quinta-feira, 30 de abril de 2009

Meditação à Beira de um Poema

Podei a roseira no momento certo
e viajei muitos dias,
aprendendo de vez
que se deve esperar biblicamente
pela hora das coisas.
Quando abri a janela, vi-a,
como nunca a vira,
constelada,
os botões,
alguns já com o rosa-pálido
espiando entre as sépalas,
jóias vivas em pencas.
Minha dor nas costas,
meu desaponto com os limites do tempo,
o grande esforço para que me entendam
pulverizaram-se
diante do recorrente milagre.
Maravilhosas faziam-se
as cíclicas, perecíveis rosas.
Ninguém me demoverá
do que de repente soube
à margem dos edifícios da razão:
a misericórdia está intacta,
vagalhões de cobiça,
punhos fechados,
altissonantes iras,
nada impede ouro de corolas
e acreditai: perfumes.
Só porque é setembro.
(Adélia Prado)

"Smile"

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Uirapuru Poetinha


A passarada nem pia
Quando canta o uirapuru.
Passarinho...inho...inho
Vem e espanta o urubu!

Eta urubuzão retinto,
Dom das trevas infernais,
Bicho preto encardido
Diz o corvo “nunca mais”!

Saia já! Ser maldizente!
Que cresce agora um regato,
Neste árido nascente,
Eis o poeta do mato!

Uirapuru trovador,
O divino menestrel
Um solista encantador
Ave enviada do céu!

Desculpa este meu versinho,
Com rima tão casual,
Justo você passarinho
Poetinha genial!

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Conhece-te a ti mesmo

Peço licença aos amigos para fazer uma observação bastante pessoal, o que obrigou-me a criar um novo marcador para textos do blog, que, muito pretensamente, denominei "Divã". Inauguro oficialmente a sessão desabafo deste blog. E o faço para dizer algumas coisas.
A primeira: andei vasculhando o blog "O Indivíduo" e gostei muito. Especialmente o "Domingo com Poesia". Tem muitos comentários sobre o Bruno Tolentino e outros, e acredito que pode ser uma boa influência para o nosso caminho. É evidente a enorme influência do Olavo sobre o autor, inclusive no estilo de escrever. Há textos bem interessantes.
Segundo: No mesmo blog encontrei os textos que coloquei logo abaixo, que entre outras coisas dizem respeito a procura da identidade. Não são nenhuma maravilha da literatura, mas achei interessante a discussão... Achei legal colocá-los aqui, porque tem o estilo "blog" muito semelhante ao nosso, e dizem respeito a algo que tem também nos incomodado bastante: a procura do vocação, do caminho, a nossa caminhança.
E ai vem o meu desabafo mais pessoal. Porque na última vez que trocamos e-mails eu realmente estava muito chateado porque sentia que de algum modo estávamos nos distanciando, de nosso grupo, deste blog, e de tudo que está por trás dele. Tive medo, como ainda tenho, de que nos perdessemos... Tive medo, como ainda tenho, de esquecermos nossas idéias e seguirmos caminhos diversos. Tive medo, insegurança... Depois conversamos e pensei muito a respeito. E queria dividir com vocês a minha reflexão.
Porque percebi que não temos que ter medo. Temos é que ter esperança. Lembrei que não existe caminho, mas apenas o caminhar, a caminhança. Lembrei que temos que viver o momento presente e não nos massacrar mesquinhamente e neuroticamente para atingirmos certos objetivos que muitas vezes impomos para nós mesmo, sem saber se realmente somos capazes deles e se seremos felizes neles. E lembrei novamente da mesma vaidade e orgulho de sempre, sempre encostando ao nosso lado, nos fazendo querer ser mais e mais, numa eterna insatisfação... Juizes, poetas, professores, intelectuais, pais... Sempre mais, mais... Lembrei que precisamos ter calma... Que a vida não vai se resolver amanhã, e não vai se resolver definitivamente nunca. Nem mesmo quando passarmos em algum concurso ou arrumarmos algum emprego. Porque a vida se resolve todo dia. E temos que estar preparados para o erro, para a frustação, para os problemas, assim como para a alegria, a felicidade e a realização. Não podemos exigir demais, cobrar de mais, nem dos outros e nem de nós mesmos... E lembrei-me que Deus, o criador de tudo, ele mesmo, é na mesma medida o Senhor, que nos exige obediência e nos quer santos, e o Pai, que nos acolhe e perdoa. Saibamos também estar de braços abertos para nossa alma e para os nossos irmãos. Que o caminho se faz todo dia, cada passo, na esperança. E vamos sempre juntos. Caminhança...

