quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

12 homens e uma sentença

Eu gosto de assistir a filmes antigos. Não porque sejam antigos, mas porque geralmente os filmes antigos que chegam ao nosso conhecimento são os bons filmes antigos. Então, na verdade, corrigindo a frase inicial, eu gosto de filmes bons, sejam eles antigos ou não. E como os filmes antigos que conheço são bons: eu gosto de assistir a filmes antigos.
12 homens e uma sentença ou, no original, 12 angry men, é um desses filmes antigos, um bom filme antigo. O filme tem algumas peculiaridades. A primeira: o nome do filme traduzido é bem melhor do que o original. Está certo, esta não é uma nota sobre o filme, e sim sobre seu nome. Mas o leitor há de convir que uma coisa rara é a tradução brasileira ser melhor do que o nome dado ao filme pelo autor. Muitas vezes a tradução tupiniquim confunde totalmente o tema do filme, em outras, antecipa o desfecho do suspense e, em outras ainda, demonstra total incompreensão da película. Vale a pena realçar, portanto, esta qualidade do filme ou, mais propriamente, do tradutor do título.
Voltando, então, ao filme mesmo, uma de suas peculiaridades, e que dá tom e ritmo às filmagens, é que ele praticamente se passa em um único cenário. O filme trata do julgamento de um jovem acusado de homicídio. Basicamente todo o enredo se passa na sala dos jurados, onde estes discutem o caso.
A cena inicial começa dando uma ideia de rotina forense, apenas mais um dia no tribunal. A câmera adentra na sala de julgamento, onde o juiz, com semblante e voz que atestam o tédio de mais um dentre inúmeros casos, profere a recomendação solene e supostamente tantas vezes já pronunciada antes, embora não menos bela e verdadeira: a vida de um homem foi tirada, a vida de outro está em jogo.
Achei interessante esta frase, a um só tempo sintética e profunda, ser falada por um juiz que mal consegue balbuciá-la, desgastado pelo calor e pela repetição de seu mister. Há algo de misterioso na desarmonia entre a forma e o conteúdo, que já prenuncia a dialética dos debates que ocorrerão, a batalha entre a vontade de carimbar a fórmula jurídica para encerrar mais um compromisso e o desejo de buscar a justiça com detidão e prudência.
O réu acusado de homicídio é um jovem, aparentemente pobre e de origem estrangeira do terceiro mundo. A vítima, seu pai.
O magistrado deixa claro aos jurados que, devido à gravidade do crime, se o júri concluir pela condenação, a única pena possível seria a de morte.
Os jurados se retiram para a sala que lhes servirá ao exame do caso. Muito calor naquele dia, e as janelas fechadas e difíceis de abrir. Um deles foi incumbido de organizar a discussão e a votação e pede aos demais, já ansiosos, que aguardem outro jurado, um senhor de idade avançada que foi ao banheiro, apertado que estava.
A composição do júri é variada. Mais jovens e mais velhos, mais humildes e mais abastados, de pouco ou muito estudo, temperamento tranquilo ou de nervos à flor da pele.
O organizador toma a frente e, após chegaram a um rápido consenso sobre a forma de votação, e considerando que o caso apresentava provas veementes e indubitáveis, cada qual profere seu veredicto individual: culpado ou inocente.
Não sei se o sistema americano inteiro é assim, mas neste filme os jurados devem chegar a uma sentença unânime. Eles podem discutir o tempo que for preciso, mas não é permitida divergência entre eles. Se não conseguirem convencerem-se a todos, o julgamento é anulado. A declaração de culpa é afastada se houver dúvida razoável, quando então o acusado deve ser inocentado.
Sucede que todos os jurados votam, mesmo sem discussão alguma, pela condenação. Exceto um. Um dos jurados vota pela inocência. Muitos ficam bravos, outros espantados e curiosos. Ele não apresenta de forma direta um contra-argumento. Simplesmente, quer conversar um pouco mais antes de condenarem um homem à morte.
O leitor já pode adivinhar o resultado final, mas o que realmente torna este um dos melhores filmes antigos a que já pude assistir é a dinâmica incrível que se cria no decorrer do tempo. A ansiedade de um faz com que irrompa em raiva desmedida, no momento mesmo em que pretendia chamar o desgarrado jurado à razão. O senhor mais velho consente em ouvir mais e acaba sendo discriminado por outros jurados. Alguns não gostam dos preconceitos que desembocam da boca dos demais e mudam de lado. Outro quer sair dali e ir ao jogo para o qual tem os ingressos na mão. Reviravoltas, surpresas, tudo aquilo que faz um bom suspense encontramos neste filme, passado numa pequena sala, onde podemos antecipar o final, mas adoramos degustar o enredo.
Muitos moderninhos chamarão a atenção para teorias sobre criminalização de classes sociais, para preconceitos da sociedade e todo aquele discurso de bom-mocismo vitimista que domina hoje certas esferas. Porém, a beleza deste filme esconde-se na forma com que um homem, inspirado por um amor à justiça ou pelo menos pelo medo da injustiça, comove e, assim, move seus semelhantes.
O tema, na minha leitura, é a velha e sempre atual batalha entre a fraqueza de nossos vícios e a força de nossas virtudes. Quando um de nós é capaz de incorporar em si a força do bom, do belo ou do justo, cedemos a este poder que nos contagia, e nos libertamos da fraqueza que nos contamina. É assim que doze homens são seduzidos a fazerem a coisa certa. Não são apóstolos, mas certamente nos deixam a impressão do bem, e da luta que devemos empreender no tribunal que trazemos conosco todos os dias, e perante o qual nos apresentaremos no final.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

"Homens despretensiosos, de boa natureza, tornam-se covardes quando não têm religião. São dominados e explorados, não só por fracotes gananciosos, idiotas e meio mortos que fazem qualquer coisa por charutos, champagne, automóveis e os usos mais infantis e egoístas do dinheiro, mas também por gerente capazes e inteligentes, que nada podem fazer com eles a não ser dominá-los e explorá-los. Governo e exploração tornam-se sinônimos sob tais circunstâncias; e o mundo acaba sendo liderado pelos infantilizados, os bandidos e os canalhas. Aqueles que se recusam a lhes dar guarida são perseguidos, e ocasionalmente executados, quando causam problemas aos exploradores. Caem na pobreza, quando não apresentam nenhum talento específico para o lucro. [...] E a maioria, de boa índole, segue observando, num horror indefeso, ou deixando-se persuadir pelos jornais de seus exploradores, que o assalto não é apenas um bom investimento econômico, mas um ato de justiça divina, do qual ela é ardente instrumento."  

(George Bernard Shaw, em "A Volta a Matusalém", de 1922, citado por Russell Kirk em "A arte normativa e os vícios modernos", com a seguinte consideração: "pode-se reconhecer a acuidade deste insight sem subscrever à curiosa religião, ou quase-religião, pregada por Shaw").

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

"A História apresenta duas linhas paralelas. Primeiro, os homens de ferro e de dinheiro, o político, o econômico, o social - ps conquistadores, os comerciantes, as crises de propriedade. Julgam que enchem o Mundo. Depois, os poetas, os artistas, os filósofos, os santos. Os primeiros esmagam os segundos. Mas os segundos ainda atuam mil anos depois da morte, quando se perdeu a pista dos primeiros. [...] Santo Agostinho vivia no tumulto da queda do Império Romano, mas já nada resta dos vândalos que cercavam Hipona, e nós ainda lemos as Confissões. Quando Agostinho morria na sua cidade cercada, toda a gente julgava, sem dúvida, que a guerra era o importante e os livros do Bispo um incidente acessório. [...] Eles só veem a História pela trama. A trama é o suporte material da vida humana; o desenho, que faz a beleza do humano, é o espírito que o traça sob a inspiração do sonho. Os homens de ferro e de dinheiro olham para o tapete do avesso e só veem a trama. Mas do outro lado é que está a beleza. [...] E quando se está lançado no caminho da beleza, sobe-se até Deus. Quando se alcançou a Deus, os conquistadores tornaram-se microscópicos." (Jacques Leclercq, "Diálogo do Homem e de Deus")

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O direito romano e sua atualidade

Alexandre Augusto de Castro Corrêa

28 de outubro de 1984

"Os estudantes das Faculdades de Direito do Brasil formam-se hoje em geral sem estudos de Direito Romano, considerados supérfluos para o exercício da profissão. Nada de mais, nesse modo de ver, salvo a circunstância de, sob a aparência de realismo, ele, na verdade, colocar o jurista num vazio ideológico facilmente preenchido pela propaganda esquerdista, principal adversária, aliás, dos estudos romanísticos.

O vazio ao qual nos referimos e no qual são lançados os juristas sem cultura geral resulta do descaso inoculado nos jovens pela consideração das relações profundas existentes entre sociedade e direito. A profissão, sem dúvida, permitindo ganhar, na advocacia exerce atrativo imediato e poderoso sobre a mocidade.

Mas, se as bases mesmas da sociedade na qual vivemos forem solapadas, a profissão desaparecerá. Ora, só o estudo científico e não apenas utilitário do Direito permite dar ao jovem a consciência de sua situação num mundo em transformação econômica e social e ameaçado pela subversão comunista.

