segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Um Filho, para seu Pai

Acordou no meio da noite com o estrondo dos trovões. Os raios luminosos faziam da janela do quarto um letreiro de comércio. Justamente ele, tão dado ao sono, tão incrivelmente difícil de despertar. A tempestade era bastante intensa. Recolheu-se na cama, como se o barulho da água nas calhas resfriasse o quarto quente de um dia de verão. Sentia medo, enquanto lembrava as manchetes da semana, anunciando o terrível estrago das enchentes de janeiro. Mas, especialmente, um fato insistia em sua mente: a notícia de um pai, em meio aos escombros, que houvera protegido seu filho recém-nascido, os dois soterrados, com lama por todos os lados, resgatados vivos horas depois. Um pai herói. Entre relâmpagos e jorros d’água, podia ouvir o teto caindo, a lama invadindo a porta da frente da casa, levando o piso, os móveis e as paredes. Lembrou-se do seu filho. Era madrugada, a noite intensa permanecia intacta, enquanto tudo desabava ao redor. Sentiu medo de perdê-lo. O quarto do lado vazio, a casa vazia, desde o dia em que saíram, desde quando os abandonara. Sozinho, deitado na cama feita para um casal.

Levantou perturbado, a chuva ainda era forte lá fora. Estava quente. Caminhou até o quarto que fora do filho, cerrou-lhe a porta buscando sossego e sono, era preciso dormir e levantar cedo no dia seguinte. O barulho da água lhe dava sede, foi ao banheiro, levantou a tampa do vaso, automático, mas estancou diante do espelho. Jamais lhe passara pela idéia restar tão só. Tudo não passava de uma busca por mais liberdade, a descoberta de um tempo novo, a possibilidade de recomeçar. Simplesmente uma história que não tivera um final feliz, nenhum mal além da fatalidade de um desencontro sem culpas. O frescor de uma nova paixão, a maturidade dos anos, uma grande virada, tudo irresistivelmente somado a um presente sem cores, repetitivo e entediante, de dois corpos que se estranhavam. Talvez a sedução de uma solução fácil. E tiveram a sorte de arranjar logo um bom acerto de contas: uma pensão para o menino, a guarda para a mãe, visitas de fim de semana, os bens pela metade, a metade da casa em dinheiro para ela. O rito trivial das varas de família: simples assinar os papéis, a despedida na sala de audiências, o olhar concordante dos advogados, a indiferença do juiz. Trivial voltar para casa, vê-la carregando os móveis, o cheque sobre a mesa, o filho com a mala de rodinhas e um boneco de brinquedo no braço: Mamãe vai me levar embora, pai?

Sentou-se no chão frio do banheiro, de cabeça baixa entre os joelhos. Aos poucos diminuía a chuva sobre a casa vazia. Sentiu nos braços aquele recém-nascido sob a lama que cobrira uma casa desconhecida, estremecido pelo susto em meio à madrugada, confundindo-se com o homem herói que sobrevivera apenas para salvar o filho tão pequenino. Aquecido na calma e segurança, o menino não chorava no peito do pai, aguardando o resgate que viria em algumas horas. Pesava-lhe na idéia uma vontade, mas temia que a mulher jamais o aceitasse de volta. Talvez, fosse tarde demais. Porque a nova paixão não demorara muitas semanas a passar, o sonho da nova vida e a liberdade. A impossibilidade de refundar sua vida, uma história aquém de seus planos, a história já vivida. Ilusão era a palavra que lhe cortava a garganta, teimando em persistir ao lado da imagem de pai e filho sob a lama. Não queria aceitar a culpa que sentia, mas se envergonhava diante daquele pai. O homem da casa vazia, o pai aos fins de semana, o pai da casa vazia, o homem de fim de semana, o pai, o homem, o pai...: repetia a ladainha densa que o impelia ao desânimo e ao fracasso.

