terça-feira, 11 de maio de 2010

Não basta?

Eu queria ter o “bom humor” que ronda por ai. Queria ser capaz de fazer uma grande piada sobre mim mesmo, sobre tudo o que me cerca. Abusar do cinismo e da indiferença, como quem se afastasse soberano de toda a realidade. Ou como aquele que um dia me disse: “se a vida te passou a mão na bunda, passa a mão na bunda dela”. Mas eu não posso aceitar tamanha ingratidão. É tão pequeno, ínfimo, o meu sofrimento. Tão insignificante o meu lero-lero. Eu já me propus a não mais reclamar, não mais choramingar. Isso é que é triste demais, aquele cara que fica sempre lamentando a si mesmo. Tem egocentrismo pior que este?
E não adianta, porque não vou achar resposta para esta inquietação: não são mais felizes os que apenas vivem, sem grande reflexão? Porque de fato existe este tipo de gente e como me parecem felizes! Vivem a vida que se apresenta aos olhos... Mergulham de cabeça em tudo quanto o mundo lhes dá... Colecionam álbum de figurinhas da copa, tomam cerveja à vontade, correm atrás do trio elétrico e trabalham, mais nada. Simples assim. Aliás, nada mais curativo, mais profilático, do que um álbum de figurinhas da copa. Puxa, preciso comprar o meu urgentemente! Respirar um pouco aliviado o ar de fazer um pouco o-que-todo-mundo-faz. Brincar um pouco de o mundo não tem verdade, não tem morte, não tem missão, tomando milk shake de ovomaltine. E, por favor, seu escritor, não venha me dizer que a Walt Disney é a coisa mais deprimente que o homem já inventou... Deixa-me gostar um pouco do Mickey Mouse, achar graça nas montanhas russas da Universal... Senão não tem conversa com ninguém. Sertanejo universitário, festa de peão, música eletrônica, Chico Buarque, futebol... Como é bom ser lugar comum, falar chavão... Que alívio na alma! Não sou mais feliz? Nem quero pensar em clamor de filósofo que chama para compor a nova classe intelectual, nem em poetas que ficam vendo o que não existe, o que está por trás de tudo. Não quero! Eu quero é beber água, entendeu?
Outro dia quase sucumbi a querer encontrar a razão das coisas. Foi durante uma aula, eu o professor (ora, ora...). Episódio parecido com outro que já contei. Era um daqueles dias em que assumi o posto diante do quadro-negro (que hoje em dia é branco) com ar de professor, na certeza de que aqueles alunos tinham muito que aprender comigo. Um daqueles terríveis dias em que se lembra que estudou na Tal faculdade, que fez a Tal tese, com o Tal professor, na Tal cidade, com aquela Tal experiência. Digo isto para que o que vou contar ganhe um tom ainda mais cômico.
É que lá pelas tantas, quando precisei mencionar uma exceção ao artigo, do parágrafo, da lei, entre muitos agravos, decisões interlocutórias, títulos executivos extrajudiciais e cumprimento de sentenças transitadas em julgada, sofri um leve engasgo na voz. Questão de um segundo, provavelmente uma gotinha de saliva mal direcionada. Mas foi suficiente para que toda a lógica que guiava cada uma das palavras soadas na matraca ambulante desaparecesse junto com elas. Calei-me. Olhei em desespero para sala, com medo que notassem que algo estranho acontecera, com medo que minha sapiência fosse desmascarada. Foi quando percebi, pela primeira vez, o olhar perdido e fatigado dos alunos. Eles sequer notaram qualquer atitude incomum no professor. Olhavam-me como escravos tomando chibatadas, alguns com os olhos distantes de quem adormece sentado, outros como que implorando piedade ao carrasco. Então virei novamente para o quadro e definitivamente não reconheci nem mesmo a letra que estava pintada naquele espaço. O que eram todas aquelas palavras, aquelas setas, meu Deus! Que língua era aquela, uma lógica estranha, algo como a obra de um maluco?
Voltei os olhos para a mesa onde pousava um livro, o vademecum, respirei profundamente, folhei as páginas tentando encontrar novamente algum fio que pudesse me reconduzir para dentro de tudo aquilo. Do fundo da sala veio a voz de um rapaz: Professor, vamos ao intervalo para o café? Demorei ainda alguns segundo para compreender o que se dizia e então suspirei: Sim, pausa para o café. E saímos todos da sala, quando notei que estávamos em uma escola, notei que havia um horário a cumprir e, ainda, que havia uma expectativa quanto a minha presença naquele lugar. Era preciso retomar o controle, voltar à normalidade, nada que um bom cafezinho não promovesse. E de fato, após a pausa estávamos todos prontos: alunos de caneta e caderno nas mãos, a prova da ordem acenando a contagem dos dias, o professor diante da sala próximo ao quadro branco (o Tal) e a matraca retomando o seu curso normal.
