
A doença nos acompanha desde o começo, herdada de Adão, que dela se infectou no fruto. Já o pecado é efeito daquele mal, que nos debilita as forças e nos faz cair. O pecado está no ato, desaparece rapidamente. A doença, por sua vez, está conosco diariamente, ainda que não gere seu filhote: o pecado.
Estando doentes, somos capazes de pecar. E se pecamos, é porque estamos doentes. A doença é espiritual, mas se utiliza da carne. Somos todos pecadores, pois somos todos doentes.
É possível passar dias e noites sem pecado, mas a doença ainda vive na espreita. Não sei se podemos nos livrar da doença, ao menos neste mundo. Talvez a cura dela, realmente, só venha com o encontro do Pai. Mas enquanto caminhamos neste mundo, lutamos contra os atos do pecado, que é a forma de combate à doença.
Os santos talvez sejam os homens que, embora doentes, como todos nós, estão em boa saúde, pois guerream permanentemente contra as mazelas da doença, não permitindo que dê seus frutos, evitando, desta forma, o pecado.
Enfim, acho que é isto que tinha para dizer. Se a migalha que trago é algum alimento ou já vem embolorada, é algo que os estômagos amigos poderão dizer. De minha parte, tenho ficado com pão na boca, tentando discernir, em seu sabor, se é pra engolir ou cuspir.

terça-feira, 7 de julho de 2009

D'ele-mesmo

De João Augusto e Miguel Távola
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De repente se dá conta que tudo mudou. As pessoas que o cercam não são mais as mesmas. A cama em que dorme... Quem lhe preenche o coração... Os ideais que lhe guiam a vontade... Será que escolheu tudo isso? Não seria uma imposição sabe-se-lá-de-quem? Talvez das circunstâncias ou do próprio deus com quem luta? Não tem a resposta. Só sabe que tem de se explicar para o mais exigente dos tiranos, ele-mesmo. Mas nada parece ter explicação, ele-mesmo lhe tortura em sonho e nos dias ensolarados. Quer esquecer ele-mesmo, deixar-se seguir. Mas o tirano é insistente e o persegue. Na resignação, grita ele-mesmo: Fraco! Na revolta: Estúpido! Calado: Grita! Fraco! Estúpido! Se obstáculo, protesta ele-mesmo: Intransponível! Se equívoco: Incorrigível! Se cansaço: Preguiça! Intransponível! Incorrigível! Quando a espera, ele-mesmo afoito. Quando a calma, nervoso. O medo, inseguro. Quando a alegria, ele-mesmo triste. Quando a verdade, incerto. A fé, descrente. Só sabe que detesta ele-mesmo, quem seria tão incoerente indivíduo!?

domingo, 5 de julho de 2009

A filosofia nacional e o pensamento filosófico estrangeiro

"[...] Nós, brasileiros, pou um espírito de colonialismo passivo, que nos domina até hoje, não cremos em nós mesmos. Só damos valor àquilo que tem origem estrangeira, e não seja de Portugal, porque também esta procedência não goza de nossa admiração. É natural, pois, que falar numa Filosofia Nacional cause manifestações de completa descrença. Não acreditar que ela existe, nem tampouco que possa surgir, é atitude geral. Ainda hoje, "famosos professores de Filosofia" em Portugal dizem que é impossível criar-se uma Filosofia autóctone naquele país. Para o português, o que vale é "Penso, logo não existo" ou "Existo, logo não penso". Podemos dizer que existe uma Filosofia no Brasil, mas se quiséssemos realmente falar numa Filosofia do Brasil, tal afirmação exigiria exame. Não conhecemos obras de criação propriamente peculiar. Se estamos tentando realizar algo nesse sentido, não podemos afirmar, por motivos óbvios, que o seja. Podemos dizer que, pela nossa completa libertação de um passado metafísico, filosófico, histórico, que pese sobre nós e entrave as nossas possibilidades de ação, estamos em condições de criar uma Filosofia Ecumênica, uma Filosofica que seja realmente a Filosofia, por entre os muitos modos de Filosofar.

