sábado, 28 de abril de 2012

As causas da aprovação do aborto pelo STF no Brasil

Entrevista com especialista em bioética, Padre Hélio

Por Thácio Siqueira
BRASILIA, quarta-feira, 18 de Abril de 2012 (ZENIT.org) – Diante da aprovação do STF sobre o aborto dos anencéfalos Zenit entrevistou o padre Hélio, expert da área de bioética, com a finalidade de refletir um pouco mais sobre as causas dessa aprovação.

O Pe. Hélio é sacerdote diocesano da diocese de Florianópolis (SC), graduado em odontologia pela UFSC, no Brasil, graduado em filosofia e teologia pela Universidade de Navarra, na Espanha, Mestrado em bioética pela mesma Faculdade; Mestrando em Teologia Moral pela Pontifícia Universidade da Santa Cruz (PUSC), na Itália, doutorando em bioética pela Faculdade de Medicina do Campus Biomedico di Roma (UNICAMPUS), na Itália e Mebro da Comissão de Bioética da CNBB. Para contato: hélio_bioetica@hotmail.com

A seguir publicamos a entrevista:

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O senhor acaba de retornar ao Brasil depois de um período de estudos na Europa. E chegou bem na hora em que o STF aprovava o aborto de bebês anencéfalos. Ainda que os Ministros Brasileiros tenham se sentido portadores de Novas idéias e Revoluções Éticas e Morais, o senhor não acha que estamos diante de pensamentos antigos, que pelo menos há uns dois ou três séculos invadiram o mundo Cristão Ocidental com mais força?

Sem nenhuma dúvida. Toda essa “pseudo-revolução” atual no Brasil – liderada por “pseudo-intelectuais” – não é nada novo na história da humanidade. São ideias da Idade Moderna (séculos XV a XVIII), que foram redesenhadas na primeira metade do século XX e que agora, atrasadamente, chega ao Brasil com maquiagem de ideias pós-contemporâneas. Insisto que é um movimento liderado por “pseudo-intelectuais”, pois não representam de nenhum modo o pensamento e os valores defendidos pela sociedade brasileira. Estes “líderes” querem colocar em prática ideias da Revolução Francesa com o objetivo de “iluminar” o povo brasileiro – mesmo que seja necessário ir contra a vontade deste povo.

Para o senhor, que acaba de chegar ao Brasil, qual é a impressão que tem ao ver um país com maioria Católica aprovar algo que vai contra a Moralidade Cristã e até mesmo contra a Razão científica e médica? 

Como você bem diz na pergunta, a decisão contra a vida das crianças anencéfalas não foi apenas uma decisão contra valores cristãos ou católicos. Foi uma aberração jurídica, científico-positiva, ética e moral. O Supremo Tribunal Federal não é competente para realizar a interpretação de uma lei de modo contrário à própria letra da lei, principalmente quando o texto está claramente redatado – este é um princípio básico de hermenêutica jurídica. A questão científica é clara: trata-se de uma vida, pois se a criança estivesse morta não haveria nada para ser julgado. Quanto à ética, é de uma lógica natural que não podemos matar a um inocente. Por fim vem a questão moral, que, baseada na ética, pode ir mais além, assumindo também valores próprios de uma religião, no caso do Brasil a religião Católica e de um modo mais geral as religiões cristãs. Ir contra esses valores não é proclamar a laicidade do Estado, mas fechar os olhos para os valores próprios e históricos de uma nação.

Será que mais do que uma aprovação do Aborto não se busca uma afirmação de um Governo Laicista que pretende mostrar o seu poder diante de tudo o que seja Religião, principalmente diante daquela instituição que tem maior presença como é a Igreja Católica?

