quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Filosofia com Olavo de Carvalho


Pouca gente, pouca mesmo, sabe hoje o que é filosofia. Confundem-na com a arte de argumentar, com um apanhado de aforismos para orientação geral na vida, com regras para o bem pensar, com uma ideia geral sobre a vida, com a lógica, com a análise de textos ou da linguagem e outras construções desse tipo.
Foi com filósofo Olavo de Carvalho que ouvi, pela primeira vez, uma definição da filosofia ao mesmo tempo compreensível, completa e convincente. Bom, geralmente eu acabo convencido de tudo o que o Olavo fala, é verdade... Mas qualquer sujeito minimamente inteligente logo entrevê na conceituação do Olavo que aquilo é verdadeiro, não importando, neste momento, se engloba toda a filosofia ou só um pedacinho dela.
Faltariam os demais dois atributos: a possibilidade de ser compreendida e a completude.
Segundo o Professor Olavo, a filosofia é a unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versaEu acho que ouvi esta definição há uns seis anos atrás, e desde então venho tentando compreendê-la e assimilar.
Uma coisa é entender a frase, outra é entender o sentido profundo que encerra, é dizer, a experiência cognitiva mas também existencial que corresponde ao enunciado. Daquele entendimento a este último delonga uma fase bastante lenta, na qual temos que presenciar o ato de filosofar, a luta de um filósofo para coerenciar cada vez mais seus conhecimentos crescentes na unidade de sua consciência e para que sua consciência seja unificada pela unidade sobrejacente àqueles conhecimentos.
Ou seja, o filósofo se caracteriza por ser aquele que busca estas unidades complementares, que faz desta ação unificadora do que sabe e do que é a trama de sua existência.
O conceito de filosofia do Olavo, portanto, pode ser compreendido rapidamente, em um sentido mais raso, onde se suspeita do oceano que há por baixo, e muito lentamente, quando navegamos nos mares desbravados por ele.
A definição também é completa porque, quer se afirme ou se negue esta ou aquela filosofia, quer se aceite no time dos filósofos este ou aquele, quer se pretenda olhar o viés de obra escrita, oral, histórica, enfim, quer se faça qualquer categorização de filosofias e filósofos, todas encerrarão uma busca pela unidade do conhecimento na pessoa do filósofo, e de ser um filósofo que espelhe a unidade de seus conhecimentos.
Talvez isto tudo que escrevi seja um pouco hermético ou pareça pedante ou até mesmo vazio para quem não acompanha o trabalho e a vida do Professor Olavo. Então, vou deixar que ele mesmo dê mais umas explicações do que é a filosofia, contrastando com o que se faz por aí com este nome.
Retirei alguns poucos trechos que consegui coletar agora mesmo, rapidamente, e acho que já são um início instrutivo.
"Das experiências fundantes nascem as intuições centrais que dirigem a montagem das 'doutrinas' filosóficas. Sem o retorno às experiências, as doutrinas pairam no ar como puras construções mentais, ou 'obras', no sentido literário do termo, prestando-se assim a uma multiplicidade de interpretações heterogêneas que acabam por dissolver o sentido originário das intuições centrais. Pior ainda: a 'história da filosofia', contada assim, não pode ser senão uma sucessão de 'pensamentos' que se geram uns aos outros no céu das idéias puras, sem raízes no mundo da experiência humana. Essa 'história' é uma criação ficcional que, para justificar-se, tende ela própria a transmutar-se em nova 'doutrina' filosófica". (Dois métodos in  'A filosofia e seu inverso'. Campinas: Vide Editorial, 2012).
Para entender uma filosofia, não basta captar o sentido de um texto. É preciso mergulhar, por meio do texto, se for o caso, até a experiência que fundamenta e deu origem, que fundou a sua expressão verbal, a qual, de sua parte, pode ser melhor ou pior. Quando se narra uma história da filosofia com base nos textos ou ideias, nós unimos abstrações através de uma outra abstração, perdendo a experiência cognitiva concreta de todos os filósofos, no mesmo ato em que erigimos este 'desenvolvimento' abstrato a ideia central, bem como autônoma, do indivíduo, uma filosofia sem filósofos.
Como ensinou o Olavo em certa ocasião, é preciso realizar o processo de extrusão da experiência cognitiva que esconde-se na 'obra' do filósofo.
Nossa vida acadêmica coloca toda a ênfase nos textos, na argumentação ou nas construções teóricas, perdendo aquela experiência fundante que não apenas dá corpo, mas também sentido e verdadeira compreensão ao que se entende por filosofia.
Quem explica é o Professor:
"Como bem enfatiza o próprio Guéroult, a 'ordem das razões' é sempre um processo de validação. Sim, mas a validação de quê? De certas intuições de base que antecedem e orientam o próprio processo de validação. Se é este o processo e não as intuições de base o que constitui o essencial de filosofia, a filosofia torna-se uma atividade puramente discursiva sem nenhum aporte intuitivo, sem nenhuma percepção da realidade, sem nenhuma experiência vivida. Compreende-se que o interesse disso acabe sendo puramente acadêmico, para não dizer filológico" (idem).
