terça-feira, 29 de dezembro de 2009

O Caminho Oblíquo

"Rafael (Hitiodeu) entremeava a sua narrativa com as reflexões mais profundas. Examinando cada forma de governo, analisava, com uma sagacidade maravilhosa, o que há de bom e verdadeiro numa, de mau e de falso noutra. Ao ouvi-lo discorrer tão sabiamente sobre as instituições e os costumes dos diferentes povos, era de pensar-se que vivera toda a vida nos lugares por onde apenas passara. Pedro não pode conter a sua admiração.
Na verdade, disse, meu caro Rafael, espanto-me que não vos tivésseis posto a serviço de algum rei. Certamente não haveria um só que não encontrasse em vós utilidade e satisfação. Encheríeis de encanto os seus lazeres com o vosso conhecimento universal das coisas e dos homens, e os incontáveis exemplos, que poderíeis citar, proporcionar-lhe-iam um sólido ensinamento e conselhos preciosos. Faríeis, ao mesmo tempo, uma brilhante fortuna para vós e os vossos.
- Eu pouco me inquieto com a sorte dos meus, retomou Hitiodeu. Creio ter cumprido sofrivelmente os meus deveres para com eles. Os outros homens só abrem mão de seus bens já velhos e na agonia, e é ainda chorando, que renunciam ao que suas mãos desfalecentes não mais podem reter. Eu, cheio de saúde e juventude, tudo dei aos meus parentes e amigos. - Eles não se queixarão, espero, do meu egoísmo; não exigirão que, para cumulá-los de ouro, eu me faça escravo de um rei.
- Entendamo-nos, disse Pedro, a minha intenção não foi a de que servísseis um príncipe como lacaio e sim como ministro.
- Os príncipes, meu amigo, põem nisto pouca diferença; e, entre estas duas palavras latinas servire e inservire, vêm apenas uma sílaba a mais, ou a menos.
- Chamai a coisa como quiserdes, respondeu Pedro; é o melhor meio de ser útil ao público, aos indivíduos, e de tornar mais feliz a própria situação.
- Mais feliz, dizeis! Mas, como aquilo que repugna ao meu sentimento, ao meu caráter, poderia fazer minha felicidade? Presentemente sou livre, vivo como quero, e duvido que muitos dos que vestem a púrpura possam dizer o mesmo. Muita gente ambiciona os favores do trono; os reis não sentirão falta, se eu e dois ou três da minha têmpera não nos encontrarmos entre os cortesãos.
Então falei assim:
É evidente, Rafael, que não procurais riquezas nem poder, e não tenho menos admiração e estima por um homem como vós, do que por aquele que está à frente de um império. Parece-me, entretanto, que seria digno de um espírito tão generoso, tão filósofo, como o vosso, aplicar todos os seus talentos na direção dos negócios públicos, embora houvesse que comprometer o seu bem estar pessoal; ora, a maneira de o fazer com mais proveito, é ainda a de entrar para o conselho de algum grande príncipe; estou certo de que a vossa boca não se abrirá jamais, senão para a virtude e para a verdade. Vós o sabeis, o príncipe é a fonte de onde o bem e o mal jorram, como uma torrente, sobre o povo; e possuís tanta ciência e tantos talentos que, embora não tivésseis o hábito dos negócios, daríeis, mesmo assim, um excelente ministro para o rei mais ignorante.
- Incidis num duplo erro, caro Morus, replicou Rafael; e não só quanto ao fato em si como quanto à pessoa; estou longe de ter a capacidade que me atribuis; e mesmo que a tivesse cem vezes maior, o sacrifício de meu sossego seria inútil à causa pública.
Em primeiro lugar, os príncipes cuidam somente da guerra (arte que me é desconhecida e que não tenho nenhum desejo de conhecer). Eles desprezam as artes benfazejas da paz. Trate-se de conquistar novos reinados, e todos os meios lhes parecem bons; o sagrado e o profano, o crime e o sangue, não os detêm. Em compensação, ocupam-se muito pouco de bem administrar os Estados submetidos à sua dominação.
Quanto aos conselhos dos reis, eis aproximadamente a sua composição:

[...]