Voltamos aqui à questão do modernismo/ Iluminismo. A intenção é fazer que o Estado assuma totalmente a função da religião e tentam fazer isso eliminando os valores próprios da Igreja, como se estes valores não tivessem base no próprio modo de ser humano e não constituíssem os valores e a identidade da Nação. Um Estado laico é necessário – a separação entre Igreja e Estado foi um grande avanço para ambas instituições – porém um Estado laicista, que, ao invés de independência da Religião tenta fazer-se contrário à mesma, é um Estado que desrespeita uma dimensão fundamental do homem – a religiosa. Porém, esquecem que é justamente através dessas manobras laicistas que despertarão “o Gigante brasileiro”, que possui “filhos que não fugirão à luta”.

As vezes parece que, na nossa "sociedade democrática", todos podem opinar, menos os cristãos e menos ainda os católicos. O senhor acha o mesmo?

Se por democracia entendemos um governo representativo dos valores da população, isso não deveria ser assim. Porém, se a interpretação de “sociedade democrática” for a mesma de “sociedade laicista”, o que haverá – e de fato há – será uma clara discriminação e preconceito a todos os tipos de valores não só religiosos, mas também éticos e morais. Hoje em dia o único preconceito válido é contra a Igreja e contra os sacerdotes – para este preconceito não existe lei nem punição.
                                 
Os argumentos utilizados para defender o aborto do bebê anencéfalo, às vezes, são comoventes e com histórias que parecem convincentes. Escuta-se muito por aí, até mesmo de católicos fervorosos e estudados, que seria muito melhor "interromper" a gestação e que esta interrupção não poderia ser chamada de aborto, já que o ser que estava no ventre materno não estava vivo e nem era uma pessoa. O que o senhor acha disso?

Se não fosse vivo não poderia ser cometido um aborto. Alguns dirão, é vivo, mas não seria humano. Essas pessoas teriam que explicar que espécie de vida seria então – Vegetal? Animal? Com DNA humano?

Os argumentos nesses casos sempre exploram o “sentimentalismo” tão característico do povo brasileiro. Mas não são argumentos racionais e nem mesmo verdadeiros.

Não podemos negar que se trata de uma situação muito complicada para a mãe, pois sabe que o seu filho, que carrega no ventre, não viverá muito tempo. Porém sabemos que mesmo sentimentalmente as mães sofrerão muito mais por terem sido “carrascos” ou mandantes da morte do seu próprio filho do que pela perda natural do mesmo.

Por exemplo, em grandes cadeias de televisão do nosso Brasil mostraram casos de mães que foram "obrigadas" a levar a gestação adiante e que hoje agradecem o governo brasileiro por terem libertado as mães do Brasil desta escravidão, de terem que levar nos seus ventres uma "criatura morta" e sem vida, sem terem a ajuda legal para poder interromper a gestação, ou seja, abortar. O que o senhor acha disso?

Infelizmente alguns meios de comunicação tem se esforçado por difundir ideias consideradas “politicamente corretas”, ainda quando contrárias à natureza própria do ser humano. A estratégia tem sido fazer acreditar que todo o Brasil está de acordo com essas ideias, sendo que o simples telespectador sente-se uma exceção.

Neste caso específico aproveitaram do sofrimento real dessas mães grávidas de anencéfalos para utilizá-las, estrategicamente. Porém não mostraram nenhum caso de mãe que tenha de fato abortado a seu filho anencéfalo, pois essa verdade não ajudaria na estratégia de aprovação.

Outra estratégia foi a de considerar anencéfalos somente os casos mais graves de anencefalia, desconsiderando – e consequentemente não mostrando – crianças anencéfalas já nascidas, como a menina Vitória, por exemplo, que já tem mais de dois anos e estava presente no julgamento do STF. Assim, a opinião pública foi induzida a acreditar que crianças anencéfalas não possuíam nem mesmo cabeça, ao mesmo tempo em que, na prática, se sabe que o diagnóstico de anencefalia é muito difícil de ser auferido e graduado. A partir de agora, todos os casos – inclusive o de crianças como a Vitória – tornaram-se passíveis de aborto.