Seguem os textos do blog "O indivíduo":

Paraibagem Metafísica
Publicado em 16 de abril de 2009 por Pedro Sette CâmaraCultura

Está difícil parar e escrever aqui. Mas vai uma pequena observação.
Os brasileiros que moram fora do Rio e de São Paulo mistificam Rio e São Paulo e tentam mostrar-se atentos ao que se diz nessas cidades.
Os brasileiros que moram no Rio e em São Paulo querem mostrar-se atentos ao que acontece em Nova York, Paris ou Londres.
Até os brasileiros que moram em Nova York, Paris ou Londres querem mostrar-se integrados às suas cidades e à sua nova identidade cosmopolita.
A busca pela identidade é mais forte do que a busca por um objeto, pelas famosas “coisas mesmas”. Mas isso até que é normal. A questão é escolher modelos melhorezinhos. O “parisiense” é uma abstração. É melhor e mais vantajoso querer ser Baudelaire do que querer mostrar-se “parisiense”.
Confundir contumazmente o acidental com o essencial, ler o texto sem contexto - ou, pior ainda, com contexto pequeno - , eis a marca universal da paraibagem.

Sobre a Futilidade de Querer Ser Outro
by Sergio de Biasi - Publicado em 17/04/2009

Escrevo este texto em parte motivado por este texto aqui do Pedro no qual ele diz que
O “parisiense” é uma abstração. É melhor e mais vantajoso querer ser Baudelaire do que querer mostrar-se “parisiense”.
Sobre isso, eu comento o seguinte.
Eu entendo perfeitamente sob que métrica querer ser Baudelaire é melhor do que querer ser parisiense. Qualquer um pode, em princípio, ser parisiense, sem precisar para isso realmente de grandes méritos ou sequer realmente grandes esforços. Mude-se para Paris e fique lá tempo suficiente. Se o sujeito não for uma ostra e um retardado completo (tá, nem todo mundo vai atender a esse pré-requisito, mas se ele for atendido), ele vai aprender francês, e conhecer a cidade, e eventualmente poder com pleno direito ser chamado de parisiense, mesmo que tenha nascido em Novosibirsk. E daí? Se for uma mera questão de “status” ou deslumbramento com sentir-se por osmose identificado com Baudelaire - e é entre muitos outros motivos de pessoas como Baudelaire que vem o status de ser parisiense - então é como achar que se você comprar muitos livros ficará automaticamente culto. Então, em resumo, eu entendo sim a futilidade de querer ser “parisiense” ou similares.
Por outro lado, e é aí que vem a minha observação, querer tornar-se Baudelaire não me parece um objetivo melhor. Note-se, tornar-se parisiense pelo menos é um objetivo atingível (tanto quanto seja possível capturar a abstração do que seja ser parisiense). Mas tornar-se Baudelaire não é. É fisicamente impossível tornar-se, no sentido literal, Baudelaire. (Isso me lembra “Quero Ser John Malkovich“, uma original parábola sobre querer ser o outro.)
Então a única forma coerente de entender essa afirmação é como metáfora. Não é tornar-se Baudelaire, e sim Baudelariano, à altura de Baudelaire, ou como Baudelaire. Mas aí começamos a escorregar para o mesmo tipo de abstração que é a de ser “parisiense”. Quem julga ou como medir se somos suficientemente “como Baudelaire”? E que tipo de similaridades estamos buscando? Certamente não se trata de vestir as mesmas roupas ou ter a mesma aparência. Provavelmente também não se trata de ter o mesmo caráter ou acreditar nas mesmas idéias. Será que é escrever no mesmo estilo? Provavelmente também não. Imagino que seja mais na direção genérica de escrever com a mesma qualidade. Ou ter o mesmo impacto na cultura humana. E a esse ponto já não abstraímos o Baudelaire a ponto de não restar mais do que um fiapo do ser humano Baudelaire? Já não se torna algo tão abstrato quanto, bem, como querer ser parisience? Afinal, quem quer ser “parisiense” no fundo anseia pela identificação genérica com tudo que Paris represente, inclusive Baudelaire. E se nos é permitido argumentar que não é por motivos fúteis sobre Baudelaire, me parece muito razoável que se possa argumentar que não seja por motivos fúteis sobre ser parisiense. Ou será que por acaso o próprio Baudelaire era parisiense pra ficar contando vantagem? Alías, da mesma forma, poderíamos argumentar que Baudelaire era Baudelaire só para poder ficar contando vantagem.
Então, se por um lado dar excessiva importância a poder dizer “eu sou parisiense” me parece fútil, sem dúvida, por outro lado isso é mais ou menos acessório e periférico aos fundamentos mais profundos da personalidade de uma pessoa. Já querer ser Baudelaire me parece que leva a problemas mais graves. Tornar-se Baudelaire exige um comprometimento mais profundo, e um maior grau de cirurgia mental. Tudo isso para atingir um objetivo tão fútil quanto querer ser parisiense.
Diante disso eu digo que não, nós não temos que querer ser parisienses, ou Baudelaire, ou Shakespeare, ou Einstein, ou iguais a quem quer que seja. Embora existam de fato pessoas que podem servir de referência cultural, científica, moral e sob outros aspectos, querermos “ser como elas” é um péssimo caminho. Nós temos que ser é nós mesmos, e o melhor que conseguirmos ser de acordo com nosso julgamento e com nossa consciência. No processo, se formos muito bem sucedidos, é muito provável que acidentalmente nos tornemos parisienses, Baudelarianos, Shakesperianos, Einstenianos e muito mais. Mas isso tudo como acidente e efeito colateral de sermos nós mesmos, de buscarmos ser o melhor que nós mesmos podermos ser.
Querer ser o outro, por outro lado, nos distancia de nossas reais potencialidades e nos coloca perseguindo fantasmas, e buscando frustradamente, esquizofrenicmante, mesquinhamente, futilmente, algo que só só o outro pode ser. Muito melhor é fazer as pazes com quem você é e tentar exercer essa inalienável função da melhor e mais plena forma que você conseguir.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Sobre a "Filosofia" de João Augusto