Que sucede então no seio desses conselhos onde reinam a inveja, a vaidade e o interesse?

[...]

Julgai ainda que as pessoas da corte levariam em grande consideração minha pessoa e meus conselhos?
Respondi a Rafael: [...] Persisto na mesma opinião a vosso respeito, estando persuadido de que vossos conselhos seriam de uma alta utilidade pública, se quisésseis vencer o horror que vos inspiram os reis e as cortes. E não é um dever para vós, como para todo bom cidadão, sacrificar ao interesse geral as suas ojerizas particulares? Platão disse: A humanidade será feliz um dia, quando os filósofos forem reis, ou quando os reis forem filósofos. Ai! Como está longe de nós esta felicidade quando os filósofos nem ao menos se dignam assistir os reis com seus conselhos!
Caluniais os sábios, replicou-me Rafael; eles não são bastante egoístas para esconder a verdade; muitos a têm revelado em seus escritos; e se os senhores do mundo estivessem preparados para receber a luz, poderiam ver e compreender. Infelizmente cega-os uma venda fatal, a venda dos preconceitos e dos falsos princípios, em que se formaram e dos quais foram inficionados já na infância. Platão não ignorava isso; sabia, como nós, que os reis nunca seguiam os conselhos dos filósofos, se eles próprios já não o eram também. Platão teve disso a triste experiência na corte de Diniz, o Tirano.
Suponhamos, pois, que eu seja ministro de um rei. Proponho-lhe os decretos mais salutares; esforço-me por arrancar de seu coração e de seu império todos os germes do mal. Acreditais que não me expulsará da corte ou que não me exporá ao riso dos cortesãos?

[...]

Volto à minha hipótese. Se fosse mais longe ainda; se, dirigindo-me ao próprio monarca, o fizesse ver que essa paixão de guerrear, que transtorna as nações, depois de ter esgotado as finanças e arruinado o povo, poderia ocasionar as conseqüências mais fatais; se lhe dissesse:
Senhor, aproveitai a paz que um feliz acaso vos concede, cultivai o reino de vossos pais, fazei nele florescer a felicidade, a riqueza e a força; amai vossos súditos, e que o amor deles faça a vossa alegria; vivei como pai no meio deles e não comandai nunca como déspota; deixai em paz os outros reinos; aquele que vos coube por herança é suficientemente grande para vós.
Dizei-me, caro Morus, com que espécie de bom ou mau humor seria acolhida semelhante arenga?
- Com péssimo mau humor, respondi.

[...]

Se outra vez me erguesse, e falasse assim a esses poderosos senhores:
Vossos conselhos são infames, vergonhosos para o rei, funestos para o povo. A honra de vosso senhor e a sua felicidade consistem na riqueza de seus súditos mais ainda do que na sua própria. Os homens fizeram os reis para os homens e não para os reis; colocaram chefes à sua frente para que pudessem viver comodamente ao abrigo das violências e dos ultrajes; o dever mais sagrado do príncipe é velar pela felicidade do povo antes de velar pela sua própria; como um pastor fiel, deve dedicar-se a seu rebanho, e conduzi-lo às pastagens mais férteis.
Sustentar que a miséria pública é a melhor salvaguarda da monarquia é sustentar um erro grosseiro e evidente; onde se vêm mais querelas e rixas do que entre os mendigos?
Qual o homem que mais deseja uma revolução? Não será aquele cuja existência atual é miserável?
Qual o homem que revelará maior audácia em subverter o Estado? Não será aquele que com isso só pode ganhar por nada ter a perder?
Um rei que provocasse o ódio e o desprezo dos cidadãos e cujo governo não pudesse se manter senão pelas vexações, pela pilhagem, pelo confisco e pela miséria universal, deveria descer do trono e depor o poder supremo. Empregando estes meios tirânicos, talvez pudesse conservar o nome de rei, mas de rei não teria mais nem o ânimo nem a majestade. A dignidade real não consiste em reinar sobre mendigos, mas sobre homens ricos e felizes.
Fabricius, esta grande alma, estava todo penetrado desse sublime sentimento quando respondeu: Prefiro governar ricos do que eu mesmo ser rico. E, de fato, nadar em delícias, saciar-se de voluptuosidades em meio às dores e gemidos de um povo, não é manter um reino e sim uma cadeia.
O médico que só sabe curar as moléstias de seus clientes dando-lhes moléstias mais graves, passa por ignaro e imbecil; confessai, pois, - ó vós que não sabeis governar senão arrebatando aos cidadãos a subsistência e as comodidades da vida! - confessai que sois indignos e incapazes de dirigir homens livres! Ou então corrigi vossa ignorância, vosso orgulho e vossa preguiça: é isso o que excita o ódio e o desprezo pelo soberano. Vivei de vosso patrimônio, segundo a justiça; medi vossas despesas na proporção de vossas rendas; detei as torrentes do vício; criai instituições de benemerência, que previnam o mal e o estiolem no germe, ao em vez de inventar suplícios contra os infelizes que uma legislação absurda e bárbara impele ao crime e à morte.