Porém, repentina como a chuva que lhe acordara em meio à madrugada, surgiu-lhe, dissipando a dolorosa ladainha, a memória de seu próprio pai. Num instante apareceu-lhe inteiro, como se estivesse vivo diante dele. Acalmou-se. Podia ver-lhe claramente os olhos, olhos de pai mirando profundamente o seu lamento. Deixou-se, então, deitar sobre o tapete do banheiro, como um menino que se entrega no colo paterno, sentindo todo o perigo se esvair. O resgate, finalmente, havia chegado. A visita refazia dentro dele uma saudade antiga e um medo muito grande, do dia em que o pai vendedor saiu para uma longa viagem e nunca mais voltou. O pai morto que ele menino não perdoara, inconformado com a sua ausência. O pai vivo que agora lhe tinha nos braços, apenas um pai homem como ele, o seu pai herói, como aquele sob a lama da enchente.

Levantou-se com força, refazendo-se de pé. Já não chovia e um vento fresco invadia o banheiro. Molhou o rosto na pia e espiou novamente o espelho. Não era apenas o seu pai que ele perdoara. Diante de si via os anos do porvir. De fato, estava cansado e sofrido pelos equívocos. Recebia a amargura de uma solidão justa aos erros que cometera. Todavia, seus olhos refletiam seu pai, e também o pai dele, seu avô, e o pai de seu avô, e todos os pais da geração dos heróis que lhe transmitiam um estandarte. A vida-guerra continuava! Havia tempo, sim, havia tempo! Os braços tinham sede do seu menino, seu filho, para quem ele sempre fora um pai. E do mesmo modo que aquele pai da manchete do jornal devia sobreviver aos escombros da chuva, também ele, como seu próprio pai, devia sobreviver à vida, para cuidar e zelar pelo filho. Entusiasmado retornou ao quarto e se deitou na cama. Estava feliz. Sobrevivera à tempestade e um novo ânimo o tomara. Não demorou a adormecer. A madrugada seguiria intensa, a manhã não tardaria com seu sol quente de verão batendo-lhe à janela. Um pai para o seu filho. Um homem. O filho homem a quem, em breve, também transmitiria o mesmo estandarte, sob a proteção de uma geração de pais heróis.

Sobre borboletas

Todos querem voar
a crisálida, esquecida
falam, gritam, berram
preparação abandonada
brilho acima de tudo
ser bom, não, parecê-lo
cores, luzes, sensações
fora esforço, trabalho, sabedoria
só o palco interessa...

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Administração Judiciária

Entre processos
e recessos,
pessoas entram
e processam

Entre presenças
e retrocessos,
processos saem
e alvejam

Além de processos, recessos,
presenças, retrocessos;
pessoas e processos
se esfacelam

Além de pessoas
e processos,
papéis e corpos
se incineram.

