quinta-feira, 29 de abril de 2010

Toninho,

novamente, um certo texto de julho de 2009 me percorre a mente, e nada mais do que seus pontos principais são suficientes para recordá-lo:

‘“aparelho com aparência humana ou de outros seres animados, que reproduz seus movimentos por meios mecânicos ou eletrônicos” (...) Nada o aterroriza mais do que perguntas do tipo “E você? Como vai? O que tem feito da vida?”. Receoso, se pergunta: “O que separa o antigo eu, cheio de sonhos e aspirações, do eu atual, despido de todos estes maravilhosos atributos? O que se perdeu pelo caminho?” (...)“Preciso agir...”. (...)“Que objetivos escolher? Qual caminho tomar?”. E novamente se martiriza: “E se o caminho eu errar? Quais as conseqüências de retornar?” (...)Imerso na indecisão que aflora de tão tormentosa indagação, decide nada decidir. Resolve nada resolver. E então retorna para a segurança de sua rotina, trabalhando, andando, e sorrindo mecanicamente, como se nada tivesse acontecido...’

E, ainda, lembro de todos os outros momentos em que a caminhança discorreu sobre ela mesma, o que, aliás, tem sido uma constante, ao longo de mais de um ano de sua existência.

Ora, e o que foi este seu último clamor, senão uma resposta ao Autômato, uma bela punhalada nas costas do aparelho com aparência humana, daquele mesmo ser que decide nada decidir. Resolve nada resolver. E então retorna para a segurança de sua rotina.
Agora, já purificado pelo fogo de novas tribulações e, mais, ouso dizer pelo fogo do Divino Espírito Santo, exclama extasiado: Como alívio, temos em mente a convicção de que qualquer caminho tomado poderá ser contornado. E que tal caminhança não fazemos sozinhos, mas na companhia de irmãos que por sofrerem na pele as mesmas dificuldades e circunstâncias, compreendem-nos como ninguém.

Sem deixar de finalizar, esplendidamente, com palavras inabaláveis e de forte esperança. Palavras de um indivíduo que não retorna monotonamente para a segurança castradora da rotina:

Eu sou o mestre do meu destino
Eu sou o capitão da minha alma


Enfim, Toninho, não foi só a mim que o amigo respondeu. Foi, primeiramente, ao seu mais íntimo e, depois, disseminou-o a toda a caminhança.

Boa noite,

João.

Ernest Henley e nossa caminhança

Se caminhamos no rumo certo ou errado, isto é algo que apenas o tempo nos dirá. O fato é que semelhantes qualificativos acabam por se tornar demasiado abrangentes para abarcar toda a complexidade de nossas realidades. Enquanto jovens, somos puro potencial e a vida, tal como um caminho que se divide em incontáveis ramificações, supreende-nos e nos esmaga com a angústia de decidir que rumo tomar.

Como alívio, temos em mente a convicção de que qualquer caminho tomado poderá ser contornado. E que tal caminhança não fazemos sozinhos, mas na companhia de irmãos que por sofrerem na pele as mesmas dificuldades e circunstâncias, compreendem-nos como ninguém.

Sem apresentar respostas, porque creio que uma resposta, neste momento, não há, trago aos colegas as palavras de um poeta antes conhecido por este que vos fala, e que recentemente foi popularizado pela grande mídia.

Contemporâneo de D. H. Lawrence, muitos de seus poemas, porque considerados inspiradores, serviram de mote em momentos importantes da história. Especialmente Pro Rege Nostro (oh England, my England!), cujos versos eram muito conhecidos durante a primeira guerra mundial, contribuiu para que Henley saísse do esquecimento. Colhido pela tuberculose e pelo drama da amputação de uma perna, devido a uma infecção causada por esta doença, Ernest Henley redigiu o poema Invictus, que em latim reporta-se à idéia daquele que é inconquistável.

Os dois últimos versos dedico ao colega João Augusto, que jamais permitiu que vivêssemos inconscientemente, automaticamente, sem nos questionar.

Out of the night that covers me,
Black as the Pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds, and shall find, me unafraid.

It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll.
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.