[...]

Mas, dizei-me, caro Morus, pregar uma tal moral a homens que por interesse e por sistema se orientam por princípios diametralmente opostos, não é contar histórias a surdos?
- E a surdos como portas, respondi. Mas isto não me espanta, e, para vos revelar o meu modo de pensar, é perfeitamente inútil dar conselhos quando se tem a certeza de que serão repelidos, quer na forma, quer no fundo. Ora, os ministros e os políticos de hoje, estão impregnados de erros e preconceitos; como quereis bruscamente modificar suas crenças e fazer penetrar, de chofre, em suas cabeças e em seu coração, a verdade e a justiça? Esta filosofia escolástica está no seu lugar em uma conversação familiar, entre amigos; está fora de propósito nos conselhos dos reis, onde grandes coisas são tratadas com grande autoridade e em face do poder supremo.
- Era isto o que vos dizia ainda agora, retrucou Rafael, a filosofia não tem acesso na corte dos príncipes.
- Dizeis a verdade se vos referis a esta filosofia de escola, que ataca de frente, e cegamente, os tempos, os lugares, e as pessoas. Mas, existe uma filosofia menos selvagem; esta conhece o teatro em que atua, e, na peça que deve representar, desempenha seu papel com decência e harmonia. É esta a que deveis empregar.
Suponhamos que, durante a representação de uma comédia de Plauto, no momento em que os escravos estão de bom humor, irrompeis em cena, em trajes de filósofo, declamando a passagem de Otávio, em que Sêneca repreende e prega moral a Nero; duvido muito que fôsseis aplaudido. Certamente, teríeis agido com mais acerto se vos tivésseis limitado ao papel de um personagem mudo do que oferecer ao público este drama tragicômico. Um monstruoso amálgama destes estragaria todo o espetáculo, mesmo que a vossa citação valesse cem vezes mais do que a peça. Um bom ator pôe todo seu talento no papel que vai representar, qualquer que ele seja; e não perturba o conjunto, porque lhe ocorre à fantasia declamar uma tirada magnífica e pomposa.
Da mesma maneira convém agir quando se delibera acerca dos negócios do Estado, no seio do conselho real; Se não se pode desarraigar de uma só vez as máximas perversas, nem abolir os costumes imorais, não é isto razão para se abandonar a causa pública. O piloto não abandona o navio diante da tempestade porque não pode domar o vento.
Falais a homens imbuídos de princípios contrários aos vossos; que caso poderão fazer de vossas palavras, se lhes atirais à face a contradita e o desmentido? Segui o caminho oblíquo - ele vos conduzirá mais seguramente à meta. Aprendei a dizer a verdade com propriedade e a propósito; e, se vossos esforços não puderem servir para efetuar o bem, que sirvam ao menos para diminuir a intensidade do mal; porque tudo só será bom e perfeito, quando os próprios homens forem bons e perfeitos; e até lá, os séculos passarão.
Rafael respondeu:
Quereis saber o que me sucederia se assim procedesse? Ao querer curar a loucura dos outros, acabaria demente também. Mentiria, se falasse doutra maneira da que vos falei. A mentira é talvez permitida a certos filósofos, mas não está em minha natureza. Sei que minha linguagem parecerá dura e severa aos conselheiros do rei; apesar disso, não vejo por que sua novidade seja de tal modo estranha que toque ao absurdo. Se me referisse às teorias da república de Platão, ou aos usos atualmente em vigor entre os utopianos, coisas melhores e infinitamente superiores às nossas idéias e costumes, então, poder-se-ia crer que eu vinha de outro mundo, porque aqui o direito de possuir de seu pertence a cada um, enquanto que lá todos os bens são comuns. Mas, o que disse eu que não fosse conveniente e mesmo necessário de se divulgar. Minha moral mostra o perigo e dele salva o homem. ponderado; não fere senão o insensato que se atira de olhos fechados ao abismo.
