terça-feira, 25 de janeiro de 2011

A Visita de São Sebastião

Faz dois anos que São Sebastião me visita em Janeiro. Da primeira vez apareceu sorrateiro, exibindo suas lanças cravadas no peito, mas me surpreendeu, principalmente, pelo fato de eu ser descendente direto de um devoto seu. Um dia carregou-me até o altar da Igreja Matriz, em que descobri o nome de meu avô sob o pé de três santos. Meu avô que também é Sebastião, nascido em Janeiro, inclusive. Na última visita, entretanto, foi direto ao ponto e me fez assistir imóvel ao seu martírio. Cravejado de flechas, o promissor soldado da guarda pessoal do rei de Roma, cujo crime foi manter-se fiel a Cristo. Curado das profundas feridas apenas para dar o seu testemunho, cumpriu sua sina e retornou ao ninho da serpente inimiga. Vivo diante de seu algoz, afirmou novamente a fé em Jesus, quando, então, espancado até a morte, foi despejado morto no esgoto público da cidade.

A inocente imagem daquele homem repleto de lanças destaca-se da parede. É a mim a direção do seu olhar. Tenho ímpetos de socorrê-lo, como se eu mesmo tivesse penetrado cada uma daquelas setas. O ódio que brota em meu peito faz nascerem motivos para de fato tê-lo feito. Sim, tenho motivos sórdidos para matar aquele soldado traidor, descumpridor da lei e da ordem. Orgulhoso que, por imprudência, deixou para trás um futuro profissional promissor nas fileiras da guarda pessoal do rei. O que mais poderia querer um romano? Que mentirosa biografia, que piada de força sobre-humana impossível! Lenda para inspirar os fracos, para justificar a insistência na terrível santidade.

Não quero mais me entreter com estas histórias insuportáveis de santos. Matem todos os santos! Matem São Sebastião, apedrejem-no, deixem-no morrer e com ele a memória desta vida incompreensível. Que para mim basta o cumprimento das ordens, o pagamento dos impostos, a fiel execução da lei e o esforço diário para ser um homem sob medida, bom pai de família, estudante responsável, profissional ético e bem sucedido. Não basta? Por que agora esta história de morrer pela Cruz?! A missa aos domingos, a confissão uma vez ao ano, a comemoração da páscoa e do natal, tudo isto é aceitável, como são aceitáveis os dez mandamentos. Mas estas histórias sangrentas, de gente morrendo e padecendo sofrimentos imensos, isto já parece demais.

Novamente a vontade de retirar cuidadosamente as flechas, de abraçá-lo sujando-me em seu sangue para socorrê-lo. É para mim o seu olhar. Não percebe meu ódio, não vê o perigo de lançar-me um olhar tão terno, tão amigo? É mesmo São Sebastião que me olha, ou não? Diante das três imagens, sob as quais está escrito o nome de meu avô, ajoelho-me, enfraquecido de pensar. Qualquer coisa aperta-me no peito, dói dentro de mim. As flechas. Lembro-me das setas no peito cravejado do santo. Não! Não pode ser! Em desespero grito. Comigo não! Por favor, lhe peço! De jeito nenhum! Que não darei conta, não sou soldado, não tenho espadas com que me defender! Não! Eu imploro, tem piedade! Sou covarde, não vê! Apenas um covarde! Um covarde! Não posso, não serei fiel! Não sou digno desta linhagem! Escolha outro! Não eu!

Então, levanto, cuidadosamente, a cabeça, com lágrimas misturadas ao suor que escorre pelo meu rosto e sinto São Sebastião me abraçar. Acalmo. Um abraço apertado. Meu avô vivo na lembrança de eu ainda criança correndo para os seus braços abertos. Meu avô nascido em janeiro, no dia de São Sebastião. Uma paz muito grande diante do altar. Estão ao meu lado, meu avô e os três santos, quatro homens de joelhos, como eu. Vejo nos corpos a marca de pequenas chagas, antigas feridas já curadas, resquícios de outra vida. Sobre o mármore escorre um sangue espesso e puro, um líquido curador, que também serve às minhas feridas. Preciso banhar-me neste sangue, beber do remédio universal. Mas noto que as gotas caem do alto, escorrem pela madeira de uma cruz imensa. Há um homem morto que jaz estirado. É Jesus. É para mim o seu olhar. Para mim o seu abraço. Para mim o seu suplício.

Olho São Sebastião consolado. Quero sentir medo, fugir, mas não posso. Está tudo na Cruz: todo enigma, toda procura, todo mistério. Quero dizer não e partir, sair às ruas e ser apenas um homem comum, como o rei de Roma. Mas não posso. A madeira me seduz. Sinto uma força estrangeira, que apesar de mim me conduz. Sinto que ela cresce a cada dia, na proporção do tempo em que permaneço diante deste altar. Ouço já vivo dentro de mim o dia-embrião, que ainda nascerá, em que não serei mais eu, porque estarei ali abandonado de joelhos, ao lado de São Sebastião. Porque foi só para isto que o seu peito foi cravejado. Só para isto a sua visita. A razão de meu avô ter nascido em janeiro e ter dedicado este altar na Matriz, com seu nome ao pé dos três santos. A construção da Matriz e a confecção das imagens. Tudo apenas para que eu, conduzido, pudesse restar ali, prostrado de escândalo. Não pelas flechas que cravejaram São Sebastião, mas pela Cruz que o fez caminhar, com seus próprios pés, em direção a elas.

Um comentário:

  1. Experiência mística do Miguel... Tiro as sandálias ao entrar em terreno santo... Acontecimento bonito, forte, impactante.

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