sábado, 21 de abril de 2012

Tolkien, Lewis, Chesterton e a Ética da Elfolândia (Taiguara Fernandes de Sousa)




Eu tenho medo dos racionalistas. Há quem se gabe de ser racionalista, pragmático. Eu tenho medo; a felicidade de assim sê-lo só poder ser uma felicidade de tolos. Sim, tolos racionalistas: nada mais que “tolice” para definir a perda do senso contemplativo perante o Real.

É o que diferencia o racionalista do elfo. Quando eu vejo em Tolkien aqueles seres belíssimos de cabelos dourados e orelhas pontudas apontando seus arcos para matarem orcs há quilômetros de distância eu me lembro de uma realidade invisível: São Miguel Arcanjo, repleto da graça divina, a lançar no inferno o primeiro dos demônios, o Demônio por antonomásia.

Tolkien me mostra com seus elfos e orcs o drama da Graça e da Queda, o maior drama da história, diz Chesterton: o drama da criatura que se revolta contra o Criador, da criatura que quer ser igual ao Criador, como se o causado pudesse ser sua própria causa. A irracionalidade da tentação de ser como Deus não me é provada pelo racionalista: sua “razão” não consegue contemplar o mistério da Graça Divina e de sua perda pela Queda. Mas Tolkien, com seu elfos e orcs, me mostra que há seres agraciados e outros corruptos e que os caminhos de ambos foram escolhidos por si mesmos.

O racionalista recorta a Realidade em partezinhas minúsculas para serem testadas em erlenmeyers; a sua “realidade” é apenas um pedaço miúdo criado à sua imagem e semelhança: é o que ele quer comprovar, a hipótese que ele quer testar, no seu laboratório. Não há como entender-se, assim, uma Realidade que é bem mais profunda, porque criada por um Criador infinito; esta Realidade, de fato, pode ser investigada, mas deve muito mais ser contemplada: não há compreensão da Realidade que não passe pela sua contemplação muito mais que por sua investigação. Era Santo Agostinho quem dizia para interrogar as árvores e o mar sobre quem era Deus. Mas você só interroga alguém depois que o vê e o contempla.

Tolkien, com seu anel tentador, me faz contemplar o drama do orgulho. “Um anel para todos governar”. Ora, é o próprio poder de Deus. É a criatura que quer ser Criador; a tentação inicial da soberba, que a Serpente astutamente apresentou aos nossos primeiros pais. Um erlenmeyer não me faz contemplar o drama que Tolkien me mostra com um anel. Um teólogo racionalista então dirá que de nada importa mostrar um anel sem estudar a Suma Teológica. Discordo. Impossível entender o que Tomás de Aquino escreve nos seus enormes volumes sem a experiência real da Queda e do pecado que faz perder a graça; não, não digo que se deva pecar para entender Santo Tomás e é aí que entra o anel de Tolkien: vendo o anel eu não preciso pecar para entender o que é o pecado. O que Tomás de Aquino disser em sua Suma sobre o pecado ser-me-á plenamente compreensível, porque me lembrarei do “anel para todos governar”, o anel que prometia fazer do homem Deus e que traz como resultado a morte do portador: é a experiência do pecado literária e simbolicamente demonstrada; é a teologia católica, mais do que em letras miúdas, enriquecida por uma experiência real, por um símbolo que guardarei na memória para a vida inteira, lembrando-me que “o salário do pecado é a morte”.

É como ver Lewis escrevendo sobre o sacrifício de Aslam na Mesa de Pedra para pagar a traição de Edmundo em “O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa”. O Leão se sacrifica para pagar uma dívida impagável contraída por outra pessoa consigo mesmo; a majestade de Aslam, criador e verdadeiro senhor de Nárnia, era infinita e por isso a traição de Edmundo era também de uma repugnância infinita; somente algo de valor infinito poderia pagar a dívida que Edmundo contraíra com Aslam. Mas quem, se Edmundo, o devedor, era finito? Somente o próprio Aslam poderia pagar a dívida impagável, porque sua majestade infinita o capacitava a tanto. E então Aslam, para pagar conforme a lei, se sacrifica na Mesa de Pedra, se entrega nas mãos dos iníquos, e seu ato de valor infinito pode pagar por Edmundo uma dívida infinita.

