terça-feira, 2 de março de 2010

O Monstro do Cartório

Em dias frios e de grossos casacos, pode-se ouvir um gemido rouco, persistente, embora quase imperceptível aos desatentos. Na ampla sala do Cartório, ao folhear páginas amareladas e ao passar os dedos em tintas velhas, sente-se um arrepio repentino na nuca.
Ninguém nunca dele falou, mas todos conhecem sua existência. O Monstro do Cartório a todos espreita e incessantemente apronta as suas. Alguns pensam ser ele invisível, outros confiam na sua sobrenatural capacidade de camuflagem. Talvez um meirinho o tenha visto, em algum tempo passado, apenas talvez.
Mas o Monstro do Cartório não carece de certidão nem de carimbo para atestar suas estrupulias. Vai prazo, vem prazo, notamos seu rastro em um ou outros autos. Uma página mastigada, um ofício rasgado, a capa maltratada, o protocolo lesado: os mais variados disparetes frutificam da obra desse ser, personagem curioso de nosso Fórum Municipal.
Certa feita uma Juíza sentiu um calafrio estranho, em plena audiência. Não desejando perder a compostura e o ar severo de magistrada, a digníssima tentou disfarçar. O Monstro do Cartório, todavia, sem permissão ou licença, subiu a toga da doutora, fazendo voar papéis a torto e a direito, e quase levando os presentes todos para o calabouço, por gravíssima ofensa à autoridade, mediante o expediente nefasto da risada, insatisfatoriamente contida.
Sem possibilidade de julgado, a decisão não pode transitar para fora do gabinete, reputando-se o ocorrido aos maus préstimos do funcionário irresponsável da ventilação, que foi duramente penalizado pela excelentíssima, sem qualquer meio de defesa.
Ironia ou revelia, o acaso pareceu dar boa contestação, pois naquele fatídico dia, de espessas e molhadas nuvens, o acúmulo de água nos altiplanos do prédio fez cair parte do teto, justamente no local da tragédia-comédia. Por timidez ou desenvoltura – ninguém nunca soube dizer – a água trouxe consigo uma série de processos perdidos, todos derramados e ensopados sobre as vestes talares da julgadora, que mal havia se recomposto do ocorrido.
Enrubecendo perante a comunidade funcional, a Juíza acabou por desocupar o trono por ordem do Tribunal, que se insatisfizera com as reportagens um tanto quanto expositivas veiculadas pela imprensa local.
Foi um jornalista quem comentou, em rede nacional, que nada poderia explicar o fato, a não ser que se desse crédito a um octagenário frequentador do recinto. Não era advogado, promotor ou parte interessada. Apenas gostava de estar ali, sentado em meio a toda aquela gente, com gravata e camisa amassada. Contava que jamais falara naquilo e que sua verdade era à prova de impugnação, quer de Tribunal ou de Escritório: quem mandava naquelas bandas e resolvera acabar com a causa, fora ele, o Monstro do Cartório.

Um comentário:

  1. Certamente o cartório fica em Carapicuíba e o dr. Pedro é um dos que ria frente à magistrada...

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