A atenção quase exclusiva que se dá à construção linguística, sua unidade intrínseca enquanto texto, sua interligações, suas referências conceituais, enfim, a esta parte sistematizada na linguagem, nos deixa cegos para a realidade cognitiva (e também moral, vale dizer, embora não possamos explicar este viés aqui) cuja expressão é uma comunicação que deve permitir o encontro entre as consciências, e que contudo serve como barreira entre os indivíduos, e mais, entre o indivíduo e si mesmo.
Nos prendemos a construções teóricas, geralmente absolutizando as ideias de uma obra, supondo que este arranjo abstrato, este sistema embutido no texto, torne-se a chave para todos os problemas da vida, fugindo da responsabilidade de decidir e do esforço de, dia após dia, procurar novamente a unidade do conhecimento que sustenta a consciência e a unificar a consciência pelos conhecimentos obtidos.
De forma mais direta:
"No estudo da filosofia, os textos são apenas os documentos, quase sempre parciais e imperfeitos, pelos quais chegamos ao conteúdo mesmo da filosofia: as intuições fundamentais que justificam e embasam um esforço de validação, uma 'ordem das razões'. O conteúdo de uma filosofia não se constitui de proposições, de sentenças, mas dos atos cognitivos reais, vividos, que às vezes elas expressam bem, às vezes expressam mal. Se não fosse assim, não haveria diferença entre estudar uma obra filosófica e uma criação literária" (idem).
A filosofia, desse modo, é a busca pela unidade entre conhecimento e consciência, sendo seu conteúdo as intuições fundamentais, cuja expressão cria as obras filosóficas. Esta busca, enquanto atividade humana, pode ser classificada como uma técnica, a qual, para a grande maioria, só pode ser aprendida diante de um exemplo vivo de filósofo, de uma filosofia in fieri:
"A filosofia não é uma ciência, é uma técnica. Se uma ciência busca recortar um conjunto homogêneo de fenômenos e reduzi-lo a uma clave explicativa comum que possa ser confirmada ou impugnada por todos os pesquisadores interessados, o resultado dela é necessariamente uma série de sentenças articuladas entre si por nexos lógicos e referida ao mundo da experiência por um sistema de procedimentos de verificação. Uma técnica, ao contrário, reúne várias correntes causais autônomas e heterogêneas, irredutíveis a princípios comuns e unificadas tão somente pelo resultado a obter. Nenhuma técnica, por mais simples que seja, se reduz à aplicação de um princípio científico comum. Nenhuma técnica, a rigor, se deixa explicar totalmente pela ciência. A técnica tem sua racionalidade própria, interseccionada com a da ciência mas não redutível a ela" ('Introdução ao método filosófico' in www.olavodecarvalho.org).
Esta técnica é composta da integração de várias atividades (anamnese, meditação, exame dialético, pesquisa histórico-filológica, hermenêutica, exame de consciência, técnica expressiva), porém, só pode ser aprendida na observação de um filósofo que a coloca em prática.
Tal afirmação se retira do passado, já que, segundo o professor "só houve grande ensino da filosofia onde um filósofo vivo e presente, no auge dos seus poderes intelectuais e pedagógicos, transmitia aos alunos, na convivência pessoa diuturna, o exemplo da sua busca e do seu know how" (Miséria sem grandeza: a filosofia universitária no Brasil in 'A filosofia e seu inverso'. Campinas: Vide Editorial, 2012).
Em outras palavras: "quem não viu um filósofo de verdade bracejando dia a dia com as dificuldades da sua própria filosofia não saberá jamais o que é filosofar, pouco importando a imensidão da sua cultura filosófica. Que é, afinal, o primeiro grande clássico da filosofia ocidental senão o relato do convívio fecundante entre um mestre e seu discípulo genial?" (idem).
A filosofia em estado nascente, o exemplo vivo da técnica filosófica, é isto que podemos aprender (e muito mais) com Olavo de Carvalho, com ele, e talvez com mais ninguém neste nosso mundo de hoje, tão avesso ao amor, à sabedoria e à verdade, que acaba criando seu inverso.

2 comentários:

  1. Excelente síntese. É uma lição tão verdadeira, tão boa e tão bela, que desperta um misto de nostalgia (de quem vive mergulhado num mundo todo inverso) e entusiasmo (de quem descobre uma preciosa fonte em tempos de seca). Ao mesmo tempo desafiante e tão grandiosa, que é um convite a entregar a própria vida nesta busca.

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  2. Excelente texto. Resume bem grandes elementos da filosofia, tal como a técnica, a experiência, a epistemologia, a problematização.
    Grande texto.

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