Examinar os fundamentos morais, políticos e religiosos da sociedade em que vivemos, comparando-a com outras sociedades geradas por princípios opostos aos nossos, torna-se, portanto, em época de contestação e guerra fria, tão urgente e essencial, quanto ganhar dinheiro e fazer carreira.

Nosso "modus vivendi" de homens livres, nossa maneira de pensar a vida e os valores que a dignificam são hoje atacados, de modo mais ou menos sutil, por propaganda incansável, visando a intoxicar a América Latina a fim de melhor escravizá-la.

[...]

Estas considerações parecem suficientes, como dissemos no início, para mostrar como em época de contestação e guerra fria, que desgraçadamente já atingiu a América Latina, a reflexão sobre as bases de nossas instituições e de nosso modo de vida seja, mais do que nunca, urgente, se quisermos preservar o que nos resta de liberdade frente à investida totalitária. Ora, tal reflexão leva-nos, fatalmente, ao Direito Romano e à avaliação da importância de seu legado para a edificação do Direito dos povos livres do mundo." 


P.S. Naquele tempo (pouco menos de trinta anos) os estudantes de direito ainda eram capazes de considerar supérfluo o estudo do Direito Romano. Há pouco tempo, ainda eram capazes de um olhar perplexo, diante do desconhecido. Hoje, simplesmente ignoram: os melhores, estão muito ocupados com seus estágios, concursos públicos e prova da OAB; os piores estão bêbados, em algum dos bares ao redor da faculdade.  

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Poema "If" - Rudyard Kipiling

"Se"
(Rudyard Kipiling)
Poema – If – Rudyard Kipling
Se és capaz de manter a tua calma quando
Todo o mundo ao teu redor já a perdeu e te culpa;
De crer em ti quando estão todos duvidando,
E para esses no entanto achar uma desculpa;
Se és capaz de esperar sem te desesperares,
Ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
E não parecer bom demais, nem pretensioso;
Se és capaz de pensar –sem que a isso só te atires,
De sonhar –sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se encontrando a desgraça e o triunfo conseguires
Tratar da mesma forma a esses dois impostores;
Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas
Em armadilhas as verdades que disseste,
E as coisas, por que deste a vida, estraçalhadas,
E refazê-las com o bem pouco que te reste;
Se és capaz de arriscar numa única parada
Tudo quanto ganhaste em toda a tua vida,
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
Resignado, tornar ao ponto de partida;
De forçar coração, nervos, músculos, tudo
A dar seja o que for que neles ainda existe,
E a persistir assim quando, exaustos, contudo
Resta a vontade em ti que ainda ordena: “Persiste!”;
Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes
E, entre reis, não perder a naturalidade,
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
Se a todos podes ser de alguma utilidade,
E se és capaz de dar, segundo por segundo,
Ao minuto fatal todo o valor e brilho,
Tua é a terra com tudo o que existe no mundo
E o que mais –tu serás um homem, ó meu filho!
If
If you can keep your head when all about you
Are losing theirs and blaming it on you,
If you can trust yourself when all men doubt you
But make allowance for their doubting too,
If you can wait and not be tired by waiting,
Or being lied about, don’t deal in lies,
Or being hated, don’t give way to hating,
And yet don’t look too good, nor talk too wise;
If you can dream–and not make dreams your master,
If you can think–and not make thoughts your aim;
If you can meet with Triumph and Disaster
And treat those two impostors just the same;
If you can bear to hear the truth you’ve spoken
Twisted by knaves to make a trap for fools,
Or watch the things you gave your life to, broken,
And stoop and build ‘em up with worn-out tools;
If you can make one heap of all your winnings
And risk it all on one turn of pitch-and-toss,
And lose, and start again at your beginnings
And never breath a word about your loss;
If you can force your heart and nerve and sinew
To serve your turn long after they are gone,
And so hold on when there is nothing in you
Except the Will which says to them: “Hold on!”
If you can talk with crowds and keep your virtue,
Or walk with kings –nor lose the common touch,
If neither foes nor loving friends can hurt you;
If all men count with you, but none too much,
If you can fill the unforgiving minute
With sixty seconds’ worth of distance run,
Yours is the Earth and everything that’s in it,
And –which is more– you’ll be a Man, my son!
(tradução de Guilherme de Almeida da Folha de São Paulo)

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Sobre Caminhança II

Não vou dar conta de desenvolver aqui tudo o que tenho a dizer. Faço umas pinceladas apenas. Talvez mais tarde, com um pouco mais de tempo. Fica o bate-papo. Uma centelha! Confio na nossa intimidade... às vezes meias palavras bastam. É uma tentativa de diálogo com o o texto "sobre a caminhança" do caminhante João Augusto (por isso tive a ousadia de intitular este meu texto de nº II). A vocação é um dos temas mais importantes deste espaço. E é bom que seja assim, afinal de contas deve mesmo ser o tema mais importante das nossas vidas (vocação em seu sentido mais amplo). Apenas gostaria de dizer que tive uma reaproximação recente com o universo do Olavo, o que me permitiu alguns insights importantes (interessante como o afastamento e retorno a um grande autor pode ampliar a percepção da sua obra de forma inimaginável... o que parecia ter-se esgotado ressurge como uma fonte vigorosa - não que alguma vez tivesse a pretensão de esgotar os ensinamentos do Prof., é claro, mas falo no sentido da minha experiência pessoal com a obra dele). Difícil escrever sobre minhas conclusões por enquanto. Sinto que ainda não sou capaz de articular tudo. O processo ainda se destila dentro de mim. Mas arrisco algumas observações, em consideração, inclusive, à carta partilhada pelo João há alguns posts atrás.

A questão sobre a vocação e as decisões de vida envolvem uma questão anterior e com elas intimamente ligada, a autoconsciência. Não é possível compreender a própria vocação, nem corresponder à ela por uma decisão, se antes não tomarmos consciência da nossa própria condição existencial, seja internamente, seja exteriormente. É preciso, antes de tudo, conhecer estas condições, para em seguida iniciar um processo de compreensão e absorção destas circunstâncias, para que elas possam nos impulsionar à nossa verdadeira vocação. Mesmo aquelas que aparentemente parecem hostis, devem se integrar neste plano maior de nossas vidas. Estas circunstâncias envolvem desde questões de caráter e temperamento, a personalidade, história familiar, até o contexto histórico e social em que vivemos. Tudo isso compõe a nossa existência neste mundo.

Enfim, não digo nenhuma novidade. E pior! Digo de uma forma improvisada, pobre, muito distante do original. Por isso, convido a que leiam e assistam o Prof. Olavo tratando destes assuntos: é simplesmente maravilhoso! Desculpem, fiz apenas para criar o contexto para dizer que grande parte da nossa crise, do nosso sofrimento, não é apenas nosso, mas diz respeito a algumas condições em que estamos vivendo. Gostaria com isso apenas de complementar as reflexões da carta do João, acrescentando este aspecto que considero essencial: o fato de vivermos no contexto de um declínio cultural, de uma crise civilizacional. Boa parte da obra do Olavo é dedicada a entender justamente esta crise. Mas vejam bem. Não é por acaso que ele se dedica a isto. É porque esta é a sua condição existencial. Ele, enquanto filósofo jamais poderia partir de outro lugar. Ele só pode conhecer filosoficamente qualquer coisa, da mais simples bactéria até o universo, a partir de si mesmo. O ponto de partida é sempre este. Puxa! Isto muda completamente a forma de compreender o seu pensamento (e a sua vida). Não sei se consigo me fazer entender. Demorei para perceber isto com profundidade.

Pois bem. Conosco se dá o mesmo. Boa parte da nossa crise está ligada ao fato de que vivemos todos os dias caminhando por uma cultura que esta desmoronando. Esta desintegração está diante de nossos olhos e sofremos com isso. As reações são as mais diversas, mas a dor é a mesma. Pode ser um insolente cinismo, pode ser um humor escarrado, pode ser a depressão ou o esculacho, ou um utilitarismo materialista... Essas são algumas reações comuns hoje em dia. Porque ainda que não saibam, as pessoas estão reagindo a seu modo, mesmo que não o façam com toda a consciência.

Ser juízes, defensores, promotores? Sim. Mas nesta Justiça? Quem é capaz de esconder as pilhas de processo, o descompromisso generalizado, o comodismo do funcionalismo, a burocracia, as leis injustas, o caos legislativo... E, pior do que isso, toda a crise do pensamento jurídico, moral, filosófico que está por trás. Por isso sofremos. Esta é a verdade. Portanto o problema é anterior à própria vocação. E não temos como fugir. Esta é a nossa condição, e a condição que teremos que enfrentar. Abraçar (como não lembrar de Jesus pedindo para que abracemos a Cruz).
  
A imagem do náufrago é perfeita. Terrivelmente perfeita. Não adianta ficarmos fingindo que não. Temos que conhecer, compreender e absolver esta circunstância. Mesmo no naufrágio, há muito o que ser feito. Só encontraremos o sentido de nossas vidas se considerarmos realmente esta condição. Sem resistir, sem lamentar. Senão nos frustraremos. Vamos desanimar sempre. Não! Coragem e enfrentamento! Sem fugas... para salários, comodidades, viagens, títulos, poder... Sem o cinismo e a gozação tão presentes... (lembro de um juiz que conversei...). É possível sim encontrarmos o verdadeiro sentido de nossas vidas em meio ao naufrágio. Mas para isso temos que aceitá-lo. Se não seremos absorvidos, seremos mais uns burocratas tristes e infiéis. A resposta à nossa vocação dependerá disso. Sofrer sim. Mas com sentido, com magnanimidade! Fazer a vida valer a pena! 