Assim é preciso, tudo correndo o seu curso normal... Professor dando aula, alunos anotando, sem discussão pedagógica, crise na educação, sem pensar a melhor maneira de ensinar, sem pensar no que ensinar. Nada de profundidades, de abraçar desafios, sem essa, meu irmão! O Adriano e o Ronaldo estão fora do mundial, e isto basta, não basta? Avatar é a maior bilheteria da história, e isto basta, não? Nas próximas férias vamos todos pular com o Pato Donald na Disney, ou brincar de romantismo em Veneza, ou praticar esportes radicais na Nova Zelândia, não vamos? Juntar dinheiro para comprar a televisão LED, ou uma nova 3D, com home theater novinho, para quê cinema? E isto basta, não basta? Sem essa de grande aspiração, sonho com ideal, essa importunação toda... É mais saudável participar quietinho, aceitar tudo no normal, sem grande reflexão, sem paradas incômodas: não perca o fio! Precisa levar o carro para lavar, comprar verdura na feira, acabou o galão de água, a certidão para comprovação do tempo de atividade jurídica, não perca o fio! Tudo isso acontece sem poema, sem grande revelação mística, sem tormento de justiça... Para onde vamos, de onde viemos, para que existimos? Esqueça toda esta complicação, esta dor de barriga! Quando esta visita ameaçar surpresa, saia de casa, ande pela rua, vá ao supermercado fazer compras, corra atrás de alguma promoção quente. Vá à banca de revistas, arrume um jornal esportista e divirta-se com as tabelas atualizadas do último campeonato. Ou vá ao cinema mais perto de sua casa e assista ao filme do cartaz de maior evidência, aquele que não é preciso procurar. Acho que isto basta, não basta?
Senta logo nesta cadeira, escreva de uma vez as alegações finais e pare de pensar se o sistema penitenciário adianta alguma coisa, se o rapaz não vai piorar depois de ser preso, esqueça isso. Você tem prazo, respire, escreva, é tão simples, aproveite pedaços da peça anterior, é sempre a mesma coisa, o mesmo papinho de inocência, de proporcionalidade, de liberdade, o bem maior. Para quê pensar em justiça uma hora dessas? Não vê que o relógio não pára, que os processos se avolumam, que é preciso cumprir o prazo e pronto. É simples, usual, normal, faz e pronto, igual todo-mundo. Livre-se do problema que não é seu. Afinal você não precisa comprovar os três anos de atividade jurídica, não precisa assinar as petições, tirar as certidões? Faz e pronto! Não quer ser juiz, promotor, defensor, procurador, não? Então é isso, não tem segredo. Por que perder tempo com um blog que ninguém lê, um blog que não te levará a nada? Ainda se fosse um desses com grande audiência, você poderia ficar rico, ou pelo menos famoso. Mas este, com essas esquisitices todas, essas dores de barriga, para quê tudo isso? Senta logo nesta maldita cadeira e faz as alegações finais, que o prazo já vai longe... Não perca mais tempo com este negócio de ficar escrevendo maluquices, vai atrás da sua vida, vai conquistar o seu espaço, ganhar o mundo, vai! Não quer ser juiz? Não perca o fio! Então vai, precisa estudar, decorar a letra fria da lei, entender as posições majoritárias, a jurisprudência e não esqueça de exercitar as questões das provas passadas, vai! Que isto basta, garanto que basta! Não basta? Você vai ver, confia, quando você estiver com o salarião no fim do mês, todo dia vinte cai aquele bolão! Santo Deus, isto resolve qualquer crise vocacional! A conta bancária é a melhor filosofia, haha! Tudo bem... Estou exagerando... Mas você será um bom juiz, não será? Terá responsabilidade social, não terá? Depois é só casar e pronto! Está tudo feito! Sossega, tenha calma... Tudo normal... É só não perder o fio! Pois então, vai dizer que isso não basta!?

2 comentários:

  1. Algo me dizia: tem coisa nova no blog! Desconfiei desse algo... Mas não é que tinha mesmo! Muito bom o texto! Bom, mas sobre o texto tenho a responder o seguinte: não basta! Quem sabe depois eu tenha ânimo para escrever à altura, mas já adianto que não basta...

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  2. Miguel, meu fiel Miguel,

    puseste em prosa a poesia de Pessoa, os versos escritos na fumaça do tabaco:
    "(...)

    Come chocolates, pequena;
    Come chocolates!
    Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
    Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
    Come, pequena suja, come!
    Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
    Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
    Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

    (...)

    Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
    E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
    Sigo o fumo como uma rota própria,
    E gozo, num momento sensitivo e competente,
    A libertação de todas as especulações
    E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

    (...)".

    Bom, chocolate, cigarro ou vademecum, qualquer uma dessas porcarias, dessas banalidades, tudo isso alimenta o corpo. Mas nem só de corpo é feito o homem.

    É claro que não basta! Que pensamento bastardo!

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