sábado, 14 de março de 2009

O despertar

O despertar[1]

Helen Keller




Helen Keller (*27.06.1880, Tuscumbia, Alabama; †1968, Westport, Connecticut), filha de um veterano de guerra confederado, ficou cega e surda aos dezenove meses de idade por causa de uma doença (descrita na época como “congestão aguda”). Começou a estudar com uma professora privada, Anne Mansfield Sullivan, que ficaria com ela até morrer, em 1936. Aos dezenove entrou no Radcliffe College, graduando-se em 1904; era um colégio normal, e na época já era extremamente raro que uma mulher cursasse o ensino superior, quanto mais se fosse deficiente. Todo o ensino que recebeu passava por Anne, que o “escrevia” – com o alfabeto dos cegos – na sua mão; já escrever, escrevia com uma máquina de escrever normal. Em 1902, publicou uma autobiografia, The Story of My Life, que a tornou famosa em todos os Estados Unidos.
Anne Sullivan, filha de imigrantes irlandeses pobres, cresceu num orfanato. Também ficou cega na infância; mais tarde, fez uma operação que lhe restaurou a visão, mas apenas parcialmente. Estudou na Perkins Institution for the Blind em Boston. Na ocasião em que foi ensinar Helen Keller, tinha apenas 20 anos.


O dia mais importante da minha vida, de que me lembrarei sempre, foi aquele em que a minha professora, Anne Mansfield Sullivan, veio a mim. Sempre me encho de admiração quando considero o infinito contraste entre as duas vidas que esse dia conecta. Foi a três de março de 1887, três meses antes de eu completar sete anos.
Na tarde daquele dia decisivo, eu estava de pé na varanda, muda, esperando. Adivinhava vagamente pelos sinais da minha mãe e o ir e vir na casa que alguma coisa pouco usual ia acontecer, e assim fui para a porta e esperei nos degraus. O sol da tarde penetrava através da massa de madressilva que cobria a varanda e caía sobre a minha face voltada para o alto. Os meus dedos repousavam quase sem eu perceber sobre as folhas e flores tão familiares para mim, e que acabavam de brotar a fim de saudar a suave primavera sulina. Não tinha a menor idéia das maravilhas ou surpresas que o futuro me preparava. Ira e amargura tinham-me dominado continuamente durante semanas a fio, e uma profunda lassidão sucedera a essa luta apaixonada.
Você já esteve no mar, num denso nevoeiro, quando parecia que uma branca escuridão palpável o cercava e prendia, e o enorme navio, tenso e ansioso, procurava às apalpadelas o seu caminho para o porto, com sonda e linhada, e você, o coração batendo fortemente, esperava que algo acontecesse? Eu era como esse navio antes de que a minha educação começasse, só que não dispunha de bússola nem de sonda, e não tinha nenhum meio de saber a que distância estava do porto. “Luz! Dêem-me luz!”, era o grito sem palavras da minha alma, e naquele momento a luz do amor brilhou sobre mim.
Senti passos que se aproximavam. Estendi a mão, pensando que se tratava da minha mãe. Alguém a pegou e eu fui levantada e estreitada num abraço apertado por aquela que viera revelar-me todas as coisas e, mais do que todo o resto, viera amar-me.
Na manhã seguinte à chegada da minha professora, ela me levou ao seu quarto e me deu uma boneca. As criancinhas cegas do Instituto Perkins tinham-na mandado e Laura Perkins a vestira, mas só vim a saber disso mais tarde. Depois de me deixar brincar com ela por algum tempo, Miss Sullivan soletrou lentamente com a minha mão a palavra d-o-l-l[2]. Interessei-me imediatamente por aquela brincadeira dos dedos e tentei imitá-la. Quando finalmente consegui fazer as letras corretamente, fui invadida por uma onda de prazer e orgulho infantis. Desci as escadas correndo para junto da minha mãe e levantei a minha mão, fazendo as letras da palavra doll. Não sabia que estava soletrando uma palavra ou sequer que existissem palavras; estava apenas mexendo os dedos numa imitação semelhante à dos macacos. Nos dias que se seguiram, aprendi a soletrar dessa forma inconsciente um grande número de palavras, entre elas pin, hat, cup, e uns poucos verbos como sit, stand e walk. Mas foi somente algumas semanas depois da chegada da minha professora que compreendi que todas as coisas têm um nome.
Certo dia, quando eu estava brincando com a minha boneca nova, Miss Sullivan também pôs no meu colo a minha grande boneca de trapos e soletrou d-o-l-l, tentando fazer-me entender que d-o-l-l se aplicava às duas. Antes, naquele dia, tínhamos tido uma briguinha acerca das palavras m-u-g e w-a-t-e-r. Ela tentara fazer com que eu gravasse que m-u-g é mug e w-a-t-e-r, water, mas eu continuava a confundir as duas. Desesperada, ela deixara o tema de lado por algum tempo, mas apenas para voltar a ele na primeira oportunidade. Fiquei impaciente com as suas repetidas tentativas e, pegando a boneca nova, joguei-a com toda a força no chão.
Ao sentir os fragmentos da boneca quebrada sob os pés, experimentei uma alegria intensa. Nem tristeza nem arrependimento se seguiram à minha apaixonada explosão. Não amava aquela boneca. No mundo escuro e silencioso em que vivia, não havia lugar para sentimentos ou afeições fortes. Percebi que a minha professora varria os fragmentos para o lado da lareira e experimentei uma sensação de satisfação, porque a causa do meu incômodo fora removida.
Miss Sullivan trouxe-me o meu chapéu e eu soube que íamos sair para o sol quente. Esse pensamento, se é que uma sensação sem palavras pode ser chamada pensamento, fez-me pular e dançar de alegria.
Descemos o caminho até o telhado do poço, atraídos pela fragrância da madressilva com que estava coberto. Alguém estava bombeando água e a minha professora pôs a minha mão sob a torneira. Enquanto o líquido fresco corria sobre uma das minhas mãos, ela soletrou com a outra a palavra water, primeiro devagar e depois rapidamente. Fiquei parada, toda a minha atenção concentrada nos movimentos dos dedos dela. De repente, senti uma vaga consciência, como de alguma coisa esquecida – o estremecer de um pensamento que retorna; e de alguma forma o mistério da linguagem me foi revelado. Soube então que w-a-t-e-r significava aquela coisa maravilhosamente fresca que fluía sobre a minha mão.
Aquela palavra viva acordou a minha alma, deu-lhe luz, esperança, alegria, libertou-a! Ainda havia barreiras, é verdade, mas barreiras que podiam ser removidas com o tempo.
Deixei a casinha do poço ávida por aprender. Tudo tinha um nome, e cada nome fazia nascer um pensamento novo. À medida que voltávamos para casa, cada objeto que eu tocava parecia palpitar de vida; era porque eu via tudo com essa estranha visão nova que me fora dada. Ao entrarmos pela porta, lembrei-me da boneca nova que tinha quebrado. Fui até a lareira às apalpadelas e apanhei os fragmentos. Tentei em vão recompô-los. E então os meus olhos encheram-se de lágrimas, porque entendi o que tinha feito e, pela primeira vez, senti arrependimento e tristeza.
Aprendi muitas palavras novas naquele dia. Não me lembro de todas, mas sei que mother, father, sister, teacher estavam entre elas – palavras que iam fazer o mundo florir para mim “como o cajado de Aarão, com flores”. Teria sido difícil encontrar uma criança mais feliz do que eu quando me deitei no meu berço no fim daquele dia tão cheio e revivi as alegrias que me trouxera, e pela primeira vez desejei que chegasse um novo dia.