A heterogeneidade nas modalidades de filosofar surge nos períodos de predominância do empresário utilitário no contexto de uma cultura. Quando esta predomina, prevalece a moda que penetra em todos os setores: na Filosofia, na Arte, etc., como acontece no mundo atual.
Esta variação tremenda de idéias, as quais surgem de todos os lados não revela nenhuma pujança; é, ao contrário, um índice de fraqueza, como a do período final da cultura grega e alexandrina. A Filosofia Positiva (fundada na positividade do ser, que alcança a perenidade, porque atinge as leis eternas) e Concreta, precisamente, porque captando estas leis, relaciona todos os matizes de todos os aspectos formais - para dar-lhes uma unidade superior - é necessariamente Concreta, embora não no sentido vulgar do termo. A Ciência, felizmente, conseguiu libertar-se da moda, como o fez a Matemática; por isso construiu uma Matemática, uma Ciência, também pode se construir uma Filosofia.

Em que o pensamento brasileiro pode beneficiar-se do pensamento filosófico estrangeiro; reunindo o que há de positivo em todas as grandes realizações, provenham de onde provierem, construindo, depois, uma nova concreção e oferecendo-a ao mundo. Esta é a única possibilidade que nos cabe e que estamos em condições de realizar, muito embora a maioria de nossos intelectuais não creia nisto e negue, terminantemente, que tal seja alcançável por nós, açulando-se com sanha contra quem tentar fazê-lo".

Mário Ferreira dos Santos

Autorretrato, por Mário Ferreira dos Santos

"Sou natural do Estado de São Paulo, filho de pai português, de família de intelectuais e de mãe amazonense, de ilustre família cearense. Iniciei meus estudos num ginásio de jesuítas, onde cursei até os dezoito anos de idade, ingressando, depois, no curso superior, onde me formei em direito e ciências sociais. Casei-me aos 23 anos, com D. Yolanda Lhullier dos Santos, então com 19 anos, companheira fiel e sempre a estimuladora e inspiradora de meu trabalho. Tenho duas filhas, Iolanda e Nadiejda, ambas hoje casadas, dedicadas ao estudo, autoras de inúmeras obras que, com grande êxito, se expandem pelo país, algumas com mais de dez edições.Mantive sempre uma atitude de independência e de liberdade, fugindo de toda participação, tanto quanto possível, da vida política e das rodas literárias, por considerar dissolvente o primeiro ambiente e deletério o segundo. Em silêncio, passei os anos estudando, dedicando-me aos trabalhos de advocacia e ao magistério particular, bem como ao ramo editorial, até que tivesse meios de poder editar minhas obras, que iniciei, primeiramente, lançando-as sob pseudônimos, dos quais possuo um número de mais ou menos quinze. Só por volta de 1945 comecei a editar alguns livros com meu próprio nome. Procedia assim por saber que havia nascido num país onde domina o preconceito de que obras de Filosofia não podem surgir e ainda provocam a desaprovação de muitos, que não toleram a aud´[acia de um brasileiro tentar fazer o que julga apenas possível a intelectuais europeus. Na verdade, registrou-se que os meus livros editados com pseudônimos estrangeiros tiveram realmente grande venda, sendo que alguns atingiram até dezenas de milhares de exemplares. Mas quando em 1952 resolvi, definitivamente, enfrentar a realidade e editar os livros com meu própio nome, contra a opinião geral de todos, que prenunciavam o completo malogro dessa iniciativa, fiz uma experiência impressionante. Não só obtive um êxito que foi muito além de minha expectativa - porque a venda atingiu a números que eu jamais poderia calcular - como muitas de minhas obras chegaram a ter, no decorrer dos anos, cinco, seis, nove, dez e até doze edições, alcançando a milhões de exemplares vendidos, o que à primeira vista, pareceria impossível. Este fato impressionou-me vivamente, porque, durante todo esse período, não lancei mão de nenhuma demagogia publicitária, não solicitei a quem quer que fosse neste país a escrever sobre meus livros, pois não enviei exemplares a ninguém, de modo a não constrangê-lo a escrever alguma coisa a respeito de minha obra. Meus livros foram, pois, entregues ao seu próprio destino, sendo que os leitores foram os únicos propagandistas que eles tiveram. Foram aqueles que os aconselharam a outros leitores e assim as obras foram tornando-se conhecidas e procuradas. Nunca foram vendidas, mas compradas; nunca obtive a menor boa vontade de quem quer que fosse e poucos livreiros se interessaram pela colocação de meus livros, pois a quase totalidade afirmava que não havia a menor procura de obras de filosofia. Eram os leitores que as procuravam, eram eles que vinham à minha residência buscar os livros e que me escreviam cartas solicitando as obras. Foi assim que as vendi, sendo que a Livraria e Editora Logos Ltda. e a Editora Matese, as editoras de minhas obras, estão hoje organizadas e são, praticamente, as únicas que as vendem, pois poucas editoras ou livrarias no Brasil trabalham com meus livros, mesmo porque não me interessa a distribuição dos mesmos, dadas as dificuldades de reedição, que são muito grandes.Dediquei-me, no decorrer de minha vida, ao estudo e durante grande parte dela ao magistério particular. Nunca ocupei nenhum cargo em nenhuma escola, por princípio. Deliberei, desde os primeiros anos, tomar uma atitude que consiste em nunca disputar cargos que podem ser ocupados por outros. É uma questão de princípio. Sempre decidi criar o meu próprio cargo, a minha própria posição e situação, sem ter de ocupar o lugar que possa caber a outro. O meu lugar seia exclusivamente meu, criado por mim para mim mesmo. Eis por que não disputo, nunca disputei, nem disputarei qualquer posição que possa ser ocupada por quem quer que seja. A minha vida, em síntese, é simplesmente esta".