Trata-se de uma poética elegia aos livros e à sabedoria advinda da leitura, tesouro máximo da civilização humana? Ou existiria nas entrelinhas um drama inconfessável da personagem, que se vê no mesmo dilema de Fausto de Goethe? Sofreria este homem o dilema daquele que assiste tudo de cima de um edifício alto, que vê de longe o mundo acontecer, todos em busca da felicidade, mas que, no entanto, esta afastado deste mundo? (“ebulição diária de uma comunidade em busca da felicidade”) Um homem que se refugia numa biblioteca (“Decidi fugir para um local tranqüilo”), como um templo de libertação e felicidade, e que o protege do medo de descer ao chão? (“Cheguei ao desejado e inóspito ambiente, estava no alto da cidade, eu somente fugira, sem qualquer objetivo, simplesmente era indispensável não estar mais...”) Estaria este homem realmente liberto, ante a manifestação de uma força quase milagrosa reveladora deste refúgio (“Tudo a confirmar que o inefável se manifestara...”)?
Onde está a verdadeira sabedoria? O que vem antes: a experiência ou a teoria? O entendimento da teoria não depende da experiência? E a experiência não se enriquece com a teoria? Que pode entender dos livros um homem distante do mundo? Que pode escrever nos livros um homem que não se arrisca na vida? Quem pode viver sem compartilhar idéias em teorias? Que experiência tem o homem inculto? Que homem é aquele que não tem livros? Que pode um homem que apenas lê a vida, mas não a vive? Que vale mais: as letras dos livros ou a voz da experiência? O discurso ou o exemplo?
De que valem os conselhos de um pai, se os filhos não receberam o amor necessário para que tivessem condições de interiorizá-los? Mas se o valor foi interiorizado pela experiência do amor, de que valem os conselhos ou os livros? Qual a razão das palavras de um belo discurso sobre a ética, se um homem não tem dentro de si o certo e o errado, se quando criança não recebeu de seu pai a noção de limite? Então o discurso é inútil? Um homem tomado pelo vício é capaz de compreender a palavra divina por seu próprio esforço ou pelo esforço de quem queira ajudá-lo? Ou apenas o homem que carrega dentro de si o germe do amor, que recebeu de sua experiência e de seus afetos é capaz de compreender? Mas, então a palavra é inútil?
Antão era analfabeto. Herdou a fé cristã de seus pais e conviveu numa família harmoniosa, de onde recebeu todo o amor. Com vinte anos de idade, após a morte dos pais, vendeu todos os bens herdados e passou a viver recluso no deserto, morando em cavernas e antigos túmulos de pedra, praticando o jejum e a renúncia, numa completa solidão. Morreu aos 105 anos. Passou os dias de sua vida a orar, a lutar contra os próprios demônios e a cultivar um grande milharal. Deixou o deserto raríssimas vezes, sempre ansioso para nele retornar. Tornou-se santo, Santo Antão.
Agostinho era um mestre da retórica. Filho de uma família conturbada e dividida, desde cedo sofreu com os problemas em casa. Durante muito tempo foi um cético. Estudou literatura grega e romana, Cícero, Virgílio e os grandes filósofos. Viveu em cidades, enriqueceu-se, ocupou cargos importantes na sociedade de seu tempo. Inteligente, perspicaz, dedicado ao estudo, era um sábio. Com os anos, após o conhecimento da fé cristã, converteu-se. Tornou-se santo, Santo Agostinho.
Por fim, eis a ironia de Fernando Pessoa, que devia estar rodeado de livros quando escreveu esta provocação:

