terça-feira, 29 de março de 2011

Hereges (Ieda Marcondes)

Publicado originalmente em junho de 1905, “Hereges” é o primeiro trabalho polêmico importante do jornalista e escritor inglês G.K. Chesterton. Pouco antes disso, ele havia se envolvido numa série de controvérsias com o editor do jornal Clarion, Robert Blatchford ‒ quem, curiosamente, abriu espaço em seu jornal para uma série de respostas do próprio Chesterton. Tais respostas e os seus artigos no jornal Daily News são a matéria-prima principal da visão única de vida que ele apresenta em “Hereges”.
Nascido em 1874, quando a religião e a ética vitoriana já estavam enfraquecidas, Chesterton foi criado em ambiente anglicano, mas, de acordo com o próprio autor, com pouco ou nenhum incentivo à crença ou prática religiosa. Em sua autobiografia, ele define o período de 1892 a 1895 como uma época de pessimismo e desespero, de uma obsessão incontrolável por idéias e imagens horríveis que o levavam a mergulhar cada vez mais fundo em um suicídio espiritual. Depois de certo tempo imerso nas “profundezas obscuras do pessimismo contemporâneo”, ele se revolta e cria, então, a teoria rudimentar de que a mera existência, reduzida aos seus limites primários, é extraordinária o suficiente para ser excitante. Conectado aos restos de um pensamento religioso por uma linha fina de gratidão, ele começa a ler os evangelhos; termos e imagens religiosas começam a aparecer cada vez mais em suas anotações.
Em 1896, Chesterton conhece sua futura esposa, Frances Blogg, quem exerce grande influência religiosa por toda a sua vida ‒ junto de outras figuras como o padre anglicano Conrad Noel e do historiador e escritor Hilaire Belloc. Já em 1904, em uma de suas respostas aos ataques de Robert Blatchford ao cristianismo no jornal Clarion, Chesterton diz, “Nós todos somos agnósticos até descobrirmos que o agnosticismo não vai funcionar”. Assim, com “Hereges”, é possível delinear o começo de um caminho que só chegaria ao seu destino em 1922, quando o autor finalmente se converte ao catolicismo.
No Brasil, pela editora Ecclesiae, é a primeira vez que uma edição em língua portuguesa de “Hereges” está sendo publicada. Apesar de chegar em momento não menos importante, o atraso que vinha desde o século passado é praticamente inexplicável. Uma das obras mais importantes de Chesterton, “Ortodoxia”, não poderia existir sem “Hereges”. Pois “Ortodoxia” foi escrita em resposta às críticas de “Hereges”; a primeira foi dedicada ao pai, a segunda foi dedicada à mãe; são, portanto, obras irmãs que se complementam e que conversam constantemente entre si. “Ortodoxia” apenas delimita e organiza de forma autobiográfica as conclusões que ele teve primeiro com “Hereges”. Ao mostrar o que implica em heresia, Chesterton ilustra o que implica em ortodoxia, e vice-e-versa.
“Hereges” apresenta vinte capítulos, cada um destinado a uma figura ou tendência moderna. Assim, o autor discute Rudyard Kipling, Bernard Shaw, H.G. Wells, o Comtismo, o “carpe diem” dos estetas, o Novo Jornalismo, a comunidade científica, entre outros. Para cada caso, ele emprega uma perspectiva teológica, analisando sua heresia e ressaltando a importância da ortodoxia. Dessa forma, Kipling é um herege por ser um cidadão do mundo, por não ter tempo ou paciência de se fixar definitivamente em nenhum lugar, ele representa o cosmopolitismo da sociedade moderna que avança e expande sem saber que a vida acontece quando nos enraizamos, quando nos prendemos em determinada causa ou comunidade; Shaw é um herege por não aceitar os humanos como são, por comparar homens com super-homens, com deuses ou gigantes, quando o segredo do cristianismo, e mesmo do sucesso em vida, está na humildade; Wells é um herege por duvidar do pecado original e da possibilidade da própria filosofia ao dizer que é impossível encontrar idéias seguras e confiáveis, que tudo sempre muda, mas são apenas as aparências que mudam, as idéias permanecem sempre as mesmas.
Ironicamente, a conclusão é a de que a maior heresia não é um conjunto de determinadas afirmações, mas a falta de crença em afirmação alguma. Pois até a blasfêmia depende de um ato de fé. A sociedade moderna, em nome da expansão e do progresso, escolheu não definir nenhum padrão do que é bom, nenhuma direção distinta a seguir, nenhuma convicção específica a adotar, mas progresso só é progresso quando sabemos para onde estamos indo e o que queremos exatamente. Para Chesterton, existe um pensamento que impede o pensamento, e esse é o único a ser combatido. Se pode existir uma evolução mental, ela só pode ter a ver com um aumento de certezas, de mais e mais dogmas, e não mais e mais dúvidas.
No final do livro, fica claro que Chesterton está discutindo o papel da religião em nossas vidas. Mas, em nenhum momento, ele espera provar que suas doutrinas são verdadeiras. Ele sabe que religião é, fundamentalmente, uma questão de fé e não de demonstração; a revelação não pode ser empiricamente comprovada. Apesar de prover algumas explicações sobre a existência humana ao demonstrar casos da experiência em que o materialismo simplesmente não satisfaz, o livro contém os mistérios que vão muito além da capacidade do pensamento humano. Para Chesterton, é a escuridão do mistério cristão que ilumina a todas as coisas. Ele diz que a religião não é uma coisa que pode ser excluída justamente porque ela inclui ao todo. Não é a razão que nos mantém sãos, mas o misticismo. Racionalmente, podemos duvidar de tudo e de todos, podemos acreditar na tese de que estamos todos em um sonho e de que nossa família e nossos amigos nada são além de criações da imaginação. É o misticismo, portanto, que nos permite afirmar a própria existência como um dogma religioso. Para nos tornarmos realmente conscientes e vivos, não podemos nos perder em pessimismo e ceticismo, mas afirmar o papel da religião e do dogma e nossas vidas: “Seremos daqueles que viram e mesmo assim acreditaram.”
As obras de Chesterton impressionam por parecerem atuais, ao ponto de nos esquecermos da época em que foram concebidas. Ele aponta os erros em pensamentos e condutas correntes, como o vegetarianismo e a busca vazia de hábitos saudáveis, ou a descrença na monogamia e na instituição da família. Seus comentários são avançados para os dias de hoje no sentido em que vão contra as novidades e zelam por algo mais antigo e verdadeiro; seu conjunto de convicções é mais coerente e faz mais sentido do que o de algumas pessoas ainda muito bem vivas. Enquanto o pensamento moderno já parece desgastado por sua própria ineficácia em questões práticas, é bem provável que as obras de G.K. Chesterton permaneçam atuais e necessárias por muitos e muitos anos ainda.