A lei está aí. Sabemos que lei não é sinônimo de moralidade, mas podem realmente existir leis que vão contra a moralidade?

A lei humana deve sempre responder ao bem do homem e ao bem comum da sociedade. Caso contrário, deixa de ser uma lei e torna-se uma violência contra o homem e a sociedade. Sendo assim, cada pessoa tem a obrigação de desobedece-la.

O nosso dever agora é tentar frear o ativismo legislativo do Supremo Tribunal Federal que surgirá a partir desse juízo. Certamente, decorrente desse último juízo, não tardará a questão do aborto de crianças em outras situações graves. Além disso, de acordo com o voto de muitos dos juízes legitimando o aborto de anencéfalos pela incapacidade dessas crianças de vir a ter consciência plena, não duvidaria que o tema da eutanásia viesse a ser a seguinte polêmica.

Preconceitos (Francisco Daudt)

A palavra inglesa (também do latim) prejudice é mais precisa do que a nossa, pois sugere julgamento antecipado e prejuízo, dano. Já preconceito fala de um conceito pré-formado. Ora, você que está vendo essas manchas de tinta no jornal só entende o que quero dizer porque tem um conceito pré-formado (na escola e na vida) de como elas soam e o que significam. Ou seja, passamos a vida usando conceitos pré-formados que lhe dão sentido e que a salvam (quando você só atravessa no sinal verde, por exemplo). 
O clima do "politicamente correto" em que nos mergulharam impede o raciocínio. Este novo senso comum diz que todos os preconceitos são errados. Ao que um amigo observou: "Então vocês têm preconceito contra os preconceitos". Ele demonstrava que é impossível não ter preconceitos, que vivemos com eles, e que grande quantidade deles nos é útil. Estatisticamente úteis. Você entraria sozinho num elevador que só portasse um tipo muito mal-encarado? Está vendo? Eu não disse "pitboy marombado, cheio de piercings e tatuagens, com cabelo moicano". Bastou dizer "tipo mal-encarado" que você pensou "Melhor não...". E se ele for uma flor de pessoa? Mas a estatística diz que não, melhor não ("forma é conteúdo", dizem os filósofos). 

É noite, a rua é mal iluminada, e na sua direção, na mesma calçada vem um senhor negro de terno carregando uma pasta de trabalho. Por acaso seu coração dispara e você muda de calçada? Não, porque usou seus preconceitos, ainda que ele possa ser o assassino do parque ("Pouco provável", dirá você, usando a estatística a seu favor). 

Mas, afinal, quais preconceitos são pré-julgamentos danosos? São aqueles que carregam um juízo de valor depreciativo e hostil. Lembre-se do seu tempo de colégio. Quem era alvo dos bullies? Os diferentes. Pense nos apelidos: girafa; pintor de rodapé; rolha de poço; Pelé, tição; quatro-olho; nerd, CDF; "mulerzinha". Um amigo sardento era chamado de "arroto de Fanta"! As crianças parecem repetir a história da humanidade: nascem trogloditas, violentas, cruéis com quem não é da tribo, e vão se civilizando aos poucos. Alguns, nem tanto. Serão os que vão conservar esses rótulos pétreos, imutáveis, muitas vezes carregados de ódio contra os "diferentes", e difíceis (se não impossíveis) de mudar. 

