quinta-feira, 8 de março de 2012

Olhar de Cão

Outro dia eu mirei o meu cachorro aqui em casa e ele me olhou de volta com um olhar esquisito. No início, achei graça ao pensar que ele estivesse “tirando onda” com a minha cara: vendo o dono trabalhando, debruçado nos livros e suado de cansaço, revirava-se aconchegante na minha própria cama, como um “bon vivant” aproveitador. A cena, de tão ridícula, me fez refletir: "Eh vida boa, hein? Filho de uma cadela!". Mas enquanto ria sozinho, vendo-o ainda estirado na cama, surpreendi-me ao perceber que, na realidade, aquele seu olhar esquisito era de um terrível e completo tédio. Meu riso estancou e, então, tomado de uma grande indignação gritei aos céus: “Será possível! Nem mesmo os cães escapam a nossa moderna pedagogia!”.

Pela primeira vez tudo ficava claro e, finalmente, eu podia compreender que toda a sua fortuna e bem estar, que oferecíamos com tanto gosto em troca de uns bons afagos, eram para ele um grande peso. Coitado! Obrigado a levar uma vida caseira e desocupada, privado da caça, da vida de matilha, da luta pela sobrevivência, de todo risco e desafio do seu habitat natural. Lembrei que outras vezes já havia notado o seu olhar constrangido, como se, no fundo, tivesse consciência de sua vida patética.

Quando, por exemplo, ao deitar-se sobre a "caminha" sentia-se obrigado a dar algumas voltas inúteis, impelido pelo instinto dos seus ancestrais. Ou, ainda, quando ao defecar insistia em raspar as patas traseiras sobre o piso frio, mesmo com a ausência de terra que pudesse cobrir os seus dejetos. Sem falar da humilhação diária ao pedir comida, quando se fazia rolar, sentar, dar a pata, privado da improvisada caça que algumas vezes empreendera na mesa da cozinha, seguida de uns bons tabefes de boa educação.

Provavelmente, esta era a razão da sua satisfação no dia anterior quando roubara sorrateiro e brincalhão um desses ursinhos de pelúcia do quarto da minha irmã e o destruíra por completo espalhando a espuma por todo o quintal. Seu instinto vingava-se, pois também se sentia como um brinquedo de pelúcia à disposição para quando seus donos desejassem. Pobre cão, rapidamente reprimido pela astúcia dos patrões, sempre tão atentos e dedicados à sua domesticação.

Até mesmo o momento da sua maior alegria revelava-se, naquele momento, uma verdadeira tragédia. A festa que sempre fazia ao ver a coleira na mão e a porta da casa aberta não significava felicidade, como sempre pensara, mas puro desespero. Como se cada passeio fosse a sua última chance de uma vida nova. Como se ele estivesse esperando ansioso e soubesse que chegaria a hora da sua salvação canina. A coleira, o dono ao seu lado, o bairro, a cidade, tudo esquecia nesta hora, pois era mais forte o seu instinto de liberdade. Tão forte que se apagava, por um instante, a memória das experiências das voltas passadas. E imaginava que não era apenas um passeio, mas o início da sua aventura tão desejada, finalmente a realização da sua vocação de cachorro. Quando, então, notava o retorno pra casa e o seu olhar entristecia. Tentava, ainda, alguma investida, puxava a coleira, olhava para trás. Mas era inútil. Resignava-se o cão na sua vida de marajá.

Movido por piedade, na noite daquele mesmo dia, esperei que todos dormissem e coloquei o animal ao pé da minha cama. De madrugada, levei-o a porta de casa e a abri dizendo com justiça: “Vai! Vai viver a sua vida livre de cachorro! Aproveite!”. Ele me olhou dobrando a cabecinha, contrariado e com os olhos cansados e interrompidos do sono. Então, caminhou até a beira da calçada, olhou para os dois lados, farejou o chão ao redor e urinou na árvore da frente. Depois, voltou rapidamente para dentro, sumindo na escuridão da casa e me deixando sozinho. Restei do lado de fora inconformado, eu e minha piedade. Que se podia fazer? Parei de pensar besteiras e fui dormir.

De noite sonhei com o cão ameaçando ir embora e eu implorando para ele ficar, oferecendo casa, comida e roupa lavada. E o desgraçadinho ainda demorou uns minutos para dar sua resposta. Quando de manhã me deparei com ele ao pé da cama, ele me fitou com um olhar diferente, entre o cínico e o irônico, após uma longa espreguiçada. Tive a estranha certeza de que ele havia entendido muito bem o que ocorrera durante a madrugada. Então, fui obrigado a levantar da cama, porque com seu choro ardido pedia para ir ao quintal. Abri a porta da cozinha e ele saiu.

Foi andando e no meio do trajeto lançou um olhar para trás que me fulminou. Esperei, pacientemente, que ele voltasse até a beirada da porta e a fechei no seu focinho: “Maldito! Para você aprender quem manda aqui!”. Ele esperou alguns segundos sentado na soleira da porta e depois desistiu. Satisfeito com minha vingança, preparei-me para iniciar meu dia de trabalho. Da janela do escritório, no entanto, assim que me sentei em minha mesa, vi o bicho deitado, tomando, com tranqüilidade e indiferença, o seu banho de sol matinal: “Fiiiilho d’uma cadela!”. Desta vez, porém, fechei a janela com rapidez, evitando que ele percebesse que eu o observava.


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