Mário Ferreira dos Santos

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Madalena e Pasárgada
(ou Sob a Luz da Lamparina a Óleo)


Quisera houvesse intensa luz, luminosa e radiante a anunciar o tempo da alegria, a alegria mais fútil e mundana. Assim desejam meus olhos e minhas pernas, correr o mundo que apenas se anuncia a uma jovem vida sedenta de felicidade. No entanto, outros olhos, muito impertinentes, caçam-me de minha volúpia e atentam-me para uma única questão, como se me dissessem: dá-me um minuto de seu tempo. Mais que um convite, recebo-o como uma ordem, ante o sentimento (quase um instinto) de obediência ao chamado. Dócil, sigo a uma sala escura e detenho-me diante dos olhos, aqueles outros, postos sobre uma mesa mal iluminada pela lamparina. O olhar perde-se na chama que consome o óleo, entre livros, uma cruz e a corda da autopenitência, enquanto permaneço estarrecido diante de um crânio exposto sob as mãos, como se tudo se concentrasse precisamente neste pedaço de osso. Poucos minutos depois, como houvera prometido, a chama se esgota, sem óleo, e o ambiente é tomado de trevas. Retorno, novamente, devolvido aos meus dias, prestes a prosseguir.

Mas estanco. O que desejo é Pasárgada. Convocam-me minhas células, brilhando em meus dedos a sede e a fome de conquistar as ruas, os homens, os frutos suculentos da terra. Vontade de ser livre, sentir na pele o suave deslizar das águas, a macia passagem dos ventos, na língua o sabor doce do mel das flores. Sina de ser rei, tal o feitio perfeito de minha natureza, nascida para gozar o fluido em curvas e cheiros irresistíveis, destino da forma fálica que impele ao encontro da umidade côncava. Êxtase em delírios cala medo e hesitação, escapa a compreensão e deságua na entrega absoluta. Mais que o arbítrio e o pensamento, a força instintiva do corpo, que sua, sangra e estremece ante o imperativo do mundo: Ide! Goze!

Todavia, como se outra voz estivesse à espera do momento certo para lançar-se em meu testemunho, ouço o grito: Espere! Os pés estancados no chão, ressurge clara a imagem da mulher sentada com a morte no regaço e os olhos perdidos na lamparina. Inoportuna! Deixa-me ir! (“Ide! Goze!”). Não posso! Não é ela que me impede, eu mesmo me detenho estarrecido pela imagem. Não posso! Nada me socorre, nem a inocência de minha juventude, nem a fraqueza de minha carne. Nada escapa a sedução da mística luz que exsurge intensa diante de mim. Os livros, a cruz, a dor e a leve chama esgotando-se, lentamente, dia-a-dia, consumida pelo tempo. O desejo também ressurge vivo em minha fronte. Contemplo-o, enfim estou livre. Livre, porém, permaneço no chão. Obediente ao grito, em silêncio apenas espero, tomado de consternação, diante de Madalena e Pasárgada.