Sem cerimônia

“Por isso o homem deixará seu pai e sua mãe, e se unirá à sua mulher; e serão uma só carne” (Ef 5:31). O que aconteceu com o casamento? Deus nos disse que somos uma só carne depois deste momento, que nos juntamos para todo o sempre, que criamos um laço para toda a vida, indissolúvel, sagrado.
O que aconteceu com o casamento? Quando vou a uma cerimônia de matrimônio nos dias de hoje, quando depois vou até a festividade dos noivos, nossa, que beleza, que altar mais suntuoso, que flores perfumadas, que vestimentas elegantes, quanta fartura, quanto rebolado, o copo sempre cheio, o bufê sempre ao lado. Que triste...
Triste, porque ninguém mais sabe se portar na igreja. Ninguém parece saber que no altar está Alguém bem mais belo que a noiva. Ninguém sabe responder às preces do padre. E até o padre igualmente demonstra certo descaso, pois o compromisso com a grande festa joga para debaixo do tapete o Senhor do sacramento.
O que aconteceu com o casamento? Reza-se a Ave-Maria cantada, mas quase todos estão cochichando isto sobre o vestido da noiva, aquilo sobre a decoração de flores, sobre a iluminação, sobre a voz do tenor, sobre o melhor caminho para chegar ao salão das bebidas...
O que aconteceu com o casamento? A música sagrada, que fala à alma, foi tirada do trono pelos produtores da Disney. Todos suspiram quando entram as garotinhas vestidas, ao som de A Bela e a Fera, e todos nos esquecemos que o apelo sentimentalista do mundo da fantasia nos leva longe do sentido mais profundo e importante da união sagrada.
Sagrada, união sagrada. Quem ali saberá dizer o que é sagrado? Não, não acreditam em sagrado. Saem correndo para pegar um bom lugar próximo aos comes e bebes, e passam imediatamente à obrigatória cerimônia de intoxicação, cada qual com seu copo, seu pompom e seus apetrechos de carnaval.
Pois é, a união sagrada entre duas pessoas, entre duas almas que se amam e que prometem estar sempre juntas, isso agora virou carnaval. Virou festa de embriaguez com promiscuidade tresloucada, virou joga tudo pro alto e beija muito! Aquele momento único foi seqüestrado para a fila das baladas, onde é proibido não perder a razão.
O que aconteceu com o casamento? Os noivos, ao invés de permanecerem ombreados, com as mãos juntas como no altar, expressando desde já o laço matrimonial, saem cada qual para seu lado, desempenhando o papel de estar ali animando os compadres, fazendo acrobacias, soltando a fraga etc e tal.
De tanta bebida, vez por outra se esquecem do par, não se recordam do que estão comemorando, e dão mais uma golada, afogando aquela voz que incomoda.
Outro dia, inventariando uma livraria, fui surpreendido por um título civilista. A doutora era maluca, isto eu já sabia. Mas não contava com tamanho descalabro na capa de seus livros: Divórcio já! Sim, com exclamação. O tom imperativo e a forma de palavra de ordem me deixaram atônito. A dona estava pregando a separação da união sagrada, desejava romper os laços do amor, queria destruir, com pressa e sem cerimônia, a relação mais bela e fundamental da humanidade.
Testemunho essas coisas e fico sem resposta. Talvez na noite de núpcias, passado o êxtase alcoólico, a noiva, de maquiagem borrada e sem o fatal vestido, saia correndo abaixo pelo hotel, com enxaqueca e em desespero, suplicando aos berros: divórcio já, divórcio já!
E um matuto perceberá que levantaria uma grana brava se inventasse um bufê de separação. Sim, os desquitantes estariam juntos, triunfantes; venceram a sociedade hipócrita, acabaram sem delonga com aquela farsa que lhes impuseram. E virão as divorciadinhas, as sobrinhas lindas, de cabelos cacheados, de vestidinho, trazendo o alicate para rompimento das alianças. Festa, bebida, comida, bebida, música, bebida e cafezinho.
Um casal de namorados, observando tudo, achará aquilo tudo muito brega. E pensará em fazer algo diferente, chocante, para abalar a sociedade. E então selarão o compromisso de ficarem juntos para sempre, sem o clichê da separação...

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Instalação

Sobre a escrivaninha uma biografia de Churchill, uma história de São Francisco, um Curso de Direito Ambiental, além da agenda, algumas anotações, folhas soltas e uma apostila de cursinho. A luminária nova, com lâmpada florescente econômica e o pote com canetas e lápis. A pedra de Cristalina, fazendo peso sobre os papéis. Uma estante de livros, cachimbos velhos, o quadro de fotos na parede, com amigos e familiares de três gerações. A garrafa de pinga mineira, da terra de Guimarães, junto ao livro autografado pela Adélia, presente de uma viagem que aconteceu e permanece fora do tempo, como uma grande experiência. Pequenas arcadas de metais, onde se lê turma um, sete, cinco, mistura de nostalgia, orgulho e peso sobre os ombros.

A disposição dos objetos denuncia uma herança. Mais que o acaso, sobre a mesa a pequena síntese de um homem. Principalmente, se considerada a grande janela que se abre por trás desta cena, lugar em que se esconde o mundo. Às coisas cabe o depósito da sutil realização de cada hora, como a poeira que vai se assentando. Estariam mortas, não fosse a presença do homem. À este, por sua vez, pertence o dom de traduzir a matéria de que são feitas, no esforço contínuo de transpor a porta que separa o quarto do que existe detrás da grande janela. Uma porta estreita, para uma janela bastante larga.