Há covardia ou má fé em calar as verdades que condenam a perversidade humana, sob o pretexto de que serão escarnecidas como novidades absurdas ou quimeras impraticáveis. De outra forma, seria necessário deitar um véu sobre o Evangelho e dissimular aos cristãos a doutrina de Jesus. Mas Jesus proibia a seus apóstolos o silêncio e o mistério; repetia-lhes sempre: O que vos digo em voz baixa e ao ouvido, pregai pôr toda parte, em voz alta e às claras. Ora, a moral de Cristo está muito mais em contradição aos costumes deste mundo, do que os nossos discursos.
Os Pregadores, homens sagazes, seguiram o caminho oblíquo de que me falastes há pouco; vendo que repugnava aos homens acomodar seus maus costumes à doutrina cristã, torceram o Evangelho, como se fosse uma lei de chumbo, para modelá-lo segundo os maus costumes dos homens. Onde os conduziu esta hábil manobra? A dar ao vício a calma e a segurança da virtude.
Quanto a mim, não obteria melhor resultado nos conselhos dos príncipes, porque, ou minha opinião é contrária à opinião geral, e, nesse caso, não seria tomada em consideração, ou coincide com a opinião geral, e então, deliro também com os loucos, segundo a expressão de Micion, a personagem de Terêncio.
Assim, não vejo aonde pode levar o vosso caminho retorcido. Dizeis: Quando não se pode atingir a perfeição, deve-se, ao menos, atenuar o mal. Mas aqui, a dissimulação é impossível e a conivência um crime, pois se trata de aprovar as propostas mais execráveis, de votar decretos mais perigosos que a peste, e, neste caso, aprovar perfidamente deliberações infames como essas, seria comportar-se tal qual um espião e um traidor.
Não há, pois, nenhuma maneira de ser útil ao Estado nessas altas regiões. O ar que aí se respira corrompe a própria virtude. Os homens que vos cercam, longe de corrigir-se com os vossos ensinamentos, vos depravam com seu contato e pela inf1uência de sua perversão; e se conservais vossa alma pura e incorruptível, servireis de manto às suas imoralidades e loucuras. Não há, pois, esperança de transformar o mal em bem, trilhando o vosso caminho oblíquo, aplicando os vossos meios indiretos".

(São Thomas Morus, “Utopia”, Livro Primeiro)

Um mundo insaciavelmente maluco

"É como se dissesse assim: você tem um doente na sua casa. Este doente está infectado por uma doença contagiosa. Existem três atitudes: você pode enxotar este doente da sua casa e você vai dizer: Oh! Cai fora daqui, que você vai contaminar todo mundo, suma daqui! Bom, você não amou esta pessoa. Você pode tomar outra atitude extrema, que é ficar abraçando e beijando este doente o tempo inteiro e você termina contaminado. Mas existe a atitude prudente e sensata que é você colocar uma máscara, não tomar água nos mesmos copos e nem usar os mesmos talheres daquela pessoa, e ao mesmo tempo servi-lo, cuidar dele na cama, dar remédio, levar ao médico, com todo cuidado do mundo para não se contaminar. É este tipo de coisa que nós temos que escolher diante do mundo moderno. Se você ficar abraçando e beijando o mundo moderno demais, meu irmãozinho, numa atitude de bom-mocismo, o que vai acontecer com você é que você vai perder a fé, porque este mundo é louco. [...] Hoje, nós somos capazes de enxergar perfeitamente que este mundo é louco. Nós estamos num mundo maluco, num mundo insaciavelmente maluco, insano, que está numa cultura de morte e destruição. É um mundo que vive na automutilação contínua, dos seus próprios pecados e desobediência a Deus, porque o salário do pecado é a morte".