[1] Cap. 4 de The story of my life (“A história da minha vida”), Penguin, New York-London-Victoria-Toronto-Auckland, 1988, págs. 16-18.
[2] No alfabeto manual dos surdos.

2 comentários:

  1. Que história impressionante! Difícil imaginar a relação dessa menina com o mundo, escuro e silencioso, como ela diz. Como é que ela pôde descrever com tantos detalhes estes fatos, estes sentimentos, como foi construindo seus pensamentos. Muito bonito...

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  2. Nesse texto há uma questão filosófica de suma importância, o universal! Para nós é óbvio que as coisas podem ser conceituadas, mas não era para a menina e acredito que não foi pra cada um de nós tb, embora não lembremos como se deu porque não precisamos romper grandes barreiras para atingir isso (caso da boneca e da água, ela passa a compreender os conceitos a partir da água como ficou claro; o interessante é que a menina tem por volta dos 7 anos, idade em que sabidamente se passa a ter consciência moral dos próprios atos, mas não pretendo me aprofundar nisso, embora acredite que o texto deixa algumas mensagens sobre descobertas morais da criança...). Depois a relação fundamental que isso tem com a linguagem, compreender que as coisas podem ser chamadas por nomes, que as coisas são únicas e que, ao mesmo tempo, pertencem a um gênero... Pois é, nesse pequeno texto parece que está o começo de muita filosofia...

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