Da confluência de todos os seus objetos, necessidade de compô-los e despojá-los, do permanente enfrentamento de janela e porta, contradição impossível, no interior da casa, de quatro paredes, sozinho e inconsciente, o homem-artista inventa uma composição definitiva. Apenas mora, mas o tempo, e suas nuances, dá conta de transcender tudo em arte. O quarto fala.


sábado, 19 de fevereiro de 2011

Crise profissional

Um conjunto de sensações. Devo largar a luta para chegar à magistratura? E se partisse para a área da educação – dar aulas, construir uma escola ou algo mais audacioso? E se entrasse na vida literária? Ou, então, por que não virar um empresário-burguês e pronto: dono de escritório de advocacia, por exemplo?
Aí estão as possibilidades que vejo no momento. Tudo isso junto acho difícil de alcançar. A vida não é tão longa assim, e também é importante ter uma família, educar os filhos e dar conta de tantos outros afazeres.
Mais uma vez me pergunto, que caminho tomar?
A magistratura é um sonho antigo, uma posição importante na sociedade, certamente uma honra para qualquer pessoa, poder servir a tantos com juízos justos, muitas vezes duros, mas necessários. Decidir sobre a vida das pessoas, um grande peso, grandes responsabilidades. Um caminho árduo até e após a aprovação, mas necessário, é preciso estar à altura para exercer de forma consciente a judicatura.
A educação, um caminho que todos precisam conhecer – precisamos educar os filhos, não só os da carne, mas todos os que, de certa forma, vão se tornando nossos filhos ao longo da vida. Tarefa já tão abandonada, tão esquecida, tão dilacerada. As revoluções, os meios de comunicação, a política.
Tornar-se um burguês pode parecer o mais mesquinho dos objetivos, mas não é esse aspecto que enfatizo. É evidente que pode parecer um ideal egoísta, mas todos as outras alternativas podem ser excessivamente individualistas se buscadas simplesmente para o comodismo pessoal. Um bom empreendedor pode fazer um bem enorme, chegando a ser um verdadeiro educador, por que não?
Até agora, só indagações, mas já com certas luzes embutidas, toda pergunta já é um início, um primeiro passo rumo à resposta... Alguém pode me ajudar?

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

(In)direto ao ponto?

Nem sei por onde começar. Vejo o papel sobre a minha mesa: a obrigação semanal de escritor que me impus, e o peso dos afazeres semanais ainda sobre minha cabeça. Realmente, não sei o que dizer. Talvez diga algo ou somente fique enrolando vocês sem ir direto ao ponto. O ponto é que não há ponto. O melhor é não ter foco e ser imprevisível, inesperado, isto é, não ir direto ao ponto. Acho que a palavra impontualidade tem tal origem. A pessoa é inesperada, nunca está lá na hora marcada, não é alguém digno de boa pontaria... Não tem os ponteiros bem ajustados?!? É... Parece que é bem por aí... Hoje estou assim... Sem ponto, impontual, sem pontaria ou sem ponteiros... Já me disseram que isso é ruim, que não faz bem, que é coisa de pessoa com a personalidade mal formada... Não sei, nem sempre é bom ser uma pessoa equilibrada, a desproporção pode ser uma qualidade - de pessoas inesperadas podem vir surpresas muito boas, quem sabe descobertas... Daqueles que a toda hora fazem o previsto o que se pode esperar? Acho que só o previsto mesmo, nada diferente daquilo que sempre ocorre. Outro dia, estava pensando sobre a inconveniência e tive a mesmíssima sensação que estou tendo agora com a falta de ponto/impontualidade/ausência de ponteiros, etc. Acho que a falta de ponto é uma espécie do gênero inconveniência. O sem ponteiros nada mais é do que um inconveniente, quem gosta de alguém que sempre deixa os outros esperando? Também podem ser insuportáveis os pontuais à britânica, a conveniência elevada à décima potência. Nem tanto ao mar, nem tanto a terra. É preciso saber dosar, o inesperado muitas vezes terá de contar com a solidão, com a incompreensão, com olhares de reprovação, afinal, não é fácil aceitar aquilo que parece estar na contramão de tudo o que está acontecendo. Já o esperado é aquele que pretende surpreender o imprevisto, esquadrinhá-lo, deseja adiantar-se à beleza do acaso. Ocorre que a vida supera, e muito, a capacidade humana de antecipar-se. Enfim, cabe a cada um ter a sua medida, mas os extremos me soam a perigos a serem evitados.