(Padre Paulo Ricardo de Azevedo, "A Igreja e o Mundo Moderno" - parte 01, palestra publicada no site www. padrepauloricardo.org)

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Casal de Compadres



(Almeida Jr., Violeiro, 1899)

Clareira
(Adélia Prado)

Seria tão bom, como já foi,
as comadres se visitarem nos domingos.
Os compadres fiquem na sala, cordiosos,
pitando e rapando a goela. Os meninos,
farejando e mijando com os cachorros.
Houve esta vida ou inventei?
Eu gosto de metafísica, só pra depois
pegar meu bastidor e bordar ponto cruz,
falar as falas certas: a de Lurdes casou,
a das Dores se forma, a vaca fez, aconteceu,
as santas missões vêm aí, vigiai e orai
que a vida é breve.
Agora que o destino do mundo pende do meu palpite,
quero um casal de compadres, molécula de sanidade,
pra eu sobreviver.

sábado, 12 de dezembro de 2009

“...essa velhinha, essa velhota chata que vem e bate à nossa porta...”

Semelhante ao que dorme num sonho, sentia-me docemente oprimido pelo peso do século. Os pensamentos com que em Vós meditava pareciam-me com os esforços daqueles que desejavam despertar, mas que, vencidos pela profundeza da sonolência, de novo mergulhavam no sono. Não há ninguém que queira dormir sempre. A sã razão de todos concorda que é preferível estar acordado. E contudo, quando o torpor torna os membros pesados, retarda-se, as mais das vezes, a hora de sacudir o sono, e vai-se continuando, de boa vontade, a prolonga-lo até ao aborrecimento, mesmo depois de haver chegado o tempo de levantar.
Também eu estava certo de que o entregar-se ao vosso amo era melhor que ceder ao meu apetite. Mas o primeiro agradava-me e vencia-me; o segundo aprazia-me e encadeava-me. Não tinha, por isso, nada que Vos responder, quando me dizíeis: “Desperta, ó tu que dormes; levanta-te de entre os mortos e Cristo te iluminará” (Ef 5,14). Mostrando-me Vós, por toda parte, que faláveis verdade, eu, que já estava convencido, não tinha absolutamente nada que Vos responder senão palavras preguiçosas e sonolentas: “Um instante, um instantinho, esperai um momento”. Mas este “instante” não tinha fim, e este “esperai um momento” ia-se prolongando.
“Deleitava-me com a vossa Lei segundo o homem interior, mas em vão, porque em meus membros outra lei repugnava à lei do meu espírito, e me mantinha cativo na lei do pecado que está em meus membros” (Rom, 7,2). Com efeito, a lei do pecado é a violência do hábito, pela qual a alma, mesmo contrafeita, é arrastada e presa, mas merecidamente, porque, querendo, se deixa escorregar. Ah! Miserável de mim! “Quem me livrará deste corpo mortal, senão a vossa graça, por Jesus Cristo Nosso Senhor?” (Rom 7, 22-25).

(do Livro VIII, capítulo 5, das "Confissões" de Santo Agostinho)
(Título: Bruno Tolentino, “Do Enigma ao Mistério”, Dicta&Contradicta, número 01, jun/08)

domingo, 6 de dezembro de 2009

“Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho...” – ciente me respondeu

"[...] O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam. Verdade maior. É que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza. [...]
[...] Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não dói até em criancinhas e bichos, e nos dôidos – não dói sem precisar ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa existir para haver - a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo. Se eu estou falando às flautas, o senhor me corte. Meu modo é este. Nasci para não ter homem igual em meus gostos. O que invejo é sua instrução do senhor... [...]" (das veredas do Grande Sertão)