O curioso é que existem preconceitos a favor. As pessoas belas são talvez o maior exemplo. Mas esses costumam mudar com relativa facilidade. Não demora muito para você descobrir que aquele Apolo tem um caráter questionável, e o preconceito já vai mudando. O problema são os preconceitos contra que resistem a tudo, impedindo que você veja a pessoa, o indivíduo, que deixa assim de ser "essa gente". O preconceito danoso sempre considera tribos, ou grupos, "os diferentes são todos iguais", sempre referidos como "eles". 
São esses preconceitos que devem ser punidos como crime, quando causam dano a alguém. Outra coisa bem diversa é um preconceito que percebemos em nós, mas cuidamos de questioná-lo e não deixar que ele transborde como prática. 


sábado, 21 de abril de 2012

Tolkien, Lewis, Chesterton e a Ética da Elfolândia (Taiguara Fernandes de Sousa)




Eu tenho medo dos racionalistas. Há quem se gabe de ser racionalista, pragmático. Eu tenho medo; a felicidade de assim sê-lo só poder ser uma felicidade de tolos. Sim, tolos racionalistas: nada mais que “tolice” para definir a perda do senso contemplativo perante o Real.

É o que diferencia o racionalista do elfo. Quando eu vejo em Tolkien aqueles seres belíssimos de cabelos dourados e orelhas pontudas apontando seus arcos para matarem orcs há quilômetros de distância eu me lembro de uma realidade invisível: São Miguel Arcanjo, repleto da graça divina, a lançar no inferno o primeiro dos demônios, o Demônio por antonomásia.

Tolkien me mostra com seus elfos e orcs o drama da Graça e da Queda, o maior drama da história, diz Chesterton: o drama da criatura que se revolta contra o Criador, da criatura que quer ser igual ao Criador, como se o causado pudesse ser sua própria causa. A irracionalidade da tentação de ser como Deus não me é provada pelo racionalista: sua “razão” não consegue contemplar o mistério da Graça Divina e de sua perda pela Queda. Mas Tolkien, com seu elfos e orcs, me mostra que há seres agraciados e outros corruptos e que os caminhos de ambos foram escolhidos por si mesmos.

O racionalista recorta a Realidade em partezinhas minúsculas para serem testadas em erlenmeyers; a sua “realidade” é apenas um pedaço miúdo criado à sua imagem e semelhança: é o que ele quer comprovar, a hipótese que ele quer testar, no seu laboratório. Não há como entender-se, assim, uma Realidade que é bem mais profunda, porque criada por um Criador infinito; esta Realidade, de fato, pode ser investigada, mas deve muito mais ser contemplada: não há compreensão da Realidade que não passe pela sua contemplação muito mais que por sua investigação. Era Santo Agostinho quem dizia para interrogar as árvores e o mar sobre quem era Deus. Mas você só interroga alguém depois que o vê e o contempla.

Tolkien, com seu anel tentador, me faz contemplar o drama do orgulho. “Um anel para todos governar”. Ora, é o próprio poder de Deus. É a criatura que quer ser Criador; a tentação inicial da soberba, que a Serpente astutamente apresentou aos nossos primeiros pais. Um erlenmeyer não me faz contemplar o drama que Tolkien me mostra com um anel. Um teólogo racionalista então dirá que de nada importa mostrar um anel sem estudar a Suma Teológica. Discordo. Impossível entender o que Tomás de Aquino escreve nos seus enormes volumes sem a experiência real da Queda e do pecado que faz perder a graça; não, não digo que se deva pecar para entender Santo Tomás e é aí que entra o anel de Tolkien: vendo o anel eu não preciso pecar para entender o que é o pecado. O que Tomás de Aquino disser em sua Suma sobre o pecado ser-me-á plenamente compreensível, porque me lembrarei do “anel para todos governar”, o anel que prometia fazer do homem Deus e que traz como resultado a morte do portador: é a experiência do pecado literária e simbolicamente demonstrada; é a teologia católica, mais do que em letras miúdas, enriquecida por uma experiência real, por um símbolo que guardarei na memória para a vida inteira, lembrando-me que “o salário do pecado é a morte”.