Liberdade
(Fernando Pessoa)

“Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem o mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...“

domingo, 5 de abril de 2009

La pregunta

Saudade - Qué será?... yo no sé... lo he buscado
en unos diccionarios empolvados y antiguos
y en otros libros que no me han dado el significado
de esta dulce palabra de perfiles ambiguos.

Dicen que azules son las mañanas como ella,
que en ella se oscuresen los amores lejanos,
y un noble y buen amigo mío (y de las estrellas)
la nombra en un temblor de trenzas y de manos.

Y hoy en Eça de Queiroz sin mirar la adivino,
su secreto se evade, su dulzura me obsede
como una mariposa de cuerpo extraño y fino
siempre lejos - tan lejos! - de mis tranquilas redes.

Saudade... Oiga vecino, sabe el significado
de esta palabra blanca que como un pez se evade?
No... Y me tiembla la boca su temblor delicado...
Saudade...

Pablo Neruda
Poesia de Crepusculario, 1923, p. 42.

La respuesta

Saudade es soledad acompañada

Saudade es soledad acompañada
Es cuando el amor no se fue aún, pero la amada sí
Saudade es amar un pasado que todavía no pasó
Es rehusar un presente que nos lastima,
Es no ver el futuro que nos convida...
Saudade es sentir que existe lo que no existe más...
Saudade es el infierno de los que perdieron
Es el dolor de los que quedaron atrás
Es el gusto a muerte en la boca de los que siguen...
Sólo una persona en el mundo desea sentir saudade:
"Aquella que nunca amó"
Y ese es el mayor de los sufrimientos:
No tener por quién tener Saudades,
Pasar por la vida y no vivir.
El mayor de los sufrimientos es no haber nunca sufrido.

(Poesia atribuída a Pablo Neruda, fonte ignorada)

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Sim ou não!

Não queria atropelar o grito poético do querido J.A.! (que, aliás, ainda vou comentar a altura...).
Ocorre que eu já havia escrito estas idéias e quando entrei no blog para publicá-las percebi que o amigo tinha acabado de “postar” o seu texto. Como acredito que tudo nos encaminha na mesma direção e os textos são de naturezas diversas, achei que não haveria problemas. Além do mais, diante da penúria que tem passado o nosso endereço internético nos últimos dias, que esta dupla intervenção seja o sinal de um bom presságio!