O Olavo é um exemplo vivo disso. Vocação de professor, de filósofo. Circunstância: universidade brasileira, carreirismo, desonestidade intelectual etc etc etc...(sem falar nas outras inúmeras circunstâncias, pessoais, inclusive...se não me engano passou um longo período da juventude doente). Podem imaginar o sofrimento dele para encontrar um caminho de realização da sua vocação em meio a tantas circunstâncias hostis, a sua luta para encontrar o sentido da sua vida? Este é apenas um exemplo. Sobre isso ele escreveu (trecho do texto que postei antes deste):

"Mas nada proíbe um escritor de dirigir-se, em suas obras, aos sobreviventes do naufrágio espiritual do século XX, na esperança de que existam e não sejam demasiado poucos. Acossados pelo assédio conjunto da banalidade e da brutalidade, esses podem conservar ainda uma vaga suspeita de que em seus sonhos e esperanças ocultos há uma verdade mais certa do que em tudo quanto o mundo de hoje nos impõe com o rótulo de "realidade", garantido pelo aval da comunidade acadêmica e da Food and Drug Administration. É a tais pessoas que me dirijo exclusivamente, ciente de que não se encontram com mais freqüência entre as classes letradas do que entre os pobres e os desvalidos".       

Para concluir, penso que o sentido de nossas vidas sempre estará no amor, na caridade, como ensinava Viktor Frankl, outro grande exemplo. Do nosso "holocausto", do nosso naufrágio, só sobreviveremos por amor. No fundo, trata-se de darmos uma resposta amorosa ao dom da vida que recebemos, seja como juízes, como professores, como pais, cada um segundo a sua vocação especial. O Prof. Olavo tem dito muitas vezes que ele está chamando os seus alunos para uma obra de caridade. Pensem na profundidade do que isto significa...

Para finalizar, sugiro um grande filme: CLIQUE AQUI - "DETACHMENT"

Foi sugerido por um aluno do Olavo que está coordenando o IFE-Curitiba, Francisco Escorsim, nesta palestra bastante interessante: CLIQUE AQUI

Na verdade ele sugeriu que o pessoal assistisse o filme antes da palestra. (lá pelas tantas, inclusive, o professor personagem do filme sugere aos alunos o exercício do necrológio...) 

Com isso termino minhas colocações. Espero que tenham algum proveito. 

Apeirokalia (Olavo de Carvalho)

Bravo!, Ano I, no1, novembro de 1997 e
A Longa Marcha da Vaca para o Brejo: O Imbecil Coletivo II. Rio, Topbooks, 1998.

Como geralmente se entende por educação superior o simples adestramento para as profissões melhores, conclui-se, com acerto, que toda pessoa normal é apta a recebê-la e que, na seleção dos candidatos, qualquer elitismo é injusto, mesmo quando não resulte de uma discriminação intencional e sim apenas de uma desigual distribuição da sorte. Mas se por essa expressão se designa a superação dos limites intelectuais do meio, o acesso a uma visão universal das coisas, a realização das mais altas qualidades espirituais humanas, então existe dentro de muitos postulantes um impedimento pessoal que, mais dia menos dia, terminará por excluí-los e por fazer com que a educação superior, no sentido forte e não administrativo do termo, continue a ser de fato e de direito um privilégio de poucos.

Esse impedimento, graças a Deus, não é de ordem econômica, social, étnica ou biológica. É um daqueles males humanos que, como o câncer e as brigas conjugais, se distribuem de maneira mais ou menos justa e eqüitativa entre classes, raças e sexos. É o único tipo de imperfeição que poderia, com justiça, ser invocado como fundamento de uma seleção elitista, mas que de fato não precisa sê-lo, pois opera essa seleção por si, de maneira tão natural e espontânea que os excluídos não dão pela falta do que perderam e chegam mesmo a sentir-se bastante satisfeitos com o seu estado, reinando assim entre os poucos felizes e os muitos infelizes uma perfeita harmonia, salvaguardada pela distância intransponível que os separa.

O impedimento a que me refiro não é material ou quantificável. O IBGE não o inclui em seus cálculos e o Ministério da Educação o ignora por completo. No entanto ele existe, tem nome e é conhecido há mais de dois milênios. A mente treinada reconhece sua presença de imediato, numa percepção intuitiva tão simples quanto a da diferença entre o dia e a noite.

Os gregos chamavam-no apeirokalia. Quer dizer simplesmente "falta de experiência das coisas mais belas". Sob esse termo, entendia-se que o indivíduo que fosse privado, durante as etapas decisivas de sua formação, de certas experiências interiores que despertassem nele a ânsia do belo, do bem e do verdadeiro, jamais poderia compreender as conversações dos sábios, por mais que se adestrasse nas ciências, nas letras e na retórica. Platão diria que esse homem é o prisioneiro da caverna. Aristóteles, em linguagem mais técnica, dizia que os ritos não têm por finalidade transmitir aos homens um ensinamento definido, mas deixar em suas almas uma profunda impressão. Quem conhece a importância decisiva que Aristóteles atribui às impressões imaginativas, entende a gravidade extrema do que ele quer dizer: essas impressões profundas exercem na alma um impacto iluminante e estruturador. Na ausência delas, a inteligência fica patinando em falso sobre a multidão dos dados sensíveis, sem captar neles o nexo simbólico que, fazendo a ponte entre as abstrações e a realidade, não deixa que nossos raciocínios se dispersem numa combinatória alucinante de silogismos vazios, expressões pedantes da impotência de conhecer.

Mas é claro que as experiências interiores a que Aristóteles se refere não são fornecidas apenas pelos "ritos", no sentido técnico e estrito do termo. O teatro e a poesia também podem abrir as almas a um influxo do alto. À música — a certas músicas — não se pode negar o poder de gerar efeito semelhante. A simples contemplação da natureza, um acaso providencial, ou mesmo, nas almas sensíveis, certos estados de arrebatamento amoroso, quando associados a um forte apelo moral (lembrem-se de Raskolnikov diante de Sônia, em Crime e Castigo), podem colocar a alma numa espécie de êxtase que a liberte da caverna e da apeirokalia.

Porém, com mais probabilidade, as experiências mais intensas que um homem tenha tido ao longo de sua vida serão de índole a desviá-lo do tipo de coisa que Aristóteles tem em vista. Pois o que caracteriza a impressão vivificante que o filósofo menciona é justamente a impossibilidade de separar, no seu conteúdo, a verdade, o bem e a beleza. De Platão a Leibniz, não houve um só filósofo digno do nome que não proclamasse da maneira mais enfática a unidade desses três aspectos do Ser. E aí começa o problema: muitos homens não tiveram jamais alguma experiência na qual o belo, o bem e o verdadeiro não aparecessem separados por abismos intransponíveis. Esses homens são vítimas da apeirokalia — e entre eles contam-se alguns dos mais notórios intelectuais que hoje fazem a cabeça do mundo.
Infelizmente, o número dessas vítimas parece destinado a crescer. Já em 1918, Max Weber assinalava, como um dos traços proeminentes da época que nascia, a perda de unidade dos valores ético-religiosos, estéticos e cognitivos. O bem, o belo e a verdade afastavam-se velozmente, num movimento centrífugo, e em decorrência
"os valores mais sublimes retiraram-se da vida pública, seja para o reino transcendental da vida mística, seja para a fraternidade das relações humanas diretas e pessoais... Não é por acaso que hoje somente nos círculos menores e mais íntimos, em situações humanas pessoais, é que pulsa alguma coisa que corresponda ao pneuma profético, que nos tempos antigos varria as grandes comunidades como um incêndio".1
As duas fortalezas do sublime, que Weber menciona, não demoraram a ceder: a vida mística, assediada pela maré de pseudo-esoterismo que se apropriou de sua linguagem e de seu prestígio, acabou por se recolher à marginalidade e ao silêncio para não se contaminar da tagarelice profana. A intimidade, vasculhada pela mídia, violada pela intromissão do Estado, tornada objeto de exibicionismo histérico e de bisbilhotices sádicas, desapropriada de sua linguagem pela exploração comercial e ideológica de seus símbolos, simplesmente não existe mais.

Toda a literatura do século XX reflete esse estado de coisas: primeiro a "incomunicabilidade" dos egos, depois a supressão do próprio ego: a "dissolução do personagem". Mas, desde Weber, muita água rolou. Nas proximidades do fim do milênio, o que se entende por mística é um cerebralismo de filólogos; porintimidade, o contato carnal entre desconhecidos, através de uma película de borracha. Os três valores supremos já não são apenas autônomos, mas antagônicos. O belo já não é apenas alheio ao bem: é decididamente mau; o bem é hipócrita, pseudo-sentimental e tolo; a verdade, feia, estúpida e deprimente. A estética celebra os vampiros, a morte da alma, a crueldade, o macho que mete o braço até o cotovelo no ânus de outro macho. A ética reduz-se a um discurso acusatório de cada um contra seus desafetos, aliado à mais cínica auto-indulgência. A verdade nada mais é o consenso estatístico de uma comunidade acadêmica corrompida até à medula.