A Mentalidade Revolucionária

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 16 de agosto de 2007

Desde que se espalhou por aí que estou escrevendo um livro chamado “A Mente Revolucionária”, tenho recebido muitos pedidos de uma explicação prévia quanto ao fenômeno designado nesse título.
A mente revolucionária é um fenômeno histórico perfeitamente identificável e contínuo, cujos desenvolvimentos ao longo de cinco séculos podem ser rastreados numa infinidade de documentos. Esse é o assunto da investigação que me ocupa desde há alguns anos. “Livro” não é talvez a expressão certa, porque tenho apresentado alguns resultados desse estudo em aulas, conferências e artigos e já nem sei se algum dia terei forças para reduzir esse material enorme a um formato impresso identificável. “A mente revolucionária” é o nome do assunto e não necessariamente de um livro, ou dois, ou três.
Nunca me preocupei muito com a formatação editorial daquilo que tenho a dizer. Investigo os assuntos que me interessam e, quando chego a algumas conclusões que me parecem razoáveis, transmito-as oralmente ou por escrito conforme as oportunidades se apresentam. Transformar isso em “livros” é uma chatice que, se eu pudesse, deixaria por conta de um assistente. Como não tenho nenhum assistente, vou adiando esse trabalho enquanto posso.
A mente revolucionária não é um fenômeno essencialmente político, mas espiritual e psicológico, se bem que seu campo de expressão mais visível e seu instrumento fundamental seja a ação política.
Para facilitar as coisas, uso as expressões “mente revolucionária” e “mentalidade revolucionária” para distinguir entre o fenômeno histórico concreto, com toda a variedade das suas manifestações, e a característica essencial e permanente que permite apreender a sua unidade ao longo do tempo.
“Mentalidade revolucionária” é o estado de espírito, permanente ou transitório, no qual um indivíduo ou grupo se crê habilitado a remoldar o conjunto da sociedade – senão a natureza humana em geral – por meio da ação política; e acredita que, como agente ou portador de um futuro melhor, está acima de todo julgamento pela humanidade presente ou passada, só tendo satisfações a prestar ao “tribunal da História”. Mas o tribunal da História é, por definição, a própria sociedade futura que esse indivíduo ou grupo diz representar no presente; e, como essa sociedade não pode testemunhar ou julgar senão através desse seu mesmo representante, é claro que este se torna assim não apenas o único juiz soberano de seus próprios atos, mas o juiz de toda a humanidade, passada, presente ou futura. Habilitado a acusar e condenar todas as leis, instituições, crenças, valores, costumes, ações e obras de todas as épocas sem poder ser por sua vez julgado por nenhuma delas, ele está tão acima da humanidade histórica que não é inexato chamá-lo de Super-Homem.
Autoglorificação do Super-Homem, a mentalidade revolucionária é totalitária e genocida em si, independentemente dos conteúdos ideológicos de que se preencha em diferentes circunstâncias e ocasiões. Recusando-se a prestar satisfações senão a um futuro hipotético de sua própria invenção e firmemente disposto a destruir pela astúcia ou pela força todo obstáculo que se oponha à remoldagem do mundo à sua própria imagem e semelhança, o revolucionário é o inimigo máximo da espécie humana, perto do qual os tiranos e conquistadores da antigüidade impressionam pela modéstia das suas pretensões e por uma notável circunspecção no emprego dos meios. O advento do revolucionário ao primeiro plano do cenário histórico – fenômeno que começa a perfilar-se por volta do século XV e se manifesta com toda a clareza no fim do século XVIII – inaugura a era do totalitarismo, das guerras mundiais e do genocídio permanente. Ao longo de dois séculos, os movimentos revolucionários, as guerras empreendidas por eles e o morticínio de populações civis necessário à consolidação do seu poder mataram muito mais gente do que a totalidade dos conflitos bélicos, epidemias terremotos e catástrofes naturais de qualquer espécie desde o início da história do mundo.