Um pensamento me ocorre. Quando observamos a história, percebemos que a humanidade já atravessou momentos especialmente muito difíceis. Tempos marcados por guerras, desequilíbrio social, crise nos padrões morais... Tempos em que a cultura e o saber são relegados à segundo plano e emerge no homem a ditadura dos piores vícios. Às vezes parece mesmo que a história é cíclica e que, de tempos em tempos, algumas realidades se repetem e os mesmos desafios, com novas faces, têm de ser novamente enfrentados.
Vejam, por exemplo, esta descrição de um tempo muito distante do ano de 2009, quando o Império Romano entrava em decadência, por volta do ano 300:

“[...] A estrutura social de Roma não tinha sido realmente afetada pela doutrina cristã. A nobreza, os patrícios e os ricos continuavam sua vida de abundância e luxo, que lhes era tornada possível pelos escravos e pobres que eles exploravam e desprezavam. Até mesmo os cristãos, cujo Evangelho ensinava diferente modo de vida, não podiam escapar ao fascínio das convenções sociais. Todos em Roma, pagãos e cristãos igualmente, viviam na excitação do luxo e dos prazeres mundanos. Era a fuga de uma civilização perseguida pelo senso de sua ruína iminente. Os homens, enfatuados pelo orgulho, sempre em busca de melhores posições e de mais cargos, em nada pensavam senão em dinheiro e poder. As mulheres gastavam o tempo em rendas e folhos de camisa. Vestidas com trajes suntuosos, com cabeleiras de ouro, aquelas bonecas empoadas e pintadas eram transportadas em liteiras de marfim, de banquete em banquete, de dança a dança, até que, exaustas pelo peso de suas jóias, buscavam o apoio de seus escravos, para levarem-nas a seus leitos de ócio”. (René Fülöp-Miller, “Os Santos que abalaram o Mundo”).

Não é muito difícil imaginar que o texto, levemente adaptado, descreveria com muita propriedade o nosso tempo. Sei que não digo nenhuma novidade a vocês e que muitas vezes já pensamos nestas “coincidências” do passado, que na verdade apenas refletem sempre o mesmo desafio do homem e de sua natureza, na constante luta contra o mal. Mas apenas queria chamar atenção para que refletíssemos novamente sobre o nosso velho dilema a respeito da nossa vocação neste mundo.
Naquele momento da história, diante de tamanha crise, nasceu e cresceu cada vez mais o movimento monástico. Homens e mulheres preocupados com a situação do mundo e desejosos de afastar-se da decadência e dos males mundanos recolheram-se em muros e iniciaram uma verdadeira e lenta “revolução” cultural para a época. Foi graças aos mosteiros e conventos que a cultura ocidental foi preservada e, mais do que isso, foi fortalecida e, mais tarde, espalhada para fora dos muros. Foi deste movimento que nasceram os hospitais, os asilos, as universidades, as bibliotecas. Uma página muito bela escrita por grandes homens.
Nos outros momentos difíceis da história sempre surgiram movimentos, grupos, que inventaram formas de preservar os valores fundamentais da humanidade, a cultura, a religião, os valores morais. Que praticaram estes valores, que deram o seu exemplo, ainda que para isso sofressem perseguições e mortes. Sempre houve uma resposta à altura para preservar o Bem. Graças a Deus tudo isso sempre foi preservado de alguma forma.
Refletindo sobre estes fatos históricos, penso mais uma vez no dever que temos de seguir este chamado que sentimos e compartilhamos. Sozinhos somos fracos, pouco, muito pouco. Mas juntos ganhamos força e podemos muito. Não tenho dúvidas de que vivemos um desses momentos especialmente difíceis da humanidade. É preciso ter consciência disso. Se olhamos o passado percebemos facilmente. É difícil ter a real dimensão do que acontece no tempo presente, mas podemos ter uma boa idéia: violência, medo, perdição, decadência moral, elogio dos vícios, culto ao pecado, perda de força dos valores religiosos, apego material, oportunismo, malícia...
Muitas de nossas dúvidas, nossos sofrimentos decorrem exatamente deste nosso tempo. E precisamos saber que a vida exigirá de nós uma posição, uma decisão com relação a tudo isso e existe apenas uma escolha certa. Temos que assumir a nossa responsabilidade e agir corretamente, dando o nosso exemplo. Sinto cada vez mais que encontro em vocês pessoas muito especiais. Nosso encontro não foi casual. De algum modo algo deve nascer destas nossas conversas, destas nossas reflexões. Não estou dizendo que vamos mudar o mundo... Não se trata disso. Estou dizendo que, assim como cada homem na Terra, temos a nossa responsabilidade. E talvez tenhamos que exercê-la em conjunto. Não sabemos ainda como. Mas vamos aguardar o que a vida vai nos trazer. Não sei se decidiremos nos isolar em desertos e cavernas, como faziam os primeiros ermitões, em fuga à vida mundana demasiada perversa. Ou se vamos nos tornar beneditinos, franciscanos ou descobriremos uma nova comunidade, talvez um santo ou profeta caminhando pelas nossas ruas a quem possamos seguir. Ou se será como membros do Poder Judiciário. Mas o que não podemos esquecer jamais é que nós temos uma responsabilidade e que o chamado para assumi-la já começou há muito tempo a ser feito. Caberá a nós responder ou não a Ele. Não temos meio caminho. Ou é sim, ou é não.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Filosofia