FICHA TÉCNICA
Título: Hereges
Autor: G.K. Chesterton
Tradução: Antônio Emílio Angueth de Araújo e Márcia Xavier de Brito
Edição: 1ª
Formato: 16 X 23 cm]
Número de Páginas: 298
Acabamento: Brochura / Luxo
ISBN: 978-85-63160-09-6
Lançamento: 2011

4 comentários:

  1. Eu ainda não terminei, mas li um bocado da Ortodoxia. Acho que parei porque não estava entendendo bem.
    A prosa do Chesterton é muito interessante, é divertida, mas misteriosa, faz insinuações cujo sentido último me escapa.
    É claro que vou colocar este irmão da Ortodoxia para atravancar ainda mais minha pobre e cada vez mais incapaz estante de livros.
    Quem sabe venha junto com o lançamento algum "insight" esclarecedor...

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  2. Interessante o novo livro. Vamos ler!
    Só uma crítica: "(...)Ao mostrar o que implica em heresia, Chesterton ilustra o que implica em ortodoxia, e vice-e-versa.(...)" Agora estou dando uma de chato da lígua, mas o verbo implicar não aceita o complemento "em", aliás, um erro bastante comum por aí; eu, inclusive, já o cometi mais de uma vez, fica o alerta.
    Outra coisa, não sei se é uma frase de Cheterton, utilizando-se do Evangelho, ou se foi a autora que se enganou, mas a frase de Cristo, ao responder a São Tomé no episódio após a ressurreição é "Felizes os que não viram e mesmo assim creram" e não “Seremos daqueles que viram e mesmo assim acreditaram”. De qualquer forma, precisamos ler o livro e ver, ainda mais por se tratar de Chesterton, alguém que constantemente brinca com tudo com uma inteligência extremamente perspicaz...

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  3. Pedro, eu também me senti como vc em alguns momentos, acho que é fruto de ainda termos muito chão pela frente até alcançarmos tudo o que ele disse, e, talvez, alguns problemas nas traduções para o português... Com certeza ajudará muito um livro que tenha sido escrito antes e que seja como que um primeiro capítulo.

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  4. João, o Augusto,

    também adquiri certa implicância com o uso equívoco do verbo implicar, mais propriamente com a regência do verbo, que é transitivo direto, como disse.
    Aprendi isso e nunca mais esqueci numa aula do Professor Mallet, quando criticou severamente o português da classe na prova.
    Eu acredito que a frase é do Chesterton, parece dele, pelo menos. O sentido é diverso do Evangelho, sendo um pouco cômico. Nosso Senhor ressaltou que feliz é aquele que crê, mesmo sem ter visto. Chesterton brinca, gozando de nós todos, quando sugere ser honroso crer, após ter visto. É uma piada por meio do paradoxo implícito.
    Quando entender um pouquinho mais do livro, me ajude, por favor!

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