segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Um Filho, para seu Pai

Acordou no meio da noite com o estrondo dos trovões. Os raios luminosos faziam da janela do quarto um letreiro de comércio. Justamente ele, tão dado ao sono, tão incrivelmente difícil de despertar. A tempestade era bastante intensa. Recolheu-se na cama, como se o barulho da água nas calhas resfriasse o quarto quente de um dia de verão. Sentia medo, enquanto lembrava as manchetes da semana, anunciando o terrível estrago das enchentes de janeiro. Mas, especialmente, um fato insistia em sua mente: a notícia de um pai, em meio aos escombros, que houvera protegido seu filho recém-nascido, os dois soterrados, com lama por todos os lados, resgatados vivos horas depois. Um pai herói. Entre relâmpagos e jorros d’água, podia ouvir o teto caindo, a lama invadindo a porta da frente da casa, levando o piso, os móveis e as paredes. Lembrou-se do seu filho. Era madrugada, a noite intensa permanecia intacta, enquanto tudo desabava ao redor. Sentiu medo de perdê-lo. O quarto do lado vazio, a casa vazia, desde o dia em que saíram, desde quando os abandonara. Sozinho, deitado na cama feita para um casal.

Levantou perturbado, a chuva ainda era forte lá fora. Estava quente. Caminhou até o quarto que fora do filho, cerrou-lhe a porta buscando sossego e sono, era preciso dormir e levantar cedo no dia seguinte. O barulho da água lhe dava sede, foi ao banheiro, levantou a tampa do vaso, automático, mas estancou diante do espelho. Jamais lhe passara pela idéia restar tão só. Tudo não passava de uma busca por mais liberdade, a descoberta de um tempo novo, a possibilidade de recomeçar. Simplesmente uma história que não tivera um final feliz, nenhum mal além da fatalidade de um desencontro sem culpas. O frescor de uma nova paixão, a maturidade dos anos, uma grande virada, tudo irresistivelmente somado a um presente sem cores, repetitivo e entediante, de dois corpos que se estranhavam. Talvez a sedução de uma solução fácil. E tiveram a sorte de arranjar logo um bom acerto de contas: uma pensão para o menino, a guarda para a mãe, visitas de fim de semana, os bens pela metade, a metade da casa em dinheiro para ela. O rito trivial das varas de família: simples assinar os papéis, a despedida na sala de audiências, o olhar concordante dos advogados, a indiferença do juiz. Trivial voltar para casa, vê-la carregando os móveis, o cheque sobre a mesa, o filho com a mala de rodinhas e um boneco de brinquedo no braço: Mamãe vai me levar embora, pai?

Sentou-se no chão frio do banheiro, de cabeça baixa entre os joelhos. Aos poucos diminuía a chuva sobre a casa vazia. Sentiu nos braços aquele recém-nascido sob a lama que cobrira uma casa desconhecida, estremecido pelo susto em meio à madrugada, confundindo-se com o homem herói que sobrevivera apenas para salvar o filho tão pequenino. Aquecido na calma e segurança, o menino não chorava no peito do pai, aguardando o resgate que viria em algumas horas. Pesava-lhe na idéia uma vontade, mas temia que a mulher jamais o aceitasse de volta. Talvez, fosse tarde demais. Porque a nova paixão não demorara muitas semanas a passar, o sonho da nova vida e a liberdade. A impossibilidade de refundar sua vida, uma história aquém de seus planos, a história já vivida. Ilusão era a palavra que lhe cortava a garganta, teimando em persistir ao lado da imagem de pai e filho sob a lama. Não queria aceitar a culpa que sentia, mas se envergonhava diante daquele pai. O homem da casa vazia, o pai aos fins de semana, o pai da casa vazia, o homem de fim de semana, o pai, o homem, o pai...: repetia a ladainha densa que o impelia ao desânimo e ao fracasso.

Porém, repentina como a chuva que lhe acordara em meio à madrugada, surgiu-lhe, dissipando a dolorosa ladainha, a memória de seu próprio pai. Num instante apareceu-lhe inteiro, como se estivesse vivo diante dele. Acalmou-se. Podia ver-lhe claramente os olhos, olhos de pai mirando profundamente o seu lamento. Deixou-se, então, deitar sobre o tapete do banheiro, como um menino que se entrega no colo paterno, sentindo todo o perigo se esvair. O resgate, finalmente, havia chegado. A visita refazia dentro dele uma saudade antiga e um medo muito grande, do dia em que o pai vendedor saiu para uma longa viagem e nunca mais voltou. O pai morto que ele menino não perdoara, inconformado com a sua ausência. O pai vivo que agora lhe tinha nos braços, apenas um pai homem como ele, o seu pai herói, como aquele sob a lama da enchente.

Levantou-se com força, refazendo-se de pé. Já não chovia e um vento fresco invadia o banheiro. Molhou o rosto na pia e espiou novamente o espelho. Não era apenas o seu pai que ele perdoara. Diante de si via os anos do porvir. De fato, estava cansado e sofrido pelos equívocos. Recebia a amargura de uma solidão justa aos erros que cometera. Todavia, seus olhos refletiam seu pai, e também o pai dele, seu avô, e o pai de seu avô, e todos os pais da geração dos heróis que lhe transmitiam um estandarte. A vida-guerra continuava! Havia tempo, sim, havia tempo! Os braços tinham sede do seu menino, seu filho, para quem ele sempre fora um pai. E do mesmo modo que aquele pai da manchete do jornal devia sobreviver aos escombros da chuva, também ele, como seu próprio pai, devia sobreviver à vida, para cuidar e zelar pelo filho. Entusiasmado retornou ao quarto e se deitou na cama. Estava feliz. Sobrevivera à tempestade e um novo ânimo o tomara. Não demorou a adormecer. A madrugada seguiria intensa, a manhã não tardaria com seu sol quente de verão batendo-lhe à janela. Um pai para o seu filho. Um homem. O filho homem a quem, em breve, também transmitiria o mesmo estandarte, sob a proteção de uma geração de pais heróis.

Um comentário:

  1. O estilo tavolano volta a se apresentar... Mas gostei do seu texto anterior também, é bom variar, faz bem sentirmos que somos capazes de algo diferente, de alçar novos voos estilísticos (esta foi bonita, hehe, "voos estilísticos"...).

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