Nessas condições, é um verdadeiro milagre que um indivíduo possa escapar por instantes da redoma de chumbo daapeirokalia, e outro milagre que, ao retornar ao pesadelo que ele denomina "vida real", esses instantes não lhe pareçam apenas um sonho, que não se deve mencionar em público.

Mas nada proíbe um escritor de dirigir-se, em suas obras, aos sobreviventes do naufrágio espiritual do século XX, na esperança de que existam e não sejam demasiado poucos. Acossados pelo assédio conjunto da banalidade e da brutalidade, esses podem conservar ainda uma vaga suspeita de que em seus sonhos e esperanças ocultos há uma verdade mais certa do que em tudo quanto o mundo de hoje nos impõe com o rótulo de "realidade", garantido pelo aval da comunidade acadêmica e daFood and Drug Administration. É a tais pessoas que me dirijo exclusivamente, ciente de que não se encontram com mais freqüência entre as classes letradas do que entre os pobres e os desvalidos.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Residências criativas na Casa do Sol - Vamos, Miguel? - http://www.hildahilst.com.br/site/

Em 2012 o Instituo Hilda Hilst retomou seu projeto de Residências Artísticas. O objetivo é promover o intercâmbio entre artistas e pesquisadores de diversas áreas do conhecimento e o desenvolvimento da criação artística. Não é condição sine qua non que o objeto de estudo/pesquisa seja a obra e/ou a vida de Hilda Hilst, nem que seja a literatura seu eixo central. O IHH abriga não só escritores, poetas, filósofos, dramaturgos e atores, como também artistas visuais, músicos, estilistas, físicos e matemáticos. O que é fundamental é que haja trocas de ideias, compartilhamento de conhecimentos e experiências. O IHH acredita que é justamente na confrontação com outras realidades e na experimentação de novos conceitos que a criatividade é potencializada, e possa agir não só como uma ferramenta de desenvolvimento artístico mas também, e principalmente, pessoal. O IHH abriga por enquanto apenas dois residentes por período. O pré-requisito básico da residência é que o interessado tenha lido ou conheça a obra de Hilda Hilst e que goste de cachorros, também moradores da Casa do Sol. Os períodos de residência podem variar de uma ou duas semanas a até três meses. Estadias mais longas dependem do projeto do residente e tem outras especificidades. A presença do residente no instituto normalmente é ininterrupta. Quando se trata de uma duração mais longa, ele poderá estar autorizado a deixar a residência por um período e depois retornar. Visitas somente quando notificadas com antecedência e com permissão dos administradores da casa. O residente tem um quarto individual, banheiro ao lado, wi-fi, acesso acompanhado para pesquisa e/ou consulta à biblioteca da casa que soma cerca de 5 mil livros; além de conviver com os moradores e administradores da casa, Olga Bilenky, artista plástica e grande amiga de Hilda Hilst; e Jurandy Valença, artista plástico, jornalista e diretor de projetos do IHH. Os projetos enviados devem conter trechos e/ou imagens de trabalhos realizados, currículo atualizado e, sobretudo uma proposta de trabalho, com descrição do que o artista pretende desenvolver durante a residência. Contate-nos para maiores informações e custos.

Sobre meu último contato com o Teatro

Querida professora, Bom, o curso básico de teatro marcou minha vida. Comecei-o em um momento de crise (em que repensava minha profissão de homem das leis, homem da justiça) e ajudou-me a retomar com mais amor tudo o que já fazia antes, auxiliou-me a lembrar que sempre preciso brincar e jogar para que continue fazendo arte em meu trabalho, nunca posso deixar de ser a criança feliz que sempre fui. Sempre classifiquei-me como artista, talvez por pretensão e arrogância, típicos de minha profissão jurídica, talvez por talento e sensibilidade, verdadeiras características do artista, provavelmente pelas duas razões. Mas a verdade é que sempre esforcei-me por ser um artista. Sempre que percebo estar caindo em soluções produzidas em série, lembro que I need to play and I need to play e o milagre sempre se faz, volto a ser aquela criança feliz e arteira! Sempre tive uma queda pelo teatro, provavelmente foi isso que sempre me encantou no Direito, talvez o encantamento que nos maravilha, provavelmente o encantamento que nos enfeitiça, para não perder a ironia... Piadas à parte, também amo muitíssimo o teatro, provavelmente um dia vou encará-lo de forma mais sistemática, sinto tal necessidade em meu interior, mas o Curso Básico ajudou-me a conhecer o teatro real e vivo, o teatro de nossas relações humanas, de todo nosso cotidiano, e recuperou-me para que voltasse a atuar recuperado, renovado da crise que minha vida me propunha. Poderia falar muito mais, tenho a convicção de que nem sei ao certo tudo o que recebi no curso, também sei que dei muito de mim - as semanas eram curtas para dar e receber tudo o que o curso exigia, não conseguia fazer mais nada, tudo girava em torno das aulas. Poderia falar das peças a que me dirigi, dos livros que li, dos amigos que fiz, tudo movido por aquelas semanas mágicas. Por que não continuei com tudo aquilo? Eis uma pergunta que ainda não respondi. Creio que não suportaria tanta Luz. Penso que não parei com tudo aquilo, só não estou preparado para a forma como tudo aquilo se apresentou, se mantivesse naquela esteira não seria algo verdadeiro, não seria de dentro para fora, mas de fora para dentro. A forma que busco hoje é a forma que melhor se adapta àquilo que levo em meu interior, uma enorme sede de Justiça, de lutar por aqueles que são injustiçados. Quer drama maior? A Luz posta em tal forma não ofusca meus olhos, assim sei que sou capaz... Satisfação em poder contribuir! Espero que você sempre continue sendo a professora e artista brilhante e generosa que sempre foi. Também aceito palpites felizes para minha caminhada! João Augusto!!!

Sobre Caminhança

Bom dia, João Augusto, Sou obcecada por terminar tudo o que começo. Por isso, comecei a ler seus textos e terminei, mesmo que isso tenha me custado grande parte da noite de sono. Aliás, não só por isso, mas também porque a leitura estava bastante agradável. Resolvi escrever minhas impressões para que elas não se dispersassem. Essa leitura apenas ratificou todos os meus pensamentos a seu respeito. Você é uma pessoa tão íntegra, humilde, honesta, culta... e principalmente, você é tão honesto consigo mesmo. Você nem imagina o quanto eu o admiro. Aliás, acho que essa é a fonte de tantas crises com o Direito e com o concurso para a magistratura: sua honestidade. Você se recusa a se render às fórmulas prontas... a ser um “concurseiro padrão”. Por outro lado, dessa forma você prolonga os anos de reprovações e, consequentemente, o tempo de estudo e as crises (que você acha que são relacionadas à sua vocação, mas, no meu modo de ver, não são). Para mim, sua vocação é muito nítida. Acho que você seria um ótimo advogado, você é um servidor exemplar, pelo que tenho acompanhado, mas você nasceu para a magistratura. É evidente também que você tem alma de artista e que seria um escritor fabuloso. Porém, você não precisa optar entre ser juiz ou ser artista. Você tem duas vocações conciliáveis. Especificamente, em relação ao concurso, você está em um círculo vicioso, na minha opinião: se recusa a ser um “concurseiro padrão”, ainda que, dessa forma, demore mais para ser aprovado, o que, de fato, vem ocorrendo; em razão dessa demora e das sucessivas reprovações, você questiona sua vocação e entra em crise, o que faz com que, momentaneamente, você se distancie de seu objetivo (o concurso, que, por algum tempo, deixa até de ser o objetivo); durante a crise, sua veia artística se aflora e você se aproxima da literatura ou do teatro; mas, por fim, sua outra vocação (a magistratura) te chama à razão e você retoma os estudos com afinco, mas, ainda assim, sem se render às formulas prontas...e assim sucessivamente. Apesar de concordar com você, apesar de achar medíocre esse estudo “decoreba” que os examinadores normalmente esperam dos candidatos, do jeito que as coisas caminham você só faz com que suas angústias se prolonguem. Acredite: você tem vocação para ser juiz. Você é uma grande fonte de inspiração para mim. É uma pessoa coerente e com um imenso senso de justiça. Não duvide disso em nenhum momento. As reprovações não devem gerar tal questionamento, até mesmo porque foi você quem escolheu o caminho mais longo conscientemente. E se não o fez conscientemente, tome agora consciência disso. Você é uma pessoa tão inteligente e erudita. Merece muito ser aprovado. Mas, se você quiser passar logo, vai ter de sacrificar-se por um estudo medíocre. É triste, mas é a realidade...são essas as regras do jogo. Para minimizar essas crises e as dúvidas quanto à sua própria vocação, recomendo que você seja menos honesto consigo mesmo, apenas por algum tempo. Assim, você será provavelmente aprovado mais rapidamente, e essa angústia terminará. Duvido que você concorde comigo, pois você é uma pessoa fiel aos seus ideais. Nada mudará. Você se recusará a ser uma pessoa medíocre, que faz leituras medíocres...então, só me resta pedir a você que não duvide mais da sua vocação, encare com naturalidade as batalhas perdidas, e espere pacientemente o seu momento. Vou continuar refletindo sobre o que li. A propósito, suas poesias são lindas e eu adorei os textos sobre os planos para a aposentadoria. Você é genial. Enfim... quero te ver feliz. Magistrada amiga, recém-empossada.

