quinta-feira, 2 de abril de 2009

Filosofia

Meus olhos secaram, usurpou-se toda e qualquer umidade ocular, a vista ficou embaralhada, a tontura dominou-me e embotou meus pensamentos. Decidi fugir para um local tranqüilo, dedicar-me a afazeres manuais, quem sabe arar a terra, cuidar de plantas, tudo menos a presença incômoda de meu trabalho.

Cheguei ao desejado e inóspito ambiente, estava no alto da cidade, eu somente fugira, sem qualquer objetivo, simplesmente era indispensável não estar mais... De lá era possível observar toda a ebulição diária de uma comunidade em busca da felicidade. E até mesmo ouvi-la! Mas não como parte dela, ela estava lá como em uma bolha, eu era a criança que olha um terrário com um formigueiro em ação, os insetos sequer se importavam com o observador. O vento batia refrescante em minha face, aliviando-me, trazendo-me uma boa sensação de esperança, talvez o prenúncio de um desses acontecimentos que nos marcam para o resto de nossas vidas.

Avistei nas proximidades uma enorme construção muito curiosa, típica dos nossos tempos, fértil em ângulos ousados e cores exuberantes, talvez um salão de congressos ou algo do gênero. Aproximei-me sem grandes expectativas e notei a uma distância razoável a presença de muitíssimos livros. Era uma biblioteca.

Animei-me, ali estava a razão obscura de minha presença enigmática naquele local um tanto quanto misterioso. Vi senhoras com ares inconfundíveis de bibliotecárias tomando conta da entrada e saída de pessoas, estaquei. Milhares de juízos vieram a minha mente e temi, poderia ser perigoso avançar, a principal conclusão de minhas impressões era que o sublime nem sempre é desejado, ao contrário, querem encarcerá-lo.

Para os que já estão com um sorriso estampado no rosto, realizando mil elucubrações quanto ao desfecho do episódio, digo que se enganaram! O surpreendente foi que quando venci minhas aflições, encorajei-me e as mulheres abriram um sorriso e disseram-me que avançasse, bastaria esticar os braços e folheá-los.

Fui dominado por uma sensação única. Milhares de livros disponíveis, todos os autores de todos os tempos, documentos inexplorados, biografias a minha espera, a história da humanidade, todas as ciências humanas, estórias inexplicáveis, enfim, toda a memória humana!

O incrível é que um mau presságio ainda me incomodava, algum desses fiscais que se alimentam de livros viria até mim e me diria a maneira correta de tocar os livros, eles não poderiam sair das estantes, é preciso ter uma carteirinha, educadamente me convidaria a pagar uma mensalidade, diria que o expediente estava terminado, perguntaria se era a primeira vez que eu... Para minha alegria nada disso se confirmou! Tudo simplesmente estava ali!

Os olhos não me barraram, o espírito de liberdade era tal que somente o manuseio dos livros, a contemplação das capas, das letras, das gravuras, das fotos, das edições tomaram-me toda a tarde e tive a impressão de ter passado a dominar toda a cultura humana como que por infusão.

Quando um belo sol vermelho fogo se punha, resolvi partir. Despedi-me dos funcionários que me convidaram a voltar sempre. Tornamo-nos grandes amigos sem jamais havermos dialogado.

Aquele mesmo vento ainda estava ali, assim como ainda era possível avistar o longínquo fervilhar humano. Uma serena canção vinha de algum dos recônditos da mata que me envolvia. Tudo a confirmar que o inefável se manifestara...

3 comentários:

  1. Inspirado na expresão artística de Miguelito, também tive meu momento de inspiração no dia de hoje.

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  2. Ainda vou comentar... Mas a leitura já trouxe o mesmo vento para as bandas de cá!

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  3. Adorei a crônica, meu caro amigo João Augusto. Pudera eu dispor de tamanha sensibilidade... ultimamente, apenas vislumbro nos livros a dimensão invencível de meus afazeres cotidianos, que me impelem para o inexorável.. a temível provação que se aproxima. Espero que nos vejamos em breve...

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