William Ernest Henley

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Água para João Augusto

Querido Amigo,

Infelizmente não tenho as respostas que procura, nem tenho a força para apaziguar o seu tormento, para dar-lhe o grito que tanto clama... Ofereço-lhe, no entanto, um pouco de água, nesta parada que fez em sua caminhança, esgotado e sem fôlego (porque paradas assim são essenciais para manter saudáveis os motores). Sem deixar de lembrar, como Santa Teresinha do Menino Jesus à uma irmã que admirava-se de suas poesias e de sua tamanha devoção: “Não se engane. Eu não canto a fé que possuo, mas a fé que desejo”. Assim é a água que compartilho, a mesmíssima água que também preciso e desejo (onde a encontro em abundância?)
Ora, meu caro, suas perguntas são simplesmente toda a pergunta. Este é o enigma da vida, cuja solução aponta para um mistério... A perfeição da vida não está em encontrar a decifração definitiva deste enigma, mas perseverar na batalha. Não desistir, seguir em frente! Todas as vezes que cedemos à tentação de achar respostas nos afastamos da vida (e morremos, pouco a pouco... no comodismo, no conforto sem esperança, na preguiça prazenteira, no desânimo...). Portanto, se se angustia na dúvida, quanto melhor! Está saudável! Sofre! Corre sangue em suas veias, ainda é um homem...
Quem está vivo neste mundo carrega a sua cruz e quem a aceita abraça a própria vida. A caminhança já está nos seus pés... A poesia já aconteceu na sua história... O sublime se revela aí mesmo onde você existe... Quem saberá a razão pela qual João Augusto existe? Por que cresceu nesta família, por que nesta cidade, neste país, com estes amigos, nesta profissão? Tudo assim, desde que nascemos, por quê? Não sei. Sei que é esta e não outra. E é só esta, especialmente feita para cada um de nós. Único lugar no mundo em que não somos inquilinos de nada e de ninguém (quem é que quer viver de aluguel?). Temos é que ter a coragem de abraçá-la, assim como ela é, imperfeita (e como é difícil! Tantas vezes desejamos qualquer outra vida, menos esta... Ter nascido na Itália, ser filho de um sultão, jogar bola como Ronaldinho, ser virtuose no piano, não ter medo, ter mais calma, uma namorada mais bonita, ser mais inteligente, tantas coisas, menos isto que eu sou, socorro!). Coragem de aceitar este presente que é estar vivo e lutar, porque nada pende inútil neste mundo... (que me perdoem os existencialistas, os pessimistas, os niilistas, os suicidas, os ateus e todos os malucos do gênero... Inclusive todos os que existem dentro de mim...).
Por fim, deixo ainda um último conforto, antes que você parta novamente para a sua sina. São palavras de outra santa, Teresa de Ávila, colhidas, certamente, neste mistério onde brotam as verdadeiras poesias:

Eficacia de La Paciencia

Nada te turbe,
Nada te espante,
Todo se pasa,
Dios no se muda,
La paciencia
Todo lo alcanza;
Quien a Dios tiene
Nada Le falta:
Solo Dios basta.


Coragem, amigo! Vamos juntos!

Grande Abraço,

Miguel.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Haroldo passa a fazer parte do blog

Vocês já chegaram a ter a desconfiança de que estão no rumo errado, mas que não podem retroceder ou não chegarão até o fim/fundo para desvendar se era verdade mesmo que deveriam voltar? Ser ou não ser o Calvin das tirinhas pra trás? Vocês já sentiram que não questionam para não ter de descobrir o erro? Quem terá a ousadia de nos jogar isso na cara?!! Por favor, jogue logo! Será que a vida se encarregará de fazê-lo? Será tarde...ou cedo demais? Quando? Onde? O quê? Por quê?!?!?!?!?!?! Já se faz presente na caminhança ou virá ao longo dela? Distanciamo-nos ou aproximamo-nos da coisa? Enfim...?!

