terça-feira, 17 de março de 2009

Irmão Sol, Irmã Lua


Meus amigos. Não digam que este silêncio anuncia a morte da poesia. Que a felicidade fútil foi vitoriosa, não digam. Gritem qualquer coisa, por favor, eu peço, de joelhos se for preciso. Basta um sinal, uma pequena chama, qualquer luz, qualquer uma. Porque quero caminhar, mas a rajada de vento é forte, às vezes forte demais e parece que a chama não vai resistir. Por mais que eu saiba que ela está ali e que este é o lugar dela, por vezes esqueço-me, a chama escurece, tudo se torna mais seco e o dia amanhece sem sol e a noite chega sem lua. Definitivamente não posso sozinho. É inútil meu esforço, vã a minha luta. Não posso. Quanto mais tento, quanto mais forte na luta, maior a minha impossibilidade, mais clara minha fraqueza. Porque por mais vontade, por maior beleza, tem dias que tudo não passa de pedra escura, pó vil, hora insossa, por mais que procure, em tudo falta graça. A música é incômoda ao ouvido, as palavras cansam a vista, as idéias confundem a mente e o que resta é apenas a passagem das horas. Uma hora inútil, uma passagem lenta.
Mas eu não quero que esta carta saia em tom de desespero. Porque tudo isto escrevo pensando na fé. E nada pode ser mais calmo, mais iluminado, mais pacífico, esperançoso, mais amoroso que a fé. Finalmente compreendo porque a fé é virtude, é dom. Porque não basta acreditar ante as evidências, é preciso persistir, enfrentar, cultivar, e para isso precisamos desta graça chamada fé. A fé que nos torna capaz de negar todos os convites diários a caminhos sedutores e equívocos. A mesma que nos faz levantar, mesmo quando a inspiração é pouca. Que nos faz querer escrever cartas aos amigos, mesmo diante do insistente dever diário. Esta fé que não nos permite desistir da procura da poesia e que nos impele a afirmar, acima de tudo afirmar. E como é difícil afirmar. Como é sofrido levantar. Como é gostoso entregar-se ao vício. Como é fácil perder-se.
Há algumas semanas atrás escrevi estas linhas que agora envio a vocês logo abaixo. Em um momento de escuridão desisti de enviá-las. Não conseguia encontrar qualquer motivo para compartilhar este momento. Cheguei a duvidar de qualquer amizade e a duvidar mesmo da sinceridade das minhas palavras. Seria apenas vaidade? Este blog, estas idéias, apenas vaidades? Ainda agora tenho o desejo de guardar o papel e fechar a gaveta. Esquecer toda essa bobagem... Mas de algum modo esforço-me para afirmar, mais uma vez, o que lembro ter acreditado. Esforço-me na esperança de que o ombro amigo possa fazer-me ouvir novamente o mesmo canto...