O movimento revolucionário é o flagelo maior que já se abateu sobre a espécie humana desde o seu advento sobre a Terra. A expansão da violência genocida e a imposição de restrições cada vez mais sufocantes à liberdade humana acompanham pari passu a disseminação da mentalidade revolucionária entre faixas cada vez mais amplas da população, pela qual massas inteiras se imbuem do papel de juízes vingadores nomeados pelo tribunal do futuro e concedem a si próprios o direito à prática de crimes imensuravelmente maiores do que todos aqueles que a promessa revolucionária alega extirpar. Mesmo se não levarmos em conta as matanças deliberadas e considerarmos apenas a performance revolucionária desde o ponto de vista econômico, nenhuma outra causa social ou natural criou jamais tanta miséria e provocou tantas mortes por desnutrição quanto os regimes revolucionários da Rússia, da China e de vários países africanos.
Qualquer que venha a ser o futuro da espécie humana e quaisquer que sejam as nossas concepções pessoais a respeito, a mentalidade revolucionária tem de ser extirpada radicalmente do repertório das possibilidades sociais e culturais admissíveis antes que, de tanto forçar o nascimento de um mundo supostamente melhor, ela venha a fazer dele um gigantesco aborto e do trajeto milenar da espécie humana sobre a Terra uma história sem sentido coroada por um final sangrento.
Embora as distintas ideologias revolucionárias sejam todas, em maior ou menor medida, ameaçadoras e daninhas, o mal delas não reside tanto no seu conteúdo específico ou nas estratégias de que se servem para realizá-lo, quanto no fato mesmo de serem revolucionárias no sentido aqui definido.
O socialismo e o nazismo são revolucionários não porque propõem respectivamente o predomínio de uma classe ou de uma raça, mas porque fazem dessas bandeiras os princípios de uma remodelagem radical não só da ordem política, mas de toda a vida humana. Os malefícios que prenunciam se tornam universalmente ameaçadores porque não se apresentam como respostas locais a situações momentâneas, mas como mandamentos universais imbuídos da autoridade de refazer o mundo segundo o molde de uma hipotética perfeição futura. A Ku-Klux-Klan é tão racista quanto o nazismo, mas não é revolucionária porque não tem nenhum projeto de alcance mundial. Por essa razão seria ridículo compará-la, em periculosidade, ao movimento nazista. Ela é um problema policial puro e simples.
Por isso mesmo é preciso enfatizar que o sentido aqui atribuído ao termo “revolução” é ao mesmo tempo mais amplo e mais preciso do que a palavra tem em geral na historiografia e nas ciências sociais presentemente existentes. Muitos processos sócio-políticos usualmente denominados “revoluções” não são “revolucionários” de fato, porque não participam da mentalidade revolucionária, não visam à remodelagem integral da sociedade, da cultura e da espécie humana, mas se destinam unicamente à modificação de situações locais e momentâneas,
idealmente para melhor. Não é necessariamente revolucionária, por exemplo, a rebelião política destinada apenas a romper os laços entre um país e outro. Nem é revolucionária a simples derrubada de um regime tirânico com o objetivo de nivelar uma nação às liberdades já desfrutadas pelos povos em torno.
Mesmo que esses empreendimentos empreguem recursos bélicos de larga escala e provoquem modificações espetaculares, não são revoluções, porque nada ambicionam senão à correção de males imediatos ou mesmo o retorno a uma situação anterior perdida.
O que caracteriza inconfundivelmente o movimento revolucionário é que sobrepõe a autoridade de um futuro hipotético ao julgamento de toda a espécie humana, presente ou passada. A revolução é, por sua própria natureza, totalitária e universalmente expansiva: não há aspecto da vida humana que ela não pretenda submeter ao seu poder, não há região do globo a que ela não pretenda estender os tentáculos da sua influência.
Se, nesse sentido, vários movimentos político-militares de vastas proporções devem ser excluídos do conceito de “revolução”, devem ser incluídos nele, em contrapartida, vários movimentos aparentemente pacíficos e de natureza puramente intelectual e cultural, cuja evolução no tempo os leve a constituir-se em poderes políticos com pretensões de impor universalmente novos padrões de pensamento e conduta por meios burocráticos, judiciais e policiais. A rebelião húngara de 1956 ou a derrubada do presidente brasileiro João Goulart, nesse sentido, não foram revoluções de maneira alguma. Nem o foi a independência americana, um caso especial que terei de explicar num outro artigo. Mas sem dúvida são movimentos revolucionários o darwinismo e o conjunto de fenômenos pseudo-religiosos conhecido como Nova Era. Todas essas distinções terão de ser explicadas depois em separado e estão sendo citadas aqui só a título de amostra.