Fatos e mais fatos

Finalmente, consegui ficar menos de dez horas no trabalho, e recebi um presente, como aquela aspiração após mais de minuto debaixo d’água. Não posso negar que andei de soslaio com a Adélia hoje cedo. Eta mulherzinha atrevida! Andava distraído, cá com as caraminholas de sempre. De repente, uma placa me intriga, “Mina do Machado”, nossa, que isso aqui no meio da cidade? Um pouco à frente uma senhora distinta volta com dois galões. Fico curioso: - Moça, essa água é boa? Pode beber? Ela, solene e espantada com minha ignorância: - Claro. Vem gente até de outras cidades pegar água aí! – Ah, brigado. Adiante está um bosque, no meio dele a festejada mina d’água. Um filme antigo passa em minha cabeça, rodado na minha infância, quando ainda buscávamos água em bicas lá no interior de São Paulo. Há muitos anos isso acabou, a última vez que tinha visto isso, os ladrões ainda tinham cara de pau – como dizia o Poeta. Minas Gerais ainda é assim, o fato poético está em toda esquina, basta estar disposto a ele. E eis que acordo à poesia, a antiga Musa retorna, e uma sucessão de fatos mostram que todos os fatos poéticos sempre estiveram ali, rindo de minha vida patética. Noto um homem sentado no chão defronte à sua casa: - Ôpa! - Ôpa! Um outro está observando o chuvisqueiro: - Mudou o tempo, hein! - É, vem mais lá do leste. Outros dois senhores conversam despreocupados bem no meio da rua. As plantas desajeitadas de meus tênis ferem o trabalho de toda a tarde de um pobre pedreiro, ainda estava fresco o cimento: - Vixe! Notando minha compenetração de quem tem licença poética: - Não tem problema! Vejo um pé de romãs no jardim de uma casinha (essa poetisa...). Poderia continuar a descrever todas as imaginações e desvarios que se seguiram, mas basta, a vida é assim mesmo, só é preciso estar aberto para que a Luz volte e ilumine-nos com clareza solar, ainda que debaixo de chuva. O bom senso-loucura das letras jurídicas me chama de novo, enfim, nem só de rosas (e romãs) é feita a vida... Esses os fatos de hoje...

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Esse homem é livre?

"[...] O mundo proclamou a liberdade, sobretudo ultimamente., e eis o que vemos dessa liberdade deles: só escravidão e suicídio! Porque o mundo diz: "Tens necessidades e por isso satisfaze-as, porque tens os mesmos direitos que os homens mais ilustres e ricos. Não temas satisfazê-las e até procuras multiplicá-las" - eis a atual doutrina do mundo. É nisso que veem a liberdade. E o que resulta desse direito à multiplicação das necessidades? Para os ricos o isolamento e o suicídio espiritual, para os pobres, a inveja e o assassinato, porquanto esses foram concedidos mas ainda não se indicaram os meios de satisfazer as necessidades. Asseguram que, quanto mais o tempo passar, mais o mundo irá unir-se, irá constituir-se num convício fraterno porque isso reduz as distâncias, transmite as idéias pelo ar. Ai, não credes nessa união dos homens. Compreendendo a liberdade como a multiplicação e o rápido saciamento das necessidades, deformam sua natureza porque geram dentro de si muitos desejos absurdos e tolos, os hábitos e as invenções mais disparatadas. Vivem apenas para invejar uns aos outros, para a luxúria, a soberba. Dar jantares, viajar, possuir carruagens, posição social e criados escravos eles já consideram uma necessidade, e para saciá-la sacrificam até a vida, a honra, o amor ao homem, e até se matam se não conseguem saciá-la. Vemos a mesma coisa naqueles que não são ricos, e entre os pobre o não saciamento das necessidades e a inveja ainda são abafados pela bebedeira. Em breve, em vez do vinho haverão de embebedar-se com sangue, para isto estão sendo conduzidos. Eu vos pergunto: esse homem é livre? [...] É por isso que no mundo vem-se extinguindo cada vez mais a ideia de servir à humanidade, a ideia da fraternidade e da integridade dos homens, pois, em verdade, essa ideia já está sendo recebida até com zombaria; porque, como esse escravos se afastaria de seus hábitos, para onde iria se está tão acostumado a saciar as infinitas necessidades que ele mesmo inventou? Ele está isolado e pouco se importa com o todo. Eles chegaram a um ponto em que acumularam objetos demais, porém ficaram com alegria de menos." (Fiódor Dostoiévski em "Os irmãos Karamásov")

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Pru quê (Pompílio Diniz)




Pru quê tu chora, pru quê?
Pru quê teu peito saluça

e o coração se adebruça
nos abismo do sofrê?
Tu pode me arrespondê?
Pru quê tua arma suzinha
pelas estrada caminha
sem aligria mais tê?

Pru quê teus óio num vê
e o coração não escuita
no sacrificio da luita
este cunvite a vivê?
Eu te prugunto, pru quê?
pru quê teus pé já sangrando
cuntinua caminhando
pela estrada do sofrê?

Pru quê tua boca só fala
das coisa triste da vida
que muita veiz esquecida
dentro do peito se cala?
quando o amô prefume exala
pru quê tu mata a simente
dessa aligria inucente
que no seu sonho se embala?

Pru quê que teu coração
é cumo um baú trancado
e dento dele guardado
só desespero e afrição
Pru quê num faiz meu irmão
uma limpeza la dentro
varrendo cô pensamento
os ispim da mardição?

Pru quê tu véve agarrado
nas asa desse caixão
que carrega a assumbração
desse difunto, o passado?
Se tu já véve cansado,
interra todo o trumento
na cova do isquicimento
pra nunca mais sê lembrado

Despois disso, vem mais eu...
vem ouví pelas estrada
o canto da passarada
que em seu peito imudeceu.
escuita a vóz das cascata,
chêra o prefume das mata,
óia os campo, tudo é teu...

Aprende côs passarim
que só tem vóz pra canta
com o sor que nasce cedim
e vem teu frio esquentá
Óia as estrela, o luar
mas antes de tu querê
isso tudo arrecebê
aprende primeiro...
a dá.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Despertador

Olhando meu interior deparei-me com um novo enigma: não sei mais onde está a beleza – aquele amor pela arte, o encantamento, enfim, percebo que mudei, sem dar-me conta, ou melhor, a partir de um estado parcialmente consciente, preenchendo os espaços com muitas obrigações corriqueiras e deixando para depois, depois...até que me tornei inconscientemente indiferente ao maravilhamento. Aí está! Eis o fatídico estado do sujeito... Hehehe... Mas hoje decidi mudar, tomar consciência já é um excelente começo. Mas fui adiante. Ouvi um poeta falar de amor. Li uns versos. Escrevi estas palavras. A vida segue! E retomará muitas coisas boas, eis um bom ajuste de rumo!

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Filosofia com Olavo de Carvalho