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Um mosquito safado na Casa do Sol

Somente hoje recebi de braços abertos a carta da Lígia à sua amiga Hilda, presente do caminhante João Augusto. Lida a última linha, fecho os olhos e imagino-me na fazenda da Hilda, a Casa do Sol, rodeado de poetas. Estão lá a Lígia, a Adélia, Vinícius, Cecília, Drummond, Bandeira, o Bruno e outros. Eu, claro, sou um mosquito safado que se senta curioso no braço do sofá, para não atrapalhar os convidados. Saudade da voz do Bruno, do seu jeito de falar, do olhar de quem se permite, de quem permanece no enigma, como ele mesmo sempre ensinava. Agora me ocorre, que talvez o poeta seja este sujeito que permanece, incompreensivelmente, no enigma. Como consegue? Se é que alguma vez fui pra lá, posso garantir, depois de algum tempo aquilo sufoca e a gente quer voltar correndo para a lição de casa... Mesmo quando a Adélia sai da sala para preparar o café, ou quando toca o seu piano no fogão, quando dá bronca no filho, acho que nunca saem do enigma. Estão permanentemente pairando neste lugar mágico onde se encontram as poesias. Puxa vida! Isto é bom demais! A poesia, a literatura, bom demais, minha nossa! Nós merecemos? Deus do céu! Como é possível? É milagroso, é supremo demais (olha eu, acabando com a poesia...). Hoje se pudesse eu me deitaria no colo do Vinícius, ou tomaria um porre com ele, igual numa cena que vi, ele com o Tom, tomando whiskie os dois, “o cachorro engarrafado”. Declama “o Haver” pra mim Vininha! Agora o “Orfeu”. Diz aquele soneto, com a sua voz suspirada, acompanhada pelo piano. É coisa boa demais! Certo, João!? Hoje acordei mais para lá que para cá, aquele dia em que está tudo muito estranho, a gente se sentindo estrangeiro dentro de casa. O coração querendo outra vida, negando tudo o quanto a vida nos deu. Que tristeza! Fazia tempo que não conseguia abrir a fechadura de um livro de verdade. Eu tentava, mas tudo soava rotineiro, insosso, tudo um jogo de palavras... Uma leitura aqui, outra ali, mas nada que pegasse de jeito, entende? E justo hoje, ou por ser hoje, ocorreu-me de ler esta carta da Lígia. Então olhei a estante dos livros e tirei um, depois outro e outro... Santo Deus! Isso é bom demais! Vou ficar aqui, lendo, lendo, lendo... Nem de comida eu preciso! Isso mata a sede, a fome, do corpo, da alma, de tudo! Acho que nascemos mesmo para adorar, adorar, adorar... Ficar de joelhos, adorando, para eternidade. O ter de comer, beber, andar por ai, isto é acidental, é por um acaso. O nosso gosto mesmo, a nossa vontade definitiva, a nossa necessidade verdadeira é nos abandonarmos prostrados, adorando, adorando, adorando... Bom demais!

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Aos Caminhantes

Quero guardar comigo, como o tesouro mais valioso, o sentimento de estar na presença destes três... Conversar? Tomar vinho? Encontrar? Discutir? Estudar? Filosofar? Rir? Desabafar? Não sei... Nada disso dá conta de dizer o que é isto... Assim, para evitar dizer pouco e acabar não dizendo nada, porque isto com nada se parece, eu apenas digo que é grande demais a graça de poder CAMINHANÇAR! (Que isto continue pelo resto das nossas vidas...)

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Pier Giorgio Frassati

"Nós – que, por graça de Deus, somos católicos – não devemos gastar os anos mais belos da nossa vida como desgraçadamente fazem tantos jovens infelizes que se preocupam com gozar os bens terrenos e não produzem nada de bom, mas que apenas fazem frutificar a imoralidade da nossa sociedade moderna. Devemos treinar-nos, a fim de estarmos prontos para travar as lutas que, seguramente, teremos de combater para realização do nosso programa e para, assim, darmos à nossa Pátria, num futuro não muito longínquo, dias mais alegres e uma sociedade moralmente sã. Mas para tudo isto, é preciso: a oração contínua para obter de Deus a graça sem a qual as nossas forças são vãs; organização e disciplina para estarmos prontos para a ação no momento oportuno e, finalmente, o sacrifício das nossas paixões e de nós mesmos, porque sem isso não se pode atingir o objetivo".