É como ver Lewis escrevendo sobre o sacrifício de Aslam na Mesa de Pedra para pagar a traição de Edmundo em “O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa”. O Leão se sacrifica para pagar uma dívida impagável contraída por outra pessoa consigo mesmo; a majestade de Aslam, criador e verdadeiro senhor de Nárnia, era infinita e por isso a traição de Edmundo era também de uma repugnância infinita; somente algo de valor infinito poderia pagar a dívida que Edmundo contraíra com Aslam. Mas quem, se Edmundo, o devedor, era finito? Somente o próprio Aslam poderia pagar a dívida impagável, porque sua majestade infinita o capacitava a tanto. E então Aslam, para pagar conforme a lei, se sacrifica na Mesa de Pedra, se entrega nas mãos dos iníquos, e seu ato de valor infinito pode pagar por Edmundo uma dívida infinita.

Eis o exato teor do Sacrifício do Calvário: Deus se faz Homem em Cristo para pagar por nós, homens, uma dívida impagável; sendo Deus, seu sacrifício tem valor infinito; sendo Homem, pode pagar por todos os homens. Lewis me mostra com Aslam o que Tomás de Aquino me ensinará na teologia. Eu poderia ilustrar a Suma Teológica com desenhos de Tolkien e Lewis. E é bem melhor fazê-lo assim: quem possua a experiência do real trazida pelos contos de Lewis e Tolkien não precisará, ao ler Tomás de Aquino, confundir-se com intrincados esquemas teológicos; simplesmente se lembrará dos elfos agraciados e dos orcs desgraçados, do anel tentador e do sacrifício de Aslam e entenderá tudo. É este entendimento que o símbolo provoca; o símbolo choca e se imprime na memória; quando a teologia e a filosofia chegam, amparam-se sobre o símbolo e são absorvidas por ele como água numa esponja. E eu entendo facilmente o que foi a Queda, o que é o pecado, o que é a Graça, porque tenho minha memória povoada de elfos, orcs, anéis e leões.

Um protestante não o entende. Um protestante não tolera os símbolos, porque vê a Revelação Divina como esquemas teológicos que ele precise construir: ele pega um versículo da Bíblia e vai interpretá-lo com o Livre Exame para construir sobre ele uma doutrina. Um católico, ao contrário, sabe que a Revelação é um depósito, é uma herança, que deve ser conservada: e um baú donde, como ensinou Nosso Senhor, tiramos coisas novas e velhas. Você não constrói sobre um baú: você o abre e procura lá dentro o que precisa, tira a coisa de lá e devolve ao lugar o que já havia; você se aprofunda no conteúdo do baú e conserva o que existe lá dentro, vendo que aquela caixinha de música ali escondida não serve só para tocar música, mas também para guardar jóias, e que ela não toca só uma música, mas apertando um botão, toca outra... A Revelação Divina, para o católico, é exatamente isso: eu não construo em cima do baú, não invento intrincados esquemas a partir da minha cabeça; eu conservo o que já existe e entendo sempre melhor o que já foi ensinado. Não mudo a caixinha de música que Nosso Senhor me deu, mas eu descubro que aquela caixinha de música também guarda jóias.

Um protestante não entende símbolos porque quer construir raciocínios em cima dele, e não deixar o conceito ser absorvido pelo símbolo que o significa. Ele não entende como um símbolo possa evocar vários sentidos que nos ajudam a compreender o real, como não entende que eu devo me aprofundar na Revelação, e não construí-la com o livre exame. É por isso que o pastor protestante insiste em gritar sempre mais alto numa igreja feia, enquanto o padre católico pronuncia as palavras da consagração em sussurros, numa catedral cheia de imagens e vitrais, com canto gregoriano e paramentos belos: o pastor é um racionalista que quer explicar, mas não simbolizar; o padre católico quer fazer contemplar o que é mistério da Fé e não deve nem pode ser entendido. Como felizmente disse-me um grande amigo meu – que logrou ter por primeiro nome o do Príncipe dos Apóstolos e por segundo o título dos Césares, Pedro Augusto – quem perde o símbolo perde Deus, pois Deus não pode ser entendido senão simbolicamente. O símbolo é a única via para a apreensão do mistério. Se eu conseguisse entender o mistério explicando-o, e não por um símbolo, ele já não seria mais mistério e eu seria maior do que Deus; se eu fosse maior do que o mistério de Deus, eu seria Deus e aí teria feito o caminho para me tornar um orc! É impossível fugir do símbolo para entender o mistério; e, no caso de Deus, não há outra via senão contemplar os símbolos, pois o Deus invisível é visível nas suas criaturas, e não o contrário.