Pouca gente, pouca mesmo, sabe hoje o que é filosofia. Confundem-na com a arte de argumentar, com um apanhado de aforismos para orientação geral na vida, com regras para o bem pensar, com uma ideia geral sobre a vida, com a lógica, com a análise de textos ou da linguagem e outras construções desse tipo.
Foi com filósofo Olavo de Carvalho que ouvi, pela primeira vez, uma definição da filosofia ao mesmo tempo compreensível, completa e convincente. Bom, geralmente eu acabo convencido de tudo o que o Olavo fala, é verdade... Mas qualquer sujeito minimamente inteligente logo entrevê na conceituação do Olavo que aquilo é verdadeiro, não importando, neste momento, se engloba toda a filosofia ou só um pedacinho dela.
Faltariam os demais dois atributos: a possibilidade de ser compreendida e a completude.
Segundo o Professor Olavo, a filosofia é a unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versaEu acho que ouvi esta definição há uns seis anos atrás, e desde então venho tentando compreendê-la e assimilar.
Uma coisa é entender a frase, outra é entender o sentido profundo que encerra, é dizer, a experiência cognitiva mas também existencial que corresponde ao enunciado. Daquele entendimento a este último delonga uma fase bastante lenta, na qual temos que presenciar o ato de filosofar, a luta de um filósofo para coerenciar cada vez mais seus conhecimentos crescentes na unidade de sua consciência e para que sua consciência seja unificada pela unidade sobrejacente àqueles conhecimentos.
Ou seja, o filósofo se caracteriza por ser aquele que busca estas unidades complementares, que faz desta ação unificadora do que sabe e do que é a trama de sua existência.
O conceito de filosofia do Olavo, portanto, pode ser compreendido rapidamente, em um sentido mais raso, onde se suspeita do oceano que há por baixo, e muito lentamente, quando navegamos nos mares desbravados por ele.
A definição também é completa porque, quer se afirme ou se negue esta ou aquela filosofia, quer se aceite no time dos filósofos este ou aquele, quer se pretenda olhar o viés de obra escrita, oral, histórica, enfim, quer se faça qualquer categorização de filosofias e filósofos, todas encerrarão uma busca pela unidade do conhecimento na pessoa do filósofo, e de ser um filósofo que espelhe a unidade de seus conhecimentos.
Talvez isto tudo que escrevi seja um pouco hermético ou pareça pedante ou até mesmo vazio para quem não acompanha o trabalho e a vida do Professor Olavo. Então, vou deixar que ele mesmo dê mais umas explicações do que é a filosofia, contrastando com o que se faz por aí com este nome.
Retirei alguns poucos trechos que consegui coletar agora mesmo, rapidamente, e acho que já são um início instrutivo.
"Das experiências fundantes nascem as intuições centrais que dirigem a montagem das 'doutrinas' filosóficas. Sem o retorno às experiências, as doutrinas pairam no ar como puras construções mentais, ou 'obras', no sentido literário do termo, prestando-se assim a uma multiplicidade de interpretações heterogêneas que acabam por dissolver o sentido originário das intuições centrais. Pior ainda: a 'história da filosofia', contada assim, não pode ser senão uma sucessão de 'pensamentos' que se geram uns aos outros no céu das idéias puras, sem raízes no mundo da experiência humana. Essa 'história' é uma criação ficcional que, para justificar-se, tende ela própria a transmutar-se em nova 'doutrina' filosófica". (Dois métodos in  'A filosofia e seu inverso'. Campinas: Vide Editorial, 2012).
Para entender uma filosofia, não basta captar o sentido de um texto. É preciso mergulhar, por meio do texto, se for o caso, até a experiência que fundamenta e deu origem, que fundou a sua expressão verbal, a qual, de sua parte, pode ser melhor ou pior. Quando se narra uma história da filosofia com base nos textos ou ideias, nós unimos abstrações através de uma outra abstração, perdendo a experiência cognitiva concreta de todos os filósofos, no mesmo ato em que erigimos este 'desenvolvimento' abstrato a ideia central, bem como autônoma, do indivíduo, uma filosofia sem filósofos.
Como ensinou o Olavo em certa ocasião, é preciso realizar o processo de extrusão da experiência cognitiva que esconde-se na 'obra' do filósofo.
Nossa vida acadêmica coloca toda a ênfase nos textos, na argumentação ou nas construções teóricas, perdendo aquela experiência fundante que não apenas dá corpo, mas também sentido e verdadeira compreensão ao que se entende por filosofia.
Quem explica é o Professor:
"Como bem enfatiza o próprio Guéroult, a 'ordem das razões' é sempre um processo de validação. Sim, mas a validação de quê? De certas intuições de base que antecedem e orientam o próprio processo de validação. Se é este o processo e não as intuições de base o que constitui o essencial de filosofia, a filosofia torna-se uma atividade puramente discursiva sem nenhum aporte intuitivo, sem nenhuma percepção da realidade, sem nenhuma experiência vivida. Compreende-se que o interesse disso acabe sendo puramente acadêmico, para não dizer filológico" (idem).
A atenção quase exclusiva que se dá à construção linguística, sua unidade intrínseca enquanto texto, sua interligações, suas referências conceituais, enfim, a esta parte sistematizada na linguagem, nos deixa cegos para a realidade cognitiva (e também moral, vale dizer, embora não possamos explicar este viés aqui) cuja expressão é uma comunicação que deve permitir o encontro entre as consciências, e que contudo serve como barreira entre os indivíduos, e mais, entre o indivíduo e si mesmo.
Nos prendemos a construções teóricas, geralmente absolutizando as ideias de uma obra, supondo que este arranjo abstrato, este sistema embutido no texto, torne-se a chave para todos os problemas da vida, fugindo da responsabilidade de decidir e do esforço de, dia após dia, procurar novamente a unidade do conhecimento que sustenta a consciência e a unificar a consciência pelos conhecimentos obtidos.
De forma mais direta:
"No estudo da filosofia, os textos são apenas os documentos, quase sempre parciais e imperfeitos, pelos quais chegamos ao conteúdo mesmo da filosofia: as intuições fundamentais que justificam e embasam um esforço de validação, uma 'ordem das razões'. O conteúdo de uma filosofia não se constitui de proposições, de sentenças, mas dos atos cognitivos reais, vividos, que às vezes elas expressam bem, às vezes expressam mal. Se não fosse assim, não haveria diferença entre estudar uma obra filosófica e uma criação literária" (idem).
A filosofia, desse modo, é a busca pela unidade entre conhecimento e consciência, sendo seu conteúdo as intuições fundamentais, cuja expressão cria as obras filosóficas. Esta busca, enquanto atividade humana, pode ser classificada como uma técnica, a qual, para a grande maioria, só pode ser aprendida diante de um exemplo vivo de filósofo, de uma filosofia in fieri:
"A filosofia não é uma ciência, é uma técnica. Se uma ciência busca recortar um conjunto homogêneo de fenômenos e reduzi-lo a uma clave explicativa comum que possa ser confirmada ou impugnada por todos os pesquisadores interessados, o resultado dela é necessariamente uma série de sentenças articuladas entre si por nexos lógicos e referida ao mundo da experiência por um sistema de procedimentos de verificação. Uma técnica, ao contrário, reúne várias correntes causais autônomas e heterogêneas, irredutíveis a princípios comuns e unificadas tão somente pelo resultado a obter. Nenhuma técnica, por mais simples que seja, se reduz à aplicação de um princípio científico comum. Nenhuma técnica, a rigor, se deixa explicar totalmente pela ciência. A técnica tem sua racionalidade própria, interseccionada com a da ciência mas não redutível a ela" ('Introdução ao método filosófico' in www.olavodecarvalho.org).
Esta técnica é composta da integração de várias atividades (anamnese, meditação, exame dialético, pesquisa histórico-filológica, hermenêutica, exame de consciência, técnica expressiva), porém, só pode ser aprendida na observação de um filósofo que a coloca em prática.
Tal afirmação se retira do passado, já que, segundo o professor "só houve grande ensino da filosofia onde um filósofo vivo e presente, no auge dos seus poderes intelectuais e pedagógicos, transmitia aos alunos, na convivência pessoa diuturna, o exemplo da sua busca e do seu know how" (Miséria sem grandeza: a filosofia universitária no Brasil in 'A filosofia e seu inverso'. Campinas: Vide Editorial, 2012).
Em outras palavras: "quem não viu um filósofo de verdade bracejando dia a dia com as dificuldades da sua própria filosofia não saberá jamais o que é filosofar, pouco importando a imensidão da sua cultura filosófica. Que é, afinal, o primeiro grande clássico da filosofia ocidental senão o relato do convívio fecundante entre um mestre e seu discípulo genial?" (idem).
A filosofia em estado nascente, o exemplo vivo da técnica filosófica, é isto que podemos aprender (e muito mais) com Olavo de Carvalho, com ele, e talvez com mais ninguém neste nosso mundo de hoje, tão avesso ao amor, à sabedoria e à verdade, que acaba criando seu inverso.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

O Marceneiro e o Poeta (Yuri Vieira)