* * *
Entre outras confusões que este estudo desfaz está aquela que reina nos conceitos de “esquerda”e “direita”. Essa confusão nasce do fato de que essa dupla de vocábulos é usada por sua vez para designar duas ordens de fenômenos totalmente distintos. De um lado, a esquerda é a revolução em geral, e a direita a contra-revolução. Não parecia haver dúvida quanto a isso no tempo em que os termos eram usados para designar as duas alas dos Estados Gerais. A evolução dos acontecimentos, porém, fez com que o próprio movimento revolucionário se apropriasse dos dois termos, passando a usá-los para designar suas subdivisões internas. Os girondinos, que estavam à esquerda do rei, tornaram-se a “direita” da revolução, na mesma medida em que, decapitado o rei, os adeptos do antigo regime foram excluídos da vida pública e já não tinham direito a uma denominação política própria. Esta retração do “direitismo” admissível, mediante a atribuição do rótulo de “direita” a uma das alas da própria esquerda, tornou-se depois um mecanismo rotineiro do processo revolucionário. Ao mesmo tempo, remanescentes contra-revolucionários genuínos foram freqüentemente obrigados a aliar-se à “direita”revolucionária e a confundir-se com ela para poder conservar alguns meios de ação no quadro criado pela vitória da revolução. Para complicar mais as coisas, uma vez excluída a contra-revolução do repertório das idéias politicamente admissíveis, o ressentimento contra-revolucionário continuou existindo como fenômeno psico-social, e muitas vezes foi usado pela esquerda revolucionária como pretexto e apelo retórico para conquistar para a sua causa faixas de população arraigadamente conservadoras e tradicionalistas, revoltadas contra a “direita” revolucionária imperante no momento. O apelo do MST à nostalgia agrária ou a retórica pseudo- tradicionalista adotada aqui e ali pelo fascismo fazem esquecer a índole estritamente revolucionária desses movimentos. O próprio Mao Dzedong foi tomado, durante algum tempo, como um reformador agrário tradicionalista. Também não é preciso dizer que, nas disputas internas do movimento revolucionário, as facções em luta com freqüência se acusam mutuamente de “direitistas” (ou “reacionárias”). À retórica nazista que professava destruir ao mesmo tempo “a reação” e “o comunismo” correspondeu, no lado comunista, o duplo e sucessivo discurso que primeiro tratou os nazistas como revolucionários primitivos e anárquicos e depois como adeptos da “reação” empenhados em “salvar o capitalismo” contra a revolução proletária.
Os termos “esquerda” e “direita” só têm sentido objetivo quando usados na sua acepção originária de revolução e contra- revolução respectivamente. Todas as outras combinações e significados são arranjos ocasionais que não têm alcance descritivo mas apenas uma utilidade oportunística como símbolos da unidade de um movimento político e signos demonizadores de seus objetos de ódio.
Nos EUA, o termo “direita” é usado ao mesmo tempo para designar os conservadores em sentido estrito, contra- revolucionários até à medula, e os globalistas republicanos, “direita” da revolução mundial. Mas a confusão existente no Brasil é muito pior, onde a direita contra-revolucionária não tem nenhuma existência política e o nome que a designa é usado, pelo partido governante, para nomear qualquer oposição que lhe venha desde dentro mesmo dos partidos de esquerda, ao passo que a oposição de esquerda o emprega para rotular o próprio partido governante.
Para mim está claro que só se pode devolver a esses termos algum valor descritivo objetivo tomando como linha de demarcação o movimento revolucionário como um todo e opondo-lhe a direita contra-revolucionária, mesmo onde esta não tenha expressão política e seja apenas um fenômeno cultural.
A essência da mentalidade contra-revolucionária ou conservadora é a aversão a qualquer projeto de transformação abrangente, a recusa obstinada de intervir na sociedade como um todo, o respeito quase religioso pelos processos sociais regionais, espontâneos e de longo prazo, a negação de toda autoridade aos porta-vozes do futuro hipotético.
Nesse sentido, o autor destas linhas é estritamente conservador. Entre outros motivos, porque acredita que só o ponto de vista conservador pode fornecer uma visão realista do processo histórico, já que se baseia na experiência do passado e não em conjeturações de futuro. Toda historiografia revolucionária é fraudulenta na base, porque interpreta e distorce o passado segundo o molde de um futuro hipotético e aliás indefinível. Não é uma coincidência que os maiores historiadores de todas as épocas tenham sido sempre conservadores.
Se, considerada em si mesma e nos valores que defende, a mentalidade contra-revolucionária deve ser chamada propriamente “conservadora”, é evidente que, do ponto de vista das suas relações com o inimigo, ela é estritamente “reacionária”. Ser reacionário é reagir da maneira mais intransigente e hostil à ambição diabólica de mandar no mundo.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Tribalistas: "Pé em Deus e Fé na Taba"