"Observar diariamente a fé com que algumas famílias suportam as dores mais atrozes ou o sacrifício perene que elas fazem pelo amor de Deus leva-nos, muitas vezes, a nos interrogarmos: porque é que eu – que tive de Deus tantas coisas – fiquei sempre tão preguiçoso, enquanto eles – que não são tão privilegiados como eu – são infinitamente melhores? Então, propomo-nos nas nossas consciências seguir cada vez mais o caminho da Cruz, o único que nos conduz a Salvação Eterna”.

“Viver sem uma Fé, sem um patrimônio para defender, sem sustentar a Verdade numa luta contínua, não é viver, mas fingir que se vive”
.

Beato Pier Giorgio Frassati nasceu em Turim em 1901 e faleceu aos 24 anos. Foi beatificado pelo Papa João Paulo II em 1990, considerando-o como "O homem das oito Bem-Aventuranças". Desde então, os jovens levam, junto com a Cruz das Jornadas Mundiais da Juventude, a imagem de Pier Giorgio. (
http://www.piergiorgio.com.br/)

sábado, 3 de abril de 2010

"Carta a Hilda Hilst" de Lígia Fagundes Telles, Estadão de 03/04/10

A primeira lembrança que guardo de você e que neste instante me ocorre tão nítida, tão límpida, tem como cenário a antiga sala de chá do Mappin: as mesinhas com suas toalhas engomada (verão de 1950) e o cheiro quente de brioche ao som de uma orquestra com violinos, principalmente violinos no estrado redondo, recoberto com um tapete de veludo vermelho. Uma mesa maior me homenageava, era moda oferecer chá a escritores e até a políticos. Quando você se levantou para me saudar, os violinos valsantes fizeram uma pausa. Então Guilherme de Almeida sentado a minha direita, murmurou ajustando no olho o seu monóculo: “Veja, ela é frágil como um galho de avenca.” A saudação era em nome dos acadêmicos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco mas confesso agora que não guardei a palavra, guardei a imagem: o céu diluído em azul na moldura da janela, os garçons discretos pisando tão distintos, as pessoas distintas mastigando tão discretas, em repouso os violinos nos ombros protegidos com um lenço branco. E você, a camisa de tricoline branca, os punhos largos, os pulsos finos, o cabelo louro todo puxado para trás e preso na nuca por uma fivela, dourada a face da juventude intacta.


“Sou poeta”, confessou-me com um tranquilo orgulho não destituído de um certo pudor. E ainda Guilherme de Almeida, guardando o monóculo e sorrindo observou: “A palavra poetisa deve estar meio desmoralizada, quando a poetisa é mesmo séria, se diz poeta. Poetisa virou declamadora...”

Sua poesia. Hilda. Perplexidade no início com um sabor um tanto áspero de fruto colhido às pressas, a graça de uma poesia se encantando e se desencantando com o amor ainda verde, jogo de busca e perda no qual você se empenhou em vida e verso. O processo de amadurecimento acompanhado passo a passo o tema maior, humano e transcendente - ah, Hilda, com que força o amor inspirou e sustentou seu verso lírico autêntico, sem máscara porque foi de arte. Você ousou numa época em que só os homens ousavam palavra e gesto. Olhando para trás, vejo sua delicada silhueta na vanguarda de uma poesia descoberta e ao mesmo tempo oculta, secreta como uma noz dentro da casca.

Releio a primeira parte dessa coletânea, POESIA (1959/1967), e verifico que na fragmentação dos vários amores reais, o amor ideal se recompõe inteiro, renovado cada dia, lume, tardume, chama múltipla e una na sua invenção e magia. Tanta poesia de amor já se escreveu do tipo em que o leitor, logo nas primeiras linhas já faz aquela cara de cansaço e tira o chapéu em respeito ao morto mas se afasta rápido: “E eu com isso?!” O que me faz pensar que em ficção o leitor só se interessa realmente quando de um modo ou de outro se sente envolvido, mais do que envolvido, participante: “Esta é a emoção que eu queria explicar e não conseguia, esta é minha dor. Esta é a minha alegria.” Ah, Hilda, o imenso mar de livros admirados mas não lidos, aqueles que o leitor cita mas não identifica, distantes de sua órbita as vinte mil léguas submarinas. Eis que sua poesia, sendo tão pessoal, tão subjetiva é em essência universal na linguagem, uma linguagem que nada tem de caracteristicamente nacional, sem fronteiras como o próprio amor nessa poesia de amor.

