quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Oração por Dona Zilda

Eu não a conheço, nunca a vi pessoalmente e devo confessar, sei muito pouco do seu famoso projeto, a Pastoral da Criança. Mas, recentemente, fiquei enternecido pela sua imagem e pelas suas palavras, em alguma entrevista para uma televisão de pouca audiência. Até então não havia me dado conta da existência deste ser humano, que para mim era apenas a brasileira que havia sido indicada para o prêmio Nobel. Naquele dia, abençoado dia em minha vida, descobri a Dona Zilda e me encantei com ela. Nas semanas que se passaram me entusiasmei com suas idéias, com o seu exemplo, com a sua vida, com a sua imensa caridade, capazes de envergonhar qualquer cidadão deste mundo. Conversei com amigos, fiz planos de visitar a Pastoral, de conhecê-la, de ajudar, de aprender com aquela mulher magnífica, misteriosa, que tomava para mim ares de uma santa. Tinha sede de compreender como era possível uma humanidade tão bela, que me enchia de alegria, de esperança, de vida. Que me inspirava a entregar-me ao próximo, a abandonar tudo, todos os projetos pessoais, todo anseio de ser, de ter, de fazer, para viver apenas para isso, amar, cuidar do irmão que precisa e mais nada.
Depois os dias foram passando, outras preocupações foram vindo, o tempo se encarregou de trazer novamente as ansiedades, as vontades todas, o desejo de crescer, de conquistar, de me fazer alguém, de ter um espaço para mim. A lembrança daquele exemplo foi desaparecendo e aos poucos fui me esquecendo da mulher e de sua história. Tudo foi ficando tal qual um livro já lido, esquecido na estante empoeirada da sala. Veio o corre-corre, as necessidades mais importantes, coisas mais interessantes para fazer. E assim fui recuperando o meu estado, perdendo aos poucos o perturbador entusiasmo que me acometeu naqueles dias.
Enquanto isso, a Dra. Zilda Arns continuava com a sua vida de dedicação e amor, ignorando completamente o fato de que um menino havia se encantado por ela, com a mesma facilidade com que a esquecia. Continuava suas viagens abnegadas, para os lugares mais estranhos do mundo, aqueles que ninguém escolheria para ir. Continuava se misturando entre a gente mais suja, mais pobre, mais indesejada, mais desamparada, interessando-se justamente pelas vidas daqueles que nada tinham, nada diziam, nada esperavam. Perseverava, com mais de setenta anos, com energia a dar inveja a qualquer jovem de vinte, uma vontade imensa, que dava o testemunho de outra vontade, ainda muito maior.
Em doze de janeiro de dois mil e dez, estava o menino, que um dia ela cativara, numa casa de alguma cidade do interior. Dormia num quarto quente e seguro, em sua cama macia, tranqüilizado pela dedicação de sua mãe, deitada no quarto ao lado. Descansava para no dia seguinte acordar bem cedo, a mesa repleta de frutas, carnes e de todo alimento sagrado, depois seguir até a escrivaninha, de cadeira macia, convenientemente disposta para o seu silencioso estudo, o preparo de seu futuro promissor.
Naquela tarde, porém, o menino foi surpreendido pela visita da mesma mulher de olhar terno e misterioso, que há muito tempo o encantara. Mas desta vez chegou acompanhada de uma triste notícia, não condizente com a sua imensa alegria. Em doze de janeiro de dois mil e dez, talvez na mesma hora, entre os escombros de um terrível terremoto no miserável Haiti, encontrava-se a Dona Zilda, aos setenta e cinco anos, que dormia, tranquilamente, depois do dia fatigante de seu trabalho humanitário na terra distante.
Triste e desconsolado o menino surpreende-se com a própria lembrança, que ressurge viva no seu coração, com a mesma força e o mesmo entusiasmo de antes. Sente uma urgência já há muito adormecida, como se a tragédia fosse capaz de trazer mais que lágrimas. Recolhido em seu quarto o menino ora a Deus, pela piedosa e santa alma, e pelas almas de todas as vítimas da tragédia. Sente saudades de alguém que não conheceu, lamenta a perda tão dolorida e teme não ser capaz de seguir o exemplo sem a sua presença física. Quer precipitar-se no inconformismo, quer encontrar injustiça. Mas ouve palavras de esperança e vê a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo com os braços a acolher uma criança. Vê através daqueles olhos doces, o olhar de Nossa Senhora. Dona Zilda está viva!
O menino levanta-se! Sente um chamado, que nunca esteve tão forte, que nunca lhe chamou tão alto. Ainda não sabe para onde, nem como, nem é capaz de pressentir. Mas de todos os lados e, insistentemente, ouve um chamado. Como se seus ouvidos tivessem sido destapados e sua cegueira iluminada, também ele, um desnutrido da fé, paciente da pastoral. Sente o peso de seus atos, o coração lhe pulsa mais forte no peito, precisa caminhar na direção. Não tem escolha. Não pode mais postergar. É preciso abandonar tudo e apenas seguir! Seguir! Entregar-se! Não pode evitar a cura oferecida pela abençoada doutora!
Ah! Dona Zilda! Doutora Zilda Arns! Ensina-me um pouco da sua dedicação, da coragem, da sua fé! Do seu amor, maior, muito maior do que posso compreender. Para mim continuará sempre a ser a estranha e misteriosa mulher, com olhar terno de mãe, mas braços de guerreira, que traz consigo um entusiasmo perturbador e uma alegria cativante. Diante de você, Dona Zilda, dá uma vontade, uma vontade, uma vontade enorme de amar. E mais nada. Muito obrigado, Pai, por ter abençoado Sua filha fiel, tornando-a capaz de se entregar a todos nós! Obrigado por este presente! Rogo-Lhe, em oração, que também nos ajude a respondermos ao Seu chamado, imitando o exemplo de nossa irmã. Que ela seja recebida entre os Vossos santos e que possa continuar a interceder por nós! Ajudai-nos, oh Pai! Dá-nos, também a nós, a graça de encontrar o Vosso caminho.

Um comentário:

  1. Pois é Miguelito. Há muito tempo conheci a Dra. Zilda Arns e seu trabalho. Minha mãe era muito ligada ao seu trabalho por conta de um composto, criado por esta médica sanitarista, batizado de "multi-mistura". Era um pó muito simples, feito de farelo de arroz, farelo de trigo, folha de mandioca e casca de ovo moída. Feito com sobras de processos industriais e elementos desprezados (folhas, cascas, farelo do arroz), esta mistura foi responsável pelo salvamento de milhares de vidas no sertão do nosso país. Extremamente nutritivo, o farelo, feito com refugo industrial, folhas e casca de ovo provia vitaminas e minerais essenciais àqueles que, em outras circunstâncias, pereceriam de subnutrição.

    Recentemente, Dna Zilda Arns pediu ao governo federal para que o farelo não fosse removido da merenda das crianças do interior do nordeste, onde era ministrado. Seu pedido foi singelamente ignorado, em prol dos compostos nutritivos (e caríssimos), feitos por laboratórios e empresas alimentícias apoiadoras do governo.

    Independentemente dos fatos, lembremos que esta nobre senhora jamais se abateu ante as adversidades. Antes, enfrentou-as com coragem e faleceu no exercício de sua vocação.

    Rezemos para que a semente plantada por esta digna brasileira continue sempre, cada vez mais forte. E para que possamos nos espelhar em seu exemplo de luta e de irresignação.

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