Não é fácil livrar-nos dos estereótipos, dos rótulos, das estampas, dos clichês. Ora são eles que nos perseguem, numa espécie de julgamento injusto e precipitado comumente vindo dos invejosos. Ora somos nós que os procuramos errantes e inseguros, numa necessidade ansiosa de auto-aprovação, tendo por critério último a opinião do grupo. Feito homens tribais, sentimos a tranqüilidade de caminharmos em conjunto, ainda que isto custe desistir um pouco daquilo que somos. É mais fácil moldar-se desde fora, que empreender o difícil desafio de conhecer-se desde dentro. Há um custo caro que nem sempre estamos dispostos a pagar: o de complicarmos bastante as nossas escolhas de vida. Tantas vezes preferimos receber uma tarefa pronta, a termos, nós mesmos, que inventar um modo novo de fazê-la. É bastante custoso ter alguma autonomia, mais fácil é andar a favor de uma coletividade. Ao que parece, existe sempre o velho cacoete de tentar obter o domínio sobre tudo, afinal de contas, nada apavora mais o homem que o desconhecido. Com facilidade abraçamos ilusões, apenas para termos a tranqüilidade e o sossego da sensação de controle. Por isso, gostamos tanto de julgar os outros e a nós mesmos, encaixando personalidades tão complexas em caixotes fáceis de carregar. O mesmo fazemos com o mundo a nossa volta, quando o trocamos por idéias, preferindo a escassez de nossas concepções e conceitos à infinita riqueza da realidade, sem nem nos darmos conta da perda irreparável. No entanto, é forçoso reconhecer que toda ilusão já nasce fadada ao fracasso. Um pequeno ser humano não demora muito a perceber a insuficiência destes subterfúgios. Obrigado a enfrentar o mundo como ele é e a mergulhar em si mesmo, um homem poderá engendrar dois caminhos distintos: ou, finalmente, aceitará a única realidade, por mais distante de suas expectativas e planos e se conformará a ela, ou inventará novas ilusões, numa fuga interminável e neurótica que durará toda a sua parca existência. É evidente que, na vida prática, existe uma grande névoa entre estes dois caminhos e não é difícil encontrarmo-nos com os pés parcialmente calcados em ambos. Assim, se quisermos, teremos que adotar uma postura firme e resoluta que nos impulsione tendencialmente ao único capaz de nos libertar de nós mesmos e de nosso orgulho. Uma direção que não deve nos levar, simplesmente, ao conformismo e a inação, o que seria igualmente um desvio de rota, mas que nos faça retornar ao centro de nossa existência, para que a partir dele possamos construir e agir, na verdadeira ação que só é possível quando há liberdade. Ensina-nos o evangelho: a verdade vos libertará, mas não nos garante que ela será agradável ou fácil de ser compreendida, muito menos que virá magicamente. Há um processo, cujo tempo é exigência e condição para que, pouco a pouco, avancemos sem sucumbir, reconhecendo que, no estado em que nos encontramos, sem alguma dose de ilusão não suportaríamos viver. Por isso, o desafio é permanente, exige coragem, mas vale a pena ser enfrentado, ainda que a custo de algum sofrimento, pois é ele que tecerá, entre quedas e recomeços, a única batalha que nos dá o sentido maior de nossa vida.