Lewis era protestante anglicano, sim, mas o mais católico dos protestantes da época. E não poderia ser de outro modo, tendo tido como suas duas maiores influências dois católicos fervorosos: Tolkien e Chesterton, este último “pai literário” dos dois e um dos maiores pensadores católicos do início do século XX, talvez o maior.

Escrevi muito, mas tudo que falei se resume na ética da Elfolândia. Foi Chesterton quem deu seu brado de louvor a esta ética aprendida das sacerdotisas da infância, as babás. A Elfolândia, Chesterton o fala em “Ortodoxia”, nada mais é que a terra do bom senso: lá o céu julga a terra, não a terra julga o céu; lá existem milagres e deuses do rio e os mortais se submetem a eles; as criaturas não querem ser como o Criador; e aqueles que o queiram experimentarão o destino dos orcs ou da Bela Adormecida: a criatura abençoada com todos os dons ao nascer mas amaldiçoada com a morte.

Na Elfolândia contempla-se a Realidade, o símbolo mostra os profundos sentidos do Real, o Real que não pode ser cortado e testado em erlenmeyers. O homem interroga as árvores e o mar, as dríades e tritão. E todos falam de Deus, porque Deus é o Supremo Real: “Eu sou o que sou”, diz o Senhor a Moisés.

A Elfolândia ensina o homem a viver no mundo. Nenhum homem pode caminhar conscientemente neste mundo real se antes não contemplou, com as fadas, os rios de vinho e as macieiras douradas dos campos da Elfolândia. São elas que nos lembram que havia o Éden, e nós o perdemos.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Vocação por Saint-Exupéry

"Dificilmente podemos descrever o que é pilotar um avião... a não ser que você se entregue ao voo, como no amor."