Foi num dia em que eu caminhava na praça, de terno e gravata, recém saído do tribunal. Eu me aproximei das escadarias da igreja, defronte belas palmeiras imperiais e percebi, sobre uma mesa improvisada, a imagem de Nossa Senhora. As enormes escadas estavam tomadas por homens de túnicas marrons e corda enrolada na cintura, sobressaindo o capuz à cabeça, muitos se espremiam ajoelhados diante do oratório. Todos os dias passo por esta praça sentindo o cheiro fétido dos porcos que se espalham pelo chão, exibindo seu abandono, quando não uma ferida sangrenta, a pedir esmolas. Passo rápido, entre nojo e asco, e corro esconder-me em algum salão limpo de um edifício qualquer do centro da cidade. Tomo o elevador, que me eleva a algum patamar de limpeza indiferente, longe do submundo a que não pertenço, para esquecer de tudo no primeiro gole d’ água que estará a minha espera. Todavia, neste dia, fui detido no meio da rua, sem que pudesse tomar o mesmo destino. Reconheci as vestes da ordem franciscana, todos de sandália expondo os pés na imundice das pedras encardidas do centro. Rezavam todos juntos, ensinando o pai-nosso aos mendigos. Vi um deles esfregar a própria túnica na saliva que escorria da boca de um homem, que em prantos abraçava-se a um irmão. Vi outro ouvindo atentamente os delírios de uma louca e dar conselhos, diante de amigos atentos à fala daquele estranho homem de capuz. Todos homens de capuz, muitíssimo estranhos, com sandálias surradas, pisando um chão ainda mais surrado, esfregando-se com vontade na imundice daquela gente, ainda mais estranha e surrada.
Estranhamente esta lembrança antiga brota de minha face diante de um espelho que me interroga. Quero pertencer à ala dos homens que apenas vivem, sem complicações, mas o espelho interroga-me e não consigo prosseguir. Estou novamente diante daquela escada, naquela praça, detido e preciso seguir. Para onde? Subo as escadas para dentro da Igreja como um fiel? Corro para o elevador mais próximo, esquecer elevado em algum patamar? Caio de joelhos, entre os mendigos, em oração a Nossa Senhora? Tiro os sapatos, o terno e a camisa branca, e esfrego-me nu, na sujeira desta gente, misturado ao lixo? Procuro naquele mesmo centro minhas arcadas, aquele antigo pátio e as escadarias de mármore ensinando-me o direito? Será que acertei a porta de entrada? Ali ao lado, sem nomes em pilastras, sem grandes bibliotecas, sem pinturas imortais de grandes homens, sempre estiveram aqueles estranhos franciscanos. E eu nunca os percebi. Antes preferi seguir o rastro dos homens que passavam pela praça de maleta de couro em punho, livros muito bem acabados, sapatos novos e bem fechados, ternos pretos e gravatas listradas, de diferentes cores, com histórias de ministros, doutores, excelências e comprida carreira. E por que, então, a esta altura, este encantamento pelo prédio simples, sem festa de inauguração com presença ilustre, sem tapete vermelho e discurso, o prédio simples que sempre pareceu pobre demais?
Houve um tempo em que acreditei com firmeza que percorria um caminho e que este caminho me levava a uma direção. Com dedicação e empenho segui por ele sem dúvidas, ingenuamente seguindo, seguindo... O cansaço da caminhada fez com que aos poucos vislumbrasse veredas que antes não podia, escondidas no meio da mata. O tempo da caminhada foi aos poucos se descobrindo, tal qual neblina em raio de sol e, ainda hoje, revela tantos caminhos, que nem mesmo meus pés os podem tocar por inteiro. Detenho-me diante do perigo, com medo de não me encontrar, eu-caminhante. Estreitar novamente a vista e enxergar o velho e único caminho é a tentação que me persegue neste deserto. Mas uma claridade muito grande, cada dia maior, se estende diante dos meus olhos e, misteriosamente, um enorme espelho cresce, cresce, cresce, diante da minha face, e não posso evitá-lo. Correr já não posso, afinal para onde? Mas noto que claridade e espelho comungam de uma mesma razão, que ainda não compreendo.
Razão que me detém neste dia e revela diante de mim esta imagem já esquecida, de franciscanos praticando a pobreza na praça central. A pobreza? Não posso persistir nesta imagem, não posso. Sinto pernas enfraquecidas, peito apertado, falta-me o ar, sufoca-me. Quero correr, não posso, para onde? Estou fixo neste instante em que tudo converge para uma escada cheia de homens e mulheres a espera de mim. Meus pés desejam ardentemente o chão duro, a pedra fria, o encardido da alma. Minhas mãos querem a saliva, o cheiro e o suor do trabalho árduo, as lágrimas salgadas do mendigo, as unhas imundas da mãe, o nariz escorrendo do filho, a grama inundada de urina e fezes, a sujeira preta do peito, do meu peito, disfarçado sob a camisa engomada. Ridiculamente coberto por uma gravata apertada que não tenho forças para pôr fora. Sou apenas mais um pobre despejado na escada defronte a igreja, que ainda não teve a dignidade de ajoelhar-se diante da santa posta sobre a mesa plástica. Talvez a espera do frei capuchinho, que vem sujar suas vestes na minha imundice, ouvir as lágrimas de mais um porco. Talvez venha ensinar-me a desatar o nó da gravata e o laço dos sapatos lustrados, oferecendo-me um par de sandálias e um caminho. Belas e violentas sandálias, simples e estranho caminho.

Um comentário:

  1. Ainda vou fazer um comentário mais decente a esse belo texto, mas acho que precisamos ler "A Descoberta do Outro", do Corção, já ouvi falar muito bem desse livro, além disso:

    “Meu querido afilhado,

    Seus pais escolheram para você um velho padrinho com idade de avô e saúde de bisavô. Sendo pouco provável que eu possa conversar com você nos dias difíceis das primeiras crises, quando aos olhos do moço o mundo parece absurdo e mau, ou quando o sopro das idéias passageiras puser em risco a chama da vela do seu batismo, aqui fico a esperar por você meu caro Gustavo, neste livrinho, ‘A Descoberta do Outro’, escrito depois das tempestades que também atravessei. E o que o livro não puder fazer, praza a Deus que lá no céu o velho padrinho possa conseguir para você aos pés do trono de Deus três vezes santo.

    22/05/1960

    Gustavo Corção”.

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