Meus olhos secaram, usurpou-se toda e qualquer umidade ocular, a vista ficou embaralhada, a tontura dominou-me e embotou meus pensamentos. Decidi fugir para um local tranqüilo, dedicar-me a afazeres manuais, quem sabe arar a terra, cuidar de plantas, tudo menos a presença incômoda de meu trabalho.

Cheguei ao desejado e inóspito ambiente, estava no alto da cidade, eu somente fugira, sem qualquer objetivo, simplesmente era indispensável não estar mais... De lá era possível observar toda a ebulição diária de uma comunidade em busca da felicidade. E até mesmo ouvi-la! Mas não como parte dela, ela estava lá como em uma bolha, eu era a criança que olha um terrário com um formigueiro em ação, os insetos sequer se importavam com o observador. O vento batia refrescante em minha face, aliviando-me, trazendo-me uma boa sensação de esperança, talvez o prenúncio de um desses acontecimentos que nos marcam para o resto de nossas vidas.

Avistei nas proximidades uma enorme construção muito curiosa, típica dos nossos tempos, fértil em ângulos ousados e cores exuberantes, talvez um salão de congressos ou algo do gênero. Aproximei-me sem grandes expectativas e notei a uma distância razoável a presença de muitíssimos livros. Era uma biblioteca.

Animei-me, ali estava a razão obscura de minha presença enigmática naquele local um tanto quanto misterioso. Vi senhoras com ares inconfundíveis de bibliotecárias tomando conta da entrada e saída de pessoas, estaquei. Milhares de juízos vieram a minha mente e temi, poderia ser perigoso avançar, a principal conclusão de minhas impressões era que o sublime nem sempre é desejado, ao contrário, querem encarcerá-lo.

Para os que já estão com um sorriso estampado no rosto, realizando mil elucubrações quanto ao desfecho do episódio, digo que se enganaram! O surpreendente foi que quando venci minhas aflições, encorajei-me e as mulheres abriram um sorriso e disseram-me que avançasse, bastaria esticar os braços e folheá-los.

Fui dominado por uma sensação única. Milhares de livros disponíveis, todos os autores de todos os tempos, documentos inexplorados, biografias a minha espera, a história da humanidade, todas as ciências humanas, estórias inexplicáveis, enfim, toda a memória humana!

O incrível é que um mau presságio ainda me incomodava, algum desses fiscais que se alimentam de livros viria até mim e me diria a maneira correta de tocar os livros, eles não poderiam sair das estantes, é preciso ter uma carteirinha, educadamente me convidaria a pagar uma mensalidade, diria que o expediente estava terminado, perguntaria se era a primeira vez que eu... Para minha alegria nada disso se confirmou! Tudo simplesmente estava ali!

Os olhos não me barraram, o espírito de liberdade era tal que somente o manuseio dos livros, a contemplação das capas, das letras, das gravuras, das fotos, das edições tomaram-me toda a tarde e tive a impressão de ter passado a dominar toda a cultura humana como que por infusão.

Quando um belo sol vermelho fogo se punha, resolvi partir. Despedi-me dos funcionários que me convidaram a voltar sempre. Tornamo-nos grandes amigos sem jamais havermos dialogado.

Aquele mesmo vento ainda estava ali, assim como ainda era possível avistar o longínquo fervilhar humano. Uma serena canção vinha de algum dos recônditos da mata que me envolvia. Tudo a confirmar que o inefável se manifestara...