Do Livro do Desassossego, por Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
Quando nasceu a geração, a que
pertenço, encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse cérebro, e
ao mesmo tempo coração. O trabalho destrutivo das gerações anteriores fizera
que o mundo, para o qual nascemos, não tivesse segurança que nos dar na ordem
religiosa, esteio que nos dar na ordem moral, tranquilidade que nos dar na
ordem política. Nascemos já em plena angústia metafísica, em plena angústia
moral, em pleno desassossego político. Ébrias das fórmulas externas, dos meros
processos da razão e da ciência, as gerações, que nos precederam, aluíram todos
os fundamentos da fé cristã, porque a sua crítica bíblica, subindo de crítica
dos textos a crítica mitológica, reduziu os evangelhos e a anterior hierografia
dos judeus a um amontoado incerto de mitos, de legendas e de mera literatura; e
a sua crítica científica gradualmente apontou os erros, as ingenuidades
selvagens da «ciência» primitiva dos evangelhos; e, ao mesmo tempo, a liberdade
de discussão, que pôs em praça todos os problemas metafísicos, arrastou com
eles os problemas religiosos onde fossem da metafísica. Ébrias de uma coisa
incerta, a que chamaram «positividade», essas gerações criticaram toda a moral,
esquadrinharam todas as regras de viver, e, de tal choque de doutrinas, só
ficou a certeza nenhuma, e a dor de não haver essa certeza. Uma sociedade assim
indisciplinada nos seus fundamentos culturais não podia, evidentemente ser
senão vítima, na política, dessa indisciplina; e assim foi que acordámos para
um mundo ávido de novidades sociais, e [que] com alegria ia à conquista de uma
liberdade que não sabia o que era, de um progresso que nunca definira.
Mas o criticismo fruste dos nossos pais, se nos legou a
impossibilidade de ser cristão, não nos legou o contentamento com que (...)
tivéssemos; se nos legou a descrença nas fórmulas morais estabelecidas, não nos
legou a indiferença à moral e às regras de viver humanamente; se deixou incerto
o problema político, não deixou indiferente o nosso espírito a como esse
problema se resolvesse. Nossos pais destruíram contentemente, porque viviam
numa época que tinha ainda reflexos da solidez do passado. Era aquilo mesmo que
eles destruíam que dava força à sociedade para que pudessem destruir sem sentir
edifício rachar-se. Nós herdámos a destruição e os seus resultados.
Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos
insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje
quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicómio:
a incapacidade de pensar, a amoralidade e a hiperexcitação.
Pertenço
a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma
descrença em todas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor,
que transferiam do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns eram
entusiastas da igualdade social, outros eram enamorados só da beleza, outros
tinham a fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros que, mais cristãos
ainda iam buscar a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que
entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente viver.
Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações
nascemos órfãos. Cada civilização segue a linha íntima de uma religião que a
representa: passar para outras religiões é perder essa, e por fim perdê-las a
todas.
Nós perdemos essa, e às outras também.
Ficámos, pois, cada um entregue a si próprio, na
desolação de se sentir viver. Um barco parece ser um objecto cujo fim é
navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós
encontrámo-nos navegando, sem a ideia do porto a que nos deveríamos acolher.
Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas:
navegar é preciso, viver não é preciso.
Sem ilusões, vivemos apenas do sonho, que é a
ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuímo-nos,
porque o homem completo é o homem que se ignora. Sem fé, não temos esperança, e
sem esperança não temos propriamente vida. Não tendo uma ideia do futuro,
também não temos uma ideia de hoje, porque o hoje, para o homem de acção, não é
senão um prólogo do futuro. A energia para lutar nasceu morta connosco, porque
nós nascemos sem o entusiasmo da luta.
Uns de nós estagnaram na conquista alvar do
quotidiano, reles e baixos buscando o pão de cada dia, e querendo obtê-lo sem o
trabalho sentido, sem a consciência do esforço, sem a nobreza do conseguimento.
Outros, de melhor estirpe, abstivemo-nos da coisa
pública, nada querendo e nada desejando, e tentando levar até ao calvário do
esquecimento a cruz de simplesmente existirmos. Impossível esforço, em que[m]
não tem, como o portador da Cruz, uma origem divina na consciência.
Outros entregaram-se, atarefados por fora da alma,
ao culto da confusão e do ruído, julgando viver quando se ouviam, crendo amar
quando chocavam contra as exterioridades do amor. Viver doía-nos, porque
sabíamos que estávamos vivos; morrer não nos aterrava porque tínhamos perdido a
noção normal da morte.
Mas outros, Raça do Fim, limite espiritual da Hora
Morta, nem tiveram a coragem da negação e do asilo em si próprios. O que
vivemos foi em negação, em descontentamento e em desconsolo. Mas
vivemo-lo de dentro, sem gestos, fechados sempre, pelo menos no género de vida,
entre as quatro paredes do quarto e os quatro muros de não saber agir.
[...]"
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