Saberão os amantes que sua poesia lírica é das mais belas dentro da nossa lírica? Enfim, os amantes nunca sabem muito além dos seus delírios. Mas, e os críticos? Leram eles esse seu soneto? Aflição de ser eu e não ser outra./ Aflição de não ser, amor, Aquela/ Que muitas filhas te deu, casou donzela/ E a noite se prepara e se advinha/ Objeto de amor, atenta e bela./ Aflição de não ser a grande ilha/ Que te retem e não te desespera/ A noite como fera se avizinha./ Aflição de ser água em meio à terra/ E ter a face conturbada e móvel./ Não saber se se ausenta ou se te espera./ Aflição de te amar, se te comove. E sendo água, amor, querer ser terra.

Amor e morte com panejamentos místicos são os temas mais constantes dessa verdade que no conceito de Keats, é a própria beleza. Beleza que não é fácil de ser entendida, beleza de um tempo que não é senhores, de inocência, nem de ternuras, nem de cantigas. Mas a tentativa de comunicação que ser feita sem nenhuma concessão ao leitor viciado na leitura rasa, alegre, descomprometida.

Partindo da realidade para a ficção não só na poesia mas também na dramaturgia e novelística, você ensaia os primeiros esboços metafísicos nos Sete Cantos do Poeta para o Anjo - sete voos entremeados de quedas na experiência do amor que anuncia amor total no encontro com Deus.

Em febre, as pálpebras em bras, sua fala atinge seu ponto mais alto neste canto: Anjo, asa; Mão poderosa sobre a minha mão/ Que o verso nunca mais transfigurava./ Prisma solorizado / Transcedência primeira / Dulcíssima presença: / Alta noite/ O que foi treva em mim Em ti resplandecia.

Os processos técnicos nos quais você se depura com uma intuição que se assemelha a um sortilégio, desenvolvem seu estilo no sentido de representar a idéia com fidelidade tão fiel que a poemática se enriquece na captação de imagens e sons. Esse enriquecimento se acentua na prosa com um vocabulário denso, com uma metáfora original sempre e com um bom gosto de quem não engana mesmo quando ousa a mais crua das linguagens.

Mas espera, por enquanto ainda percorre a trajetória poética do ser. O Anjo ficou longe - e ao mesmo tempo, tão próximo - enquanto agora você vai sozinha, fortalecida em amor pelos caminhos que a conduzirão à descoberta da natureza. Sua emoção com as ervas, as águas, os insetos e os bichos - seu deslumbramento com as transparências de asas permitem que através dessas asas e folhas você vislumbre a presença de Deus. O Deus de que vos falo / Não é um Deus de afagos./ É mudo. Está só. E sabe/ Da grandeza do homem / (Da vileza também)/ E no tempo contempla / O ser que assim se fez.

E a poesia pastoral, serena e pura. Persiste a busca mas essa busca se reveste agora de uma lentidão contida e grave. Nessa poesia lírica filosófica, sem nenhum traço de pedantismo, revela você além da intuição que é síntese, um agudo poder de análise que seria a preparação do terreno para a prosa dramática despontando em seguida.

“E raro encontrar no Brasil e no mundo escritores, ainda mais neste tempo de especializações, que experimentam cultivar os três gêneros fundamentais da literatura - a poesia lírica a dramaturgia e a prosa narrativa - alcançando resultados notáveis nos três campos. A este grupo pequeno pertence Hilda Hilst” - eis como Anatol Rosenfeld inicia o prefácio de FLUXO FLOEMA e que enfeixa cinco novelas exemplares como linguagem e temática. A poesia se transmuda em prosa, você mesma já advertira num poema, não te espantes da vontade do poeta em transmudar-se. Apenas essa transmudação se referia a bichos e plantas e não ao gênero literário, decorrência natural do desejo de novas aventuras e pesquisas.

Com uma segurança que poderá surpreender aqueles que não conhecem seu austero método de trabalho estruturado no despojamento e solidão, com uma força que poderá parecer imprevista para aqueles que não sabem da sua imaginação inquietante, eis que você escreveu um estranho livro.

