sexta-feira, 22 de junho de 2012

"Isto é a prática de tornar-se gente" (Olavo de Carvalho)


Eu passei pelo menos vinte anos da minha vida desmontando e remontando a minha personalidade não no sentido de adquirir uma santidade ou uma perfeição evangélica, mas de adquirir aquele mínimo de integração sem o qual você não é você mesmo, sem o qual você é um nada. Note que o advento do cristianismo aconteceu não num lugar qualquer, numa Zâmbia ou numa tribo da América do sul. Aconteceu na civilização mais ordenada e integrada que você tinha na época que era o Império Romano. O império Romano não era um primor de perfeições morais, mas era sim um primor de integração, de ordem e, portanto, de consciência. A informação circulava dentro do Império Romano, as partes conheciam o todo e o todo conhecia as partes. Esta integração da personalidade, então, precede a conquista de quaisquer virtudes morais.

Porque qualquer virtude moral colada numa personalidade fragmentada não significa absolutamente nada. Quer dizer, o sujeito está crente de que está agindo de uma maneira virtuosa e está fazendo uma baita sacanagem e não percebe, não tem autoconsciência suficiente para se perceber e se julgar a si mesmo. Então vira tudo um teatro. Não são virtudes verdadeiras. Quando Deus enviou Jesus Cristo no Império Romano e não em outro lugar, existe ai uma mensagem formidável, a que todos nós temos que aprender. Existe certo mínimo de virtude natural que você tem que ter antes de você receber o influxo do espírito.

Assim como no ato da criação Deus constituiu o homem com o barro, não com merda, não com sujeira, mas como barro limpo. Deste barro limpo ele faz o homem e daí ele insufla no homem o espírito. Não é qualquer coisa que pode receber o espírito. O barro em si mesmo não tem nada de sacro santo, é apenas uma coisa da natureza, mas ele tem que estar limpo. Do mesmo modo a personalidade tem que ter uma integração, um ordem interna, na qual o sujeito quando diz a palavra “eu” ele diz com plena consciência do que está dizendo. Ele se conhece como autor de seus atos, autor de seus pensamentos, senhor de seus estados interiores e responsável por tudo que se passa na alma dele.

[...] (Neste sentido) o sacramento da confissão não vale nada se você não tem certa integração pessoal, em que você seja capaz de perceber e julgar os seus próprios atos. Existe a inspiração do espírito santo, que tem uma função sobrenatural, mas também uma função usual, que é inspirar a sua inteligência para que você descubra a verdade. Não a verdade sobre as grandes coisas, mas a verdade sobre a sua própria conduta, sobre as suas próprias motivações interiores, seus sentimentos profundos, suas intenções. [...] Eu passei mais de vinte anos observando as minhas más intenções e até hoje eu tenho que prestar muita atenção em mim mesmo para eu não fazer uma grossa sacanagem.

[...] Nosso curso de filosofia começou com a prática de você conhecer a si mesmo, conhecer as suas motivações e de você ter um padrão para você se julgar. Lembro o exercício do necrológico, que é a régua para você medir quem você está sendo no momento. Se você sabe quem você quer ser, você sabe se você está se aproximando ou se afastando. Às vezes, as forças que nos afastam do nosso ideal moral são tão tremendas que você precisa de anos, anos, anos para você conseguir achar uma brecha pela qual você retoma o caminho.

[...] Ser sincero não é simplesmente dizer o que você pensa na hora. Isto é simplesmente desempenhar o papel que naquele momento você se atribui no seu teatro mental. Isto não é sinceridade. Sinceridade é você confrontar os seus vários pensamentos e emoções diferentes, toda a sua tensão interior e você ter que arbitrar isto tudo. Por isso é que o grande psiquiatra... chamava o ser humano de o “construtor de pontes”. Todos nós temos uma gama inteira, um leque inteiro de impulsos contraditórios e nós temos que arbitrar entre eles, harmonizar, combinar etc. Isto é a prática de tornar-se gente. 

(trecho do programa "true outspeak")

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