Antônio estava debruçado sobre um banco de madeira rústico, que ele, com a expressão atenta de um cirurgião, colocara de ponta-cabeça para melhor avaliar o estrago causado pelos cupins. Com um formão, ia seguindo e alargando as trilhas abertas pelos insetos, como quem ara o solo antes da semeadura. O banco era pesado, comprido — comportaria umas cinco ou seis pessoas sentadas lado a lado —, e tinha orifícios de cupim por toda sua extensão. O Sol das nove horas da manhã, um Sol de outono, já iluminava praticamente todo o átrio da casa, fazendo luzir as lascas de madeira que se desprendiam da parte inferior do assento, enquanto eu, sem esconder minha admiração por aquela sem-cerimônia com um objeto tão estimado por sua proprietária, ia observando o desenrolar daquela tarefa milenar. Eu ainda tinha em mente a missão que recebera, mas o ar misterioso e reticente daquele marceneiro, suas maneiras graves e seu olhar duro, despertavam minha curiosidade para além da tarefa que me fora incumbida. Ao contrário da escritora Hilda Hilst, eu não sentia o menor receio pela presença daquele desconhecido de meia-idade, um negro de baixa estatura, roupas surradas e ar circunspecto. No entanto, ela era a proprietária da casa e tinha todo o direito de saber quem era seu novo hóspede. Até entrar naquele pátio árabe, eu sequer sabia que se tratava de um artesão. Sentia, sim, um interesse crescente por sua história, afinal, dificilmente davam às praias da Casa do Sol pessoas desprovidas de experiências, valor e espírito. Por quais meios, por quais acasos e destinos ele teria ido parar em nosso refúgio de escritores?
“Por acaso você tá tentando competir com os cupins para ver quem é mais eficiente na destruição do banco?”
Ele sorriu pela primeira vez desde que chegara ali na tarde anterior: “Pois é… Isso aqui é como combater um câncer… A gente precisa retirar o que tá podre antes de iniciar o tratamento.”
“Humm… Você então trabalha mesmo como marceneiro, né.”
“Bom, a marcenaria é meu salva-vidas…”
Eu me sentei no chão, à beirada da varanda, pensando no quanto invejava os detentores de semelhantes habilidades manuais. Eu mal era capaz de desmontar e montar uma bicicleta, quanto mais de restaurar móveis de madeira. Minha presença não parecia incomodá-lo nem um pouco. Antônio, mergulhado em silenciosa concentração, prosseguia com seu labor. Pigarreei, embaraçado com minha tarefa.
“Você sabe quando ele vai voltar, Antônio?”
“Ele me disse que voltava em uma semana.”
“E você va–”
“Ela tá com medo de mim, não tá?”, me interrompeu, sem deixar de mirar o banco.
Eu sorri: “Na verdade… sim. Quer dizer, não é bem meeedo…”
“Mas ela pediu pra você vir conversar comigo, me sondar, né?”
“Exatamente”, respondi, satisfeito por ver que ele não era nenhum idiota e que não era dado a rodeios. “Mas você não precisa ficar chateado com ela.”
“Não, claro que não, eu entendo.”
“Ela já passou por uns maus bocados aqui, Antônio. Muita gente doida costuma dar as caras nesta chácara e, como ela não tem marido nem filhos, às vezes se sente desprotegida. É uma mulher de setenta anos, saca?”
Ele me encarou com um olhar mais leve, como se o gelo, graças à nossa franqueza mútua, tivesse sido quebrado.
“Yuri — seu nome é Yuri, né? — me passa por favor essa caixa de ferramentas aí do seu lado.”
Estendi-lhe a caixa, que parecia uma caixa de engraxate, e resolvi ser tão direto quanto ele.
“E então, Antônio?”, comecei em tom amistoso. “Além de ser um cupim gigante, há sobre você algum outro dado ameaçador que poderia fazer a Hilda perder o sono?”
Ele parou com seu trabalho e me olhou direto nos olhos, sustentando uma expressão simultaneamente irônica e inocente. As ferramentas luziam dentro da caixa, que ele acabara de abrir.
“Humm. Depende… Você acha que ela ia ficar assustada se soubesse que eu sou… um fugitivo da justiça?”
Meu interesse viu-se elevado ao cubo.
“E você é?”
Ele riu, retomando o serviço: “Sou sim. Faz dois anos que fugi da prisão.”
Uma eletricidade percorreu meu corpo só de imaginar a reação da Hilda ao receber uma notícia como aquela. Uma eletricidade extática. Muito difícil evitar pequenos prazeres sádicos, ainda mais diante de uma mulher com discretas necessidades masoquistas. A Hilda certamente ficaria aterrada com a informação, mas a receberia rindo nervosamente, curtindo mais essa ironia do destino. “Meu Deus, Yuri! Essa casa só atrai gente estranha!!”, diria, degustando seu mais novo motivo para entrar em pânico.

hilda

Hilda Hilst, na Casa do Sol, em Outubro de 1998. Foto de Yuri Vieira.


