quarta-feira, 17 de março de 2010

Voltar a confiar nos nossos olhos

Um cineasta alemão, de nome Friedrich, entra em crise e abandona as filmagens de sua película mais recente sobre a cidade de Lisboa, dando início a um novo “projeto”, no mínimo, inusitado. Com a palavra, o próprio cineasta para o seu amigo Wnter, de quem se saberá a seguir:

E aqui estamos, na minha cinemateca! À nossa frente: a Grande Tela! Ou o que resta dela... A sala de projeção, que também é apenas recordação. As imagens já não são o que eram. Já não se pode confiar nelas. Todos o sabemos e tu também sabes. Antes as imagens contavam histórias e mostravam coisas, agora só pretendem vender, histórias e coisas. Mudaram sob dos nossos próprios olhos. Já nem sequer sabem mostrar as coisas! Esqueceram-se simplesmente. As imagens estão vendendo o mundo ao desbarato. Quando vim para Lisboa fazer este filme, julguei que conseguia fugir a isso. Falamos sobre isso, te lembras? Queria filmar a preto e branco, com uma máquina manual... Como o Buster Keaton em " The Cameraman". Percorrendo as ruas sozinho, um homem com a sua máquina... - e viva Dziga Vertov! Fingindo que a história do cinema não existiu e que eu podia recomeçar do zero, cem anos mais tarde. Mas não funcionou, Wnter. Por algum tempo, pareceu funcionar, mas depois se desmoronou tudo. Adoro esta cidade! Lisboa! E a maior parte do tempo vi-a realmente em frente aos meus olhos. Mas apontar uma máquina de filmar é como apontar uma arma. E cada vez que a apontei, senti-me como se... ... se a vida se estivesse a escoar das coisas. E eu filmava e filmava, mas a cada rodar da manivela, a cidade recuava mais e mais, afastando-se mais e mais como o Gato Sorridente, da Alice. Estava a tornar-se insustentável. Desmoralizou-me imenso. Foi aí que te pedi que viesses. E durante algum tempo, vivi a ilusão de que o SOM podia resolver tudo, que os teus microfones poderiam arrancar as minhas imagens à sua escuridão. Mas é inútil. É tudo inútil, Wnter! Inútil! Mas há uma maneira e estou trabalhando nela. Ora ouve! Uma imagem que não foi vista não pode vender nada. É pura, e, por conseguinte, verdadeira e bela. Numa palavra: é inocente. Enquanto nenhum olhar a contaminar, permanece em uníssono com o mundo. Se não for vista, a imagem e o objeto que esta representa, permanecem juntos. Sim, é apenas quando olhamos para a imagem, que a coisa que ela contém morre. E aqui está, Wnter, a minha "biblioteca de imagens jamais vistas"! Todas estas imagens foram filmadas sem intervenção do olhar humano. Ninguém as viu enquanto foram gravadas, e ninguém as visionou depois. Filmei-as todas nas minhas costas! Estas imagens mostram a cidade como ela é e não como eu desejaria que fosse. Seja como for, aqui estão elas, no seu primeiro e doce sono da inocência, prontas a ser visionadas por alguma geração futura, com um olhar diferente do nosso. Não te preocupes, amigo, ambos estaremos mortos. Ora pensa só... As coisas e as imagens sobreviver-nos-ão! Não poderemos vencê-las! Há que reconhecê-lo: As imagens são lixo. Nós transformámo-las em lixo. O meu único adversário é o homem do lixo, o meu único inimigo, a mulher dos sacos...”

Wnter, especialista em efeitos sonoros para o cinema, recém chegado à cidade a pedido do amigo, após ouvi-lo, prepara-lhe uma mensagem surpresa, gravando a própria voz numa fita de gravador:

Esta é uma mensagem para o Friedrich, o rei do empório da imagem do lixo. O Dziga Vertov dos anos 90, o Einstein de imagens nunca vistas. Não receies, não tens de olhar para ela. É uma mensagem num saco. Tu gostas de sacos, não é? És o homem dos sacos, és a morsa... Como tu te perdeste...! Essas imagens de brincar te enganaram e agora estás num beco sem saída, virado para a parede. Volta-te e torna a confiar nos teus olhos! Eles não estão nas tuas costas. Confia na velha máquina de filmar. Ela ainda pode produzir imagens. Para que perdes tempo a produzir imagens descartáveis, se podes fazer imagens indispensáveis?! Com a tua sensibilidade, no mágico celulóide...”

Esta é a história (ou parte dela), do filme: “O Céu de Lisboa”, de Win Wenders. Eu o assisti para ver Lisboa e ouvir a música do grupo Madredeus. Mas fui surpreendido por este diálogo. É que ele me fez pensar nos nossos tormentos com o direito e com a profissão jurídica. Eu me explico.
É que talvez estejamos mergulhados numa cultura marcada por certo clima de descrédito, de pessimismo e de desânimo com as instituições humanas (e com o próprio homem) e, sem perceber, acabamos influenciados por ela (e não há nada tão institucional quanto o direito - talvez, a política, sua irmã).
As pessoas em geral se preocupam mais com o próprio bem estar e com o gozo da vida e não se sentem motivadas a se comprometerem verdadeiramente com o próximo, com a sociedade em que vivem. Não se sentem motivadas a serem melhores, contentam-se apenas com o dinheiro bem gasto, estão contentes em ser como são...
Talvez, como o cineasta em crise, precisamos voltar a confiar nos nossos olhos... Voltar a acreditar que é possível um direito justo. Confiar, novamente, nas virtudes de um bom juiz... Nas possibilidades de uma verdadeira Justiça, de boas instituições. Deixarmos de lado o beco sem saída, para onde muitas vezes nos levam os nossos pensamentos, sem que com isso precisemos nos iludir com utopias infantis e puristas. Como achar, por exemplo, que todo o problema humano é jurídico ou social, que as mudanças necessárias ao homem virão apenas pela caneta do juiz, que tudo seja uma questão de ordem, ou que tudo será resolvido institucionalmente (como os que sonham com o Estado ideal). Ou, igualmente utópico, acreditar numa sociedade que prescinda de instituições, acreditar que toda instituição seja uma merda, que toda política seja corrupta, que tudo possa ser deixado à vontade, tudo livre, na paz e amor, cada um vivendo por si, como bem quiser... Ou sonhar com um mundo puro e perfeito, um mundo de imagens intocadas, que nos levará a construir a nossa cinemateca de ideologias descartáveis.
Precisamos redescobrir a importância do direito, a necessidade do aprimoramento da justiça humana, a necessidade de juízes comprometidos com a sua função. Não perdermos de vista que o direito e as instituições são, afinal, importantes. A tarefa é difícil, nunca linear, terá altos e baixos, como acontece com todos os setores da nossa vida, principalmente num mundo tão confuso quanto o nosso. Mas é preciso sempre perseverar neste sentido para que nos sintamos motivados a abraçar a nossa profissão. Para que a nossa vida no direito tenha um sentido maior para nós, se esta for de fato a nossa Vocação.

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