segunda-feira, 8 de março de 2010

Para quando ela vier...

Insisto por imaginar que deste modo posso aproximar-me mais dela, posso dispor-me melhor para que ela venha em sua hora. Eu que a esbanjei tantas vezes, acreditando, inocente, que ela estaria sempre ali, à disposição, para quando eu a desejasse. E agora, quando os dias tornam-se secos como uma travessia árida, olho ao redor à procura da fonte mais fresca e o muito que encontro são pequenos baldes d’água (como ensinara um professor...).
E não há mapas, não há caminhos, nem sei se existe procura... Só sei que às vezes ela está ali, encostada no canto, e quando dou por ela, quando ela assim deseja, disponho-me e ela me toma. E nos relacionamos intensamente, com bastante intimidade. Às vezes por dias, até meses. E todas às vezes chego a pensar que ela, finalmente, será minha, que a terei apenas para mim. Quando então sou surpreendido pela sua partida, sempre repentina.
E deste modo aprendo, com amargura, que se ela às vezes vem é por pura graça. Nada garante que ela voltará. Ela não é minha, não pertence a ninguém. Se ela vem é porque tem de vir. E não escolhe privilegiados, pois não há qualquer privilégio em servi-la. O privilégio é filho do orgulho e da inveja: dos que se acreditam eleitos e dos que se ressentem de não terem sido escolhidos. E a esses ela jamais iluminará. Não por ser impiedosa, mas porque nesses corações não há espaço verdadeiro e suficiente para ela.
Pois a razão de sua existência é eternizar a expressão muito íntima de um homem, formalizando a erupção da lava de seu coração. Uma lava tão íntima, mas tão íntima, que chega a ser universal. E por isso é o que é e não um mero caderno de anotações diárias. Porque a sua forma essencial mora no mais profundo de uma alma sincera e humana, miseravelmente humana e, quando se revela, não fala apenas desta alma singular, mas da alma de todos os homens. Este é o seu mistério. Se o desejo fosse de um discurso universal, que dissesse a todo humano, não faria mais que um bom ensaio, se fosse bom escritor. Mas é por procurar dentro de si suas respostas mais pessoais é que, sem perceber, acaba clamando a todo coração.
Porque tudo, das rimas ao alimento diário, da força do trabalho ao momento de distração, do texto mais edificante ao relatório mensal de atividades, do passeio no jardim ao amor de uma mulher, tudo apenas remete. Mesmo o mais puro amor entre dois amantes, entre pais e filhos, o amor mais belo, mais reluzente, apenas remete a outro muito maior. Como se ouvíssemos uma flauta doce, constante, às vezes mais alta, às vezes sutil, mas perene. Que nos convidasse para o maior de todos os bailes de gala, para uma música tocada pela maior de todas as orquestras. Como se todos os sentimentos fossem apenas pistas. Como se tristezas e alegrias fossem apenas passos. Como se ela fosse apenas uma nota na sinfonia de toda a criação, tocada no íntimo de cada homem.

Um comentário:

  1. Meu querido amigo, meu querido Miguel,

    que refresco, que perfume, que banquete essa sua confissão. A cada palavra lida, aproximo mais meu coração, de oração em oração, sinto a tristeza mais longe, sinto o amigo mais perto. Que ela também dê a mim a graça de sua visita, ensinando-me a cultivar neste peito rude e sem maneiras, a altaneira e robusta árvora da vida, ou ao menos uma de suas flores, suas folhas ou mesmo sementes. Pois é nela que desejo subir e montar ali minha morada, embora a musa seja a senhora, e não a namorada.
    Quem sabe uma prece, um pedido humilde, uma súplica verdadeira. Quem sabe funcione, quem sabe nem seja preciso...

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