Já nas suas peças como o RATO NO MURO, O VISITANTE ou O VERDUGO, já nessas peças góticas, mais próximas de Backett do que de Nicos Kazantzakis que marcou sua poesia, nelas se delineiam as personagens que irão logo em seguida fervilhar nas novelas. Personagens que não são planas mas esféricas. Personagens que não são existentes mas sim essências num mundo que oscila entre a loucura e a lógica, entre o real e o mágico. Certas aberrações me fazem pensar nessas salas de espelhos deformantes onde as silhuetas vão se metamorfoseando numa variedade que vai do non sense ao rigor de uma operação matemática. E nesse aspecto, vejo-a incluída na família de um François Mauriac que lidava também com personagens-essenciais, arquétipos efeitos ao inferno da demência e do caos, caos aparente porque sua lucidez e cálculo acabam por ligar as peças de tal forma que nada é gratuito ou imprevisto. O Unicórnio, a mais fascinante novela de todo o livro, com seu grotesco e ambiguidades é bem uma amostra dessa temática que destaca os fragmentos da nossa condição forcejando por romper a noite de focinhos, lama e cornos numa inspirada nostalgia de Deus. Há um código em cada palavra, o que não torna a leitura do seu FLUXO-FLOEMA uma leitura leve. Como o poeta Drummond, você também desafia o leitor desavisado: “Trouxeste a chave?”.

Adivinho o seu sorriso, um sorriso que interroga e que responde: e daí? Um público maior lerá esses livros? Teatros mais populares levarão essas peças? Bem sei, minha amiga, não fosse também escritora, ai de mim! bem sei das dificuldades de comunicação para o escritor que não concede nem se acomoda. Vou dizer coisas terríveis à gente que passa. / Dizer que não é mais possível comunicar-me - você anunciou num poema.

Sua inquietação também é minha. Foi candura ou ironia e criação do Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro? Justamente o jabuti com seu escudo de residência, justamente o jabuti com sua lentidão pré-histórica é o eleito para o troféu do escritor. Perseverante? Sem dúvida, ei-lo que vai se arrastando, pesado, difícil na sua marcha de retaguarda; todos o ultrapassam. Engole a poeira de todos. Mas lá vai com sua carapaça remendada, lá vai implacável através de desertos, montanhas e mares, centenário. Póstumo. Um dia - daqui a cinquenta, cem anos? Um dia ele chega.

Não temos nem o escudo nem a longevidade do jabuti: nosso pelo é sensível demais e nosso tempo é curto. Precisamos ter, isto sim, sua paciência. Paciência, minha querida amiga, paciência. a comunicação de um escritor do quarto mundo é mesmo labirintosa e por caminhos mais demorados do que os previstos pela cartomante quando começa a botar na mesa o leque de cartas pretas. Quem tiver fé, deverá rezar para manter acesa essa chama da perseverança digna dos santos, própria dos eleitos. Quanto aos outros, esses devem seus exercícios de meditação e renúncia a um mundo de pompas e glórias tão passageiras. A profissão é mesmo dura. Só aqui? Olha que em países mais adiantados também tem havido casos: a edição de Les Cahiers de André Walter, de André Gide, teve vendidos uns vinte exemplares em toda a França num período de quase vinte anos....

E agora sou eu que estou sorrindo: não, não lembro esse fato para reconforto mas com a tranquilidade de quem já percebeu (tão esperta!) que o que realmente interessa é trabalhar. Um bom estímulo é pensar que os escritores da América Latina estão em plena moda. Há alguns anos, quem sabia da existência de um Júlio Cortázar? Que comunicação esse escritor de língua tão próxima tinha com nossa gente ou mesmo com as gentes de outros países sul-americanos? E eis que agora até nos balcões de alguns cafés a balconista já arqueia as sobrancelhas e faz aquele ar de profundidade quando ouve esse nome: ah, cortázar!...

E, então? A comunicação - tateante, embora! - vai se estendendo aos poucos, isso é importante. Importante ainda saudar em tom maior esse seu livro e repetirmos juntos: “Esperança nossa, salve, salve!”