quinta-feira, 5 de março de 2009

Duas linguagens

Na minha juventude, tive um grande amigo que era estudante de Direito. Ele questionava muito sua vocação para os estudos jurídicos, pois também alimentava enorme interesse por literatura, sobretudo pela poesia, e não achava compatíveis a linguagem de um código penal e a freqüentada pelos poetas. Apesar de reconhecer essa diferença, eu o animava, sem muita convicção, lembrando-lhe que grandes escritores tinham formação jurídica, e esta não lhes travava o talento literário.
Outro dia reencontrei-o, depois de muitos anos. É juiz de direito numa grande comarca, e parece satisfeito com a profissão. Hesitei em lhe perguntar sobre o gosto pela poesia, e ele, parecendo adivinhar, confessou que havia publicado alguns livros de poemas – “inteiramente despretensiosos”, frisou. Ficou de me mandar um exemplar do último, que havia lançado recentemente.
Hoje mesmo recebi o livro, trazido em casa por um amigo comum. Os poemas são muito bons; têm uma secura de estilo que favorece a expressão depurada de finos sentimentos. Busquei entrever naqueles versos algum traço bacharelesco, alguma coisa que lembrasse a linguagem processual. Nada.
Não resisti e telefonei ao meu amigo, perguntando-lhe como conseguiu elidir tão completamente sua formação e sua vida profissional, freqüentando um gênero literário que costuma impelir ao registro confessional. Sua resposta:
− Meu caro, a objetividade que tenho de ter para julgar os outros comunica-se com a objetividade com que busco tratar minhas paixões. Ser poeta é afinar palavra justas e precisos sentimentos. Justeza e justiça podem ser irmãs.
E eu que nunca tinha pensado nisso...

(Ariovaldo Cerqueira, inédito)

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