(...)Mas, que é vocação?
Antes de mais nada, toda vocação é sempre espiritual. Ela é a descoberta de nossa verdadeira essência, que está intimamente unida ao ato pelo qual ela se torna efetiva. Cada ser chega, assim, a uma grandeza que lhe é própria. A vocação é uma resposta a um chamado ítimo e secreto, independente da vontade própria e das solicitações exteriores. Ela é, inicialmente, um poder que nos é oferecido. O caráter original de nossa vida espiritual é o nosso consentimento em fazê-la nossa. A vocação se torna, então, nossa essência verdadeira. Para satisfazê-la é preciso sacrificar-lhe os objetos habituais do interesse ou do desejo. Invisível, ela transfigura as mais humildes tarefas da vida cotidiana. A vocação é o sentimento de um acordo entre o que temos a fazer e os dons que recebemos. Ela é uma luz e uma força. É por ela que nascemos para a vida espiritual e temos o sentimento de não mais vivermos isolados e inúteis. A vocação nos faz responsáveis, sem jamais esperar por nossas possíveis hesitações. Sabemos, porém, que o homem tem medo de comprometer-se depressa demais. E os mais prudentes, assim como os mais ambiciosos, ficam em reserva e esperam... e deixam passar o momento, o chamado ou a vocação, porque eles desejam um destino mais brilhante, ou estão fechados dentro do estreito círculo das solicitações de tudo o que ambicionam abarcar. Os que têm a coragem de comprometer-se, longe de sentirem-se limitados, sentem-se fortes dentro de sua própria escolha.
A vocação só se manifesta na ação. Toda posse ideal, que se recusa a realizar, sob pretexto de dá-la pura, é pura ilusão. O homem é posto continuamente em face da opção e ele deve apostar e correr o risco dessa proposta. E a fidelidade a si mesmo, à sua vocação que é única no mundo, mesmo que seja no meio das maiores dificuldades, é a verdadeira coragem.
Exupéry podia escrever a 8 de dezembro de 1942:
"Julgo de pouca importância a coragem física, e a vida ensinou-me qual é a coragem verdadeira: é aquela que nos faz resistir à condenação do ambiente em que se vive. Eu sei, e disto tenho certeza, que fui muito mais corajoso em não me desviar do caminho traçado por minha consciência, apesar de dois anos de injúrias e difamações, do que se tivesse ido fotografar Mogúncia ou Essen."
E podia legar-nos este testamento pouco antes de morrer:
"Fui sempre coerente com meus princípios, assim como esses princípios eram coerentes com os interesses gerais que eles pretendem servir.
Minha posição é coerente com meus atos, é coerente com meus desejos.
Não há uma única linha escrita por mim, durante toda a minha existência, que eu precise justificar, riscar ou desmentir."
Sua vida prova que ele não teve medo de engajar-se cedo demais. A cada apelo, a cada vocação, ele sentia obrigado a escolher, a aperfeiçoar-se, a "renascer". Em Citadelle, Exupéry chama a vocação de "a voz de Deus que é necessidade, busca e sede inexprimíveis", e nós sabemos que ele lhe respondia sempre com um esforço de fidelidade cada vez maior.
"Sem esta vocação, que necessidade havia de levantar-te então à procura de teu cântico e a uma ascensão mais árdua a fim de colocar sob teus pés a paisagem montanhosa que se tornou desordem, ou para salvar em ti o sol, que não se ganha uma vez para sempre, mas que se ganha na busca de cada dia?"
(...)

Trecho de "Saint-Exupéry e o Pequeno Príncipe" de Rosa Maria.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Eu não!

O povo brasileiro tem um péssimo hábito, deixar que os outros resolvam tudo. Do dia a dia nos lares e estabelecimentos comerciais à rotina dos grandes centros de decisões políticas. Iniciativa é palavra que só existe no vocabulário se vier acompanhada de outro substantivo, promoção. Para a classe política, o vocábulo também sofre, e só é bem visto se acompanhado de seu par, o voto. Por que tomar uma atitude em benefício dos outros se ninguém atua em meu proveito? Por que resolver uma situação se não é de minha competência? E o resultado de tudo isso, todos sabem, o “salve-se quem puder” que se tornou nosso espaço público, aqui se aplica perfeitamente “o que é de todos, não é de ninguém”, ou melhor, de ninguém ou de alguém que trate de se apropriar dele, o que torna a frase ainda mais próxima de nossa realidade.
Ouvi outro dia de um trabalhador do setor público: “É preciso aprender a trabalhar no governo, não é igual na iniciativa privada onde as coisas precisam ser resolvidas, aqui cada um só faz sua obrigação.” Mas não caio no engano de crer que nossa iniciativa privada seja muito melhor, a ineficiência também é enorme, com a diferença que os olhos do patrão são mais rigorosos do que os olhos impessoais do aparato estatal.
E, assim, as pessoas vão se tornando mais mesquinhas, mais preocupadas com o seu umbigo, mais incompetentes e menos realizadas. Fenômeno muito sério! Como um enorme pedaço de terra com duzentos milhões de habitantes pode ser de ninguém? Como assim? É isso mesmo, até o brasileiro está se tornando um ninguém, não é uma comunidade em normal desenvolvimento, não querem desenvolver capacidades, progredir. Todos só querem se dar bem. E essa atitude também gera o total descaso para com os outros e para com o que é dos outros (ou de todos).
Enfim, falta ao brasileiro sonhar mais alto, falta ao brasileiro querer ser alguém na vida...