Eis o exato teor do Sacrifício do Calvário: Deus se faz Homem em Cristo para pagar por nós, homens, uma dívida impagável; sendo Deus, seu sacrifício tem valor infinito; sendo Homem, pode pagar por todos os homens. Lewis me mostra com Aslam o que Tomás de Aquino me ensinará na teologia. Eu poderia ilustrar a Suma Teológica com desenhos de Tolkien e Lewis. E é bem melhor fazê-lo assim: quem possua a experiência do real trazida pelos contos de Lewis e Tolkien não precisará, ao ler Tomás de Aquino, confundir-se com intrincados esquemas teológicos; simplesmente se lembrará dos elfos agraciados e dos orcs desgraçados, do anel tentador e do sacrifício de Aslam e entenderá tudo. É este entendimento que o símbolo provoca; o símbolo choca e se imprime na memória; quando a teologia e a filosofia chegam, amparam-se sobre o símbolo e são absorvidas por ele como água numa esponja. E eu entendo facilmente o que foi a Queda, o que é o pecado, o que é a Graça, porque tenho minha memória povoada de elfos, orcs, anéis e leões.

Um protestante não o entende. Um protestante não tolera os símbolos, porque vê a Revelação Divina como esquemas teológicos que ele precise construir: ele pega um versículo da Bíblia e vai interpretá-lo com o Livre Exame para construir sobre ele uma doutrina. Um católico, ao contrário, sabe que a Revelação é um depósito, é uma herança, que deve ser conservada: e um baú donde, como ensinou Nosso Senhor, tiramos coisas novas e velhas. Você não constrói sobre um baú: você o abre e procura lá dentro o que precisa, tira a coisa de lá e devolve ao lugar o que já havia; você se aprofunda no conteúdo do baú e conserva o que existe lá dentro, vendo que aquela caixinha de música ali escondida não serve só para tocar música, mas também para guardar jóias, e que ela não toca só uma música, mas apertando um botão, toca outra... A Revelação Divina, para o católico, é exatamente isso: eu não construo em cima do baú, não invento intrincados esquemas a partir da minha cabeça; eu conservo o que já existe e entendo sempre melhor o que já foi ensinado. Não mudo a caixinha de música que Nosso Senhor me deu, mas eu descubro que aquela caixinha de música também guarda jóias.

Um protestante não entende símbolos porque quer construir raciocínios em cima dele, e não deixar o conceito ser absorvido pelo símbolo que o significa. Ele não entende como um símbolo possa evocar vários sentidos que nos ajudam a compreender o real, como não entende que eu devo me aprofundar na Revelação, e não construí-la com o livre exame. É por isso que o pastor protestante insiste em gritar sempre mais alto numa igreja feia, enquanto o padre católico pronuncia as palavras da consagração em sussurros, numa catedral cheia de imagens e vitrais, com canto gregoriano e paramentos belos: o pastor é um racionalista que quer explicar, mas não simbolizar; o padre católico quer fazer contemplar o que é mistério da Fé e não deve nem pode ser entendido. Como felizmente disse-me um grande amigo meu – que logrou ter por primeiro nome o do Príncipe dos Apóstolos e por segundo o título dos Césares, Pedro Augusto – quem perde o símbolo perde Deus, pois Deus não pode ser entendido senão simbolicamente. O símbolo é a única via para a apreensão do mistério. Se eu conseguisse entender o mistério explicando-o, e não por um símbolo, ele já não seria mais mistério e eu seria maior do que Deus; se eu fosse maior do que o mistério de Deus, eu seria Deus e aí teria feito o caminho para me tornar um orc! É impossível fugir do símbolo para entender o mistério; e, no caso de Deus, não há outra via senão contemplar os símbolos, pois o Deus invisível é visível nas suas criaturas, e não o contrário.

Lewis era protestante anglicano, sim, mas o mais católico dos protestantes da época. E não poderia ser de outro modo, tendo tido como suas duas maiores influências dois católicos fervorosos: Tolkien e Chesterton, este último “pai literário” dos dois e um dos maiores pensadores católicos do início do século XX, talvez o maior.

Escrevi muito, mas tudo que falei se resume na ética da Elfolândia. Foi Chesterton quem deu seu brado de louvor a esta ética aprendida das sacerdotisas da infância, as babás. A Elfolândia, Chesterton o fala em “Ortodoxia”, nada mais é que a terra do bom senso: lá o céu julga a terra, não a terra julga o céu; lá existem milagres e deuses do rio e os mortais se submetem a eles; as criaturas não querem ser como o Criador; e aqueles que o queiram experimentarão o destino dos orcs ou da Bela Adormecida: a criatura abençoada com todos os dons ao nascer mas amaldiçoada com a morte.

Na Elfolândia contempla-se a Realidade, o símbolo mostra os profundos sentidos do Real, o Real que não pode ser cortado e testado em erlenmeyers. O homem interroga as árvores e o mar, as dríades e tritão. E todos falam de Deus, porque Deus é o Supremo Real: “Eu sou o que sou”, diz o Senhor a Moisés.

A Elfolândia ensina o homem a viver no mundo. Nenhum homem pode caminhar conscientemente neste mundo real se antes não contemplou, com as fadas, os rios de vinho e as macieiras douradas dos campos da Elfolândia. São elas que nos lembram que havia o Éden, e nós o perdemos.

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