“Peraí, Antônio, não me diga que você já matou alguém?”
“Quando a gente fala em prisão, todo mundo já pensa logo em homicídio. Mas não, nunca matei ninguém não.”
“E você foi preso por quê?”
“Drogas.”
“Ah, você traficava.”
“Não exatamente. Eu semprei fumei maconha. Maconheiro mesmo. E um dia eu saí com um sobrinho meu, de carro. Uma blitz parou a gente e ele tava com uma trouxinha no bolso. Eu não tinha nada a ver com aquilo, mas achei que minha irmã fosse me culpar caso ele fosse preso. Então eu disse ao policial que eu é que tinha dado o bagulho pra ele. Foi uma burrice dupla: primeiro porque ele era menor de idade e não ia ter maiores problemas; segundo porque eu não sabia que, na lei, presentear alguém com drogas é considerado tráfico. Artigo 12.”
“Caramba. Onde foi isso?”
“Em Goiânia.”
“Ah, essa é boa! Então você é de Goiânia? Morei alguns anos lá.”
“Eu cresci no Setor Macambira. Fiquei preso no CEPAIGO.”
Antônio agora retirava uma das pernas do banco, inutilizada pela ação dos cupins.
“Nossa! O Carandiru do cerrado… Você já tinha passado por algo assim antes?”
“Não, nunca. Nunca fui do crime. Aprendi marcenaria primeiro com meu pai e depois numa escola técnica. Sempre trabalhei com isso, desde a adolescência. Meu pai achava ridídulo dizerem que criança não deve trabalhar. Ele tava certo: sem um ofício a pessoa tá é perdida… Também participei de um grupo de teatro na associação de moradores lá do bairro. Cheguei a dirigir duas peças… Amadoras, né.”
“Você obviamente deve ter ficado muito puto com esse negócio de ser preso.”
“Puto?! Eu fiquei foi apavorado, em pânico!!”
“E como você se virou lá no CEPAIGO?”
Antônio então se sentou ao meu lado e começou a medir, com uma trena, a perna defeituosa que havia extraído do banco.
“Olha, pra falar a verdade, até que eu tive sorte. Quando eu cheguei lá, tava morrendo de medo, super ansioso. Aqueles portões altos abrindo pra gente entrar… Que sensação horrível!… E eu ia ficar de três a quinze anos lá dentro. É uma sensação de que a vida acabou, de que você está sendo jogado numa lata de lixo de gente, de que a sociedade agora tá cagando e andando pra você. O que eu não sabia é que tava correndo um boato de que um tal Cartucheirinha tinha sido preso e ia chegar naquele dia também. Todo mundo tinha medo dele, tanto os carcereiros quanto os outros presos. Um cara perigoso de verdade. Aí, chega a viatura e… quem sai de dentro dela? Eu. Todo mundo pensou que eu é que era o Cartucheirinha.” Antônio deu uma risada acanhada: “Juro! Me olhavam com um respeito… E eu calado, sem saber o que se passava, com medo deles. Achavam que era brabeza minha.”
“Meu Deus! Que sorte, hem? E quando perceberam o engano?”
“Ah, nem me lembro mais. Só sei que, quando descobriram, eu já tava fabricando bancos, mesas, estantes, prateleiras pra todo mundo. Achavam que eu era um Bíblia, entende? Um crente. Todos me tratavam bem e me pagavam pra fazer coisas pra cela deles. A marcenaria é meu colete salva-vidas… Mas lá era um lugar cheio de caras estranhos. Por exemplo. Tinha um, o Divino Caveirinha, que cismou que ia pular o muro da penitenciária usando esses balões de festa com hélio. Vivia tentando contrabandear cilindros de hélio lá pra dentro, coitado. Como se alguém fosse fazer esse jumbo pra ele.”
“Jumbo?”
“É. Jumbo é uma encomenda que o presidiário faz. Ih, é tanta palavra diferente que a gente usa.”
“Por exemplo?”
“Lá na prisão, taba era maconha. Pino ou pedra era o crack… Hum…Tranca-dura era o xadrez. Ganso era o alcagüete, o dedo-duro… Ah, é coisa demais.”
“E como foi que você fugiu da prisão? Nunca pensei que pudesse ser fácil assim.”
“Ah, não foi não. E eu não pretendia fugir. E também nem foi de lá que fugi.”
“Ué, como assim?”
“Eu e meu advogado conseguimos provar que eu era usuário, e não um traficante. Levou quase um ano pra conseguir isso. Eu mesmo já havia me internado em duas clínicas de reabilitação antes de ser preso: uma espírita e outra evangélica. Isso ajudou a convencer o juiz.”
“Clínica espírita? Evangélica? Nossa.”
“Foi por causa da minha mulher. Ela tinha ameaçado se separar caso eu não parasse com a maconha. Aí eu me internei nessas clínicas.”
“Em Goiânia?”
“A evangélica era em Anápolis, lá perto, mas primeiro fiquei na espírita, em Goiânia. Era muito legal lá, um lugar bonito, calmo, com um jardim bem grande, muitas árvores. Era uma chácara, na verdade. Lá eu também ficava trabalhando com madeira, conversando com as pessoas, pensando na vida. Os psicólogos de lá eram gente muito boa. É claro que tinha muito nego maluco, sabe, né, usuários. E a verdade é que, depois de passar pelas três clínicas de reabilitação, percebi que elas são os lugares onde mais facilmente a gente encontra drogas.”
Eu ri: “Sério?!”
“Claro, aquele bando de nego na fissura, em abstinência, doido pra cair na tentação. Aí sempre tem um interno mais perverso que aproveita, né. O trem é feio mesmo, Yuri.”
“Puts. E o pessoal da clínica sabendo de tudo, fazendo vista grossa.”
“Não, não, são gente honesta, disposta a ajudar mesmo. Quer dizer, com exceção da clínica alopática, né, pra onde eu fui depois de preso. Lá, nem precisa ter traficante: eles mesmos se encarregam de deixar você dopado o dia inteiro. Acho que é pra você não ter condição de pensar em usar as outras drogas, as ilegais. E se reclamar, leva um sossega leão.”
“Sossega leão?”
“É, a gente chamava assim. É uma injeção de Amplictil misturada com mais alguma coisa. Você fica lesado o dia todo. Isso se você conseguir ficar acordado, claro.”
“Credo. Então as clínicas religiosas eram melhores.”
“A espírita era. A evangélica ainda não sei dizer.”
“Como assim?”
“Ah, na espírita era uma vida super tranqüila, sabe? E era mista, mulheres e homens juntos. Não na hora de dormir, né. Mas era mais fácil de levar. E não era só pra drogadictos, tinha muita gente lá tratando de depressão, esquizofrenia, essas coisas. Muitas visitas. A única coisa agitada lá era o Vasco, que de vez em quando saía correndo aos berros, ‘O cigano! o cigano!’, e ia se esconder em algum lugar. O cara era bisonho. Ele tinha assassinado um cigano e estava sempre vendo o espírito dele em algum lugar…”, e sorriu, sem tirar o olho da trena. “Mas a clínica evangélica era beeem diferente, disciplina militar. Castigos militares também. Uma gente rígida. Casa de Recuperação Príncipe da Paz. Só homem lá dentro — se bem que a presidente era uma mulher, dona Ângela. Por um lado foi bom, não tinha remédio nenhum e nunca li tanto, principalmente a Bíblia. Quem decorasse alguns trechos ganhava repeteco na comida. Conhece o ‘telefone de Deus’?”
Eu, sorrindo: “Não”.
“Jeremias trinta e três-três: ‘Chama a mim, e responder-te-ei, e anunciar-te-ei coisas grandes e firmes que não sabes’”, e Antônio retribuiu o sorriso. “Aprendi a falar direito, entende?, a me fazer respeitar. Você não precisa de terno e gravata pra ser respeitado. Falar bem é muito mais eficaz. E ler a Bíblia ajuda muito nisso. Palavras difíceis, que impressionam. Nenhum jornal tem texto escrito do jeito que a Bíblia tem. Bonito mesmo. Já leu?”
“Algumas coisas. Não tudo.”
“Vale a pena…”, disse, enquanto retirava restos do pé do banco ainda presos no assento. “Mas, rapaz, era tanta humilhação nessa clínica… Acordavam a gente pra cavar buraco no meio da noite. De madrugada, quando a gente levantava, só banho gelado. Se a gente fizesse algo errado, não almoçava. Se pegassem a gente batendo punheta, vixe, mais banho gelado e buraco pra cavar à noite, lavar a louça de todo mundo e por aí vai. Difícil, viu. Mas lá eu podia trabalhar com madeira. A gente também cultivava a horta e criava escargô.”
“Escargô?!”
“É, aquela lesma francesa.” E rimos. “Eu cheguei a me tornar obreiro, Yuri. Ajudei a celebrar vários cultos. Quando saí de lá, já estava a ponto de virar pastor.”
“E por que não virou pastor? Não encontrou uma cabine telefônica?”
“Uma história estranha”, começou, ignorando a pilhéria. “Na igreja os caras queriam que eu tomasse anfetaminas, rebite, sabe? Aqueles pastores gritando lá na frente, no palco, as frases encavaladas umas nas outras, pulando aos berros? Tudo anfetamina, o mesmo remédio que caminhoneiro toma.”
“Tá brincando!!”
“Sério, Yuri, eles acham que não tão errados porque compraram droga legalizada na farmácia, porque é pro bem, acham que ajuda a ‘entrar no Espírito’. Um pastor até me disse que aquilo era muito melhor, porque na outra igreja de onde ele tinha vindo rolava um tráfico interno de cocaína só pros pastores. Mas de quê ia me adiantar trocar a maconha por bola ou por cocaína? Muito pior.”
Fiquei em silêncio por um minuto observando-o cortar um pedaço de madeira que ele desembrulhara de um papel pardo. Iria agora preparar uma nova perna para o banco.
“Tá, Antônio, deixa ver se entendi: você se internou em duas clínicas de recuperação de drogados, foi preso, se transferiu para uma outra alopática. Ok. E como você fugiu?”
“Ah, um dia lá, eu simplesmente fingi que estava tomando o Anatensol, que sempre davam pra gente — na verdade, escondi o comprimido debaixo da língua — e, à tarde, quando todos estavam bodados na cama, pulei o muro.” E indignado, me encarou: “Porra, eles estavam dando choques na gente! Cheguei a passar vários dias babando, uma coisa escrota, viu.”
“E como você conheceu o Bruno?”
Bruno“Foi na Praça da República, em São Paulo, pra onde fui depois de fugir. É uma história comprida, vou resumir pra você… Logo que cheguei na cidade, acabei morando um tempo na favela do viaduto Alcântara Machado. Não deu muito certo, fui me meter em encrenca por causa de mulher e acabei na rua. Você sabe, mulher é foda”, e deu um sorriso amarelo. “Aí eu ficava lá na praça da República, vendendo por um Real banquinhos feitos com caixotes de feira. Ia à feira, catava as sobras de madeira e ficava lá, trabalhando. Era perigoso dormir na rua — então fiz amizade com um negão de dois metros, que vendia bebida pros mendigos e vagabundos. Eu tinha feito umas divisórias de madeira pro carrinho de supermercado que ele tinha, sabe?, pra colocar as garrafas de pinga, vodka, campari, evitando que tombassem quando ele empurrasse o carrinho por aí. E então a gente se protegia, os dois negão no centro de São Paulo, ele, o grandão e eu, o baixinho. Enquanto um dormia, o outro ficava vigiando, porque tem muita violência da polícia, dos playboys, dos carecas, dos outros mendigos. E todo mundo querendo dinheiro pra ficar doidão, que era a única distração que a gente tinha. Quando a gente conseguia bagulho, alguém tinha de ficar cuidando a loira pros outros fumarem em paz.”
“Cuidando da loira? Que loira?”
“Cuidando a loira. Loira é a polícia. E alibã é o soldado da polícia.”
“Tá, saquei.”
“Às vezes a gente comprava Artani na farmácia, um remédio pra epilepsia que deixa a gente noiado e enxergando tudo cor de rosa… A rua é foda, Yuri. Muita traição, muita briga de faca. Naife, a gente dizia.”
“Cara, que loucura…”
“É, nunca imaginei que ia ficar numa situação dessas. Tudo acontece dum jeito muito esquisito: num dia, você vai parar num aperto que parece ser o fim da linha. E fica naquilo algum tempo, acreditando que é mesmo o fim da linha. De repente, do nada, tudo muda. Outro dia, eu tava na prisão, outro, na rua e hoje tô na casa da poeta Hilda Hilst, de quem eu nunca tinha ouvido falar e que o Bruno me explicou quem é.”
Eu ri, me identificando com o comentário.
Ele: “Então, te respondendo: um dia eu tô lá na Praça, fabricando e vendendo banquinhos, e aparece esse cara magro, grisalho, todo fino, de terno e gravata, e me pergunta se eu sabia fazer mesa, cadeiras. Eu disse que só precisava de material e de algumas ferramentas melhores. Ele perguntou onde eu morava e eu disse que na rua. Quis saber por quê e eu achei ele intrometido demais, disse pra ele que a vida tinha me largado ali. Aí ele sorriu, disse que era poeta, que tinha voltado pro Brasil fazia pouco tempo e que não sabia onde comprar móveis bons. ‘Poeta não tem dinheiro pra gastar’, falei pra ele. Ele disse que trabalhava na revistaRepública, que poderia me pagar, sim, e perguntou se eu não queria ir olhar o apartamento, pra ver as medidas da sala. Perguntei o nome dele, pra saber se era alguém conhecido. ‘Bruno Tolentino’, respondeu. Bom, eu nunca tinha ouvido falar dele. Então disse pra ele que de poesia só conhecia bem a Cecília Meireles, que eu li muito com o pessoal do teatro lá do meu bairro em Goiânia. Ele arregalou os olhos: ‘Eu conheci pessoalmente a dona Cecília. Você sabe declamar algum poema dela?’ Sei, e lembrei desse aqui: ‘E aqui estou, cantando./ Um poeta é sempre irmão do vento e da água:/ deixa seu ritmo por onde passa./ Venho de longe e vou para longe:/ mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho/ e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram./ Também procurei no céu a indicação de uma trajetória, / mas houve sempre muitas nuvens./ E suicidaram-se os operários de Babel./ Pois aqui estou, cantando./ Se eu nem sei onde estou,/ como posso esperar que algum ouvido me escute?/ Ah! Se eu nem sei quem sou,/ como posso esperar que venha alguém gostar de mim?’ Eu declamei olhando pro chão, pra conseguir me lembrar do poema todo, que era o único que sabia. E também de vergonha. Quando olhei pra ele, vi que estava com os olhos marejados. Fiquei sem graça com aquilo, a gente perde a sensibilidade morando na rua. Mas percebi que era sincero mesmo, Yuri, que ele tinha alguma fraqueza grande — e algum tipo de grandeza também, sabe? Ele era inocente. Porque só uma pessoa muito inocente inventa de levar um mendigo pra dentro de casa, né. Vi na hora que ele não era nenhum pervertido procurando um parceiro pras suas taradices ou coisa assim. Ficou um tempo calado, me olhando terminar o banquinho. Aí ele disse: ‘Você acredita em Deus, rapaz?’ Olha, falei pra ele, eu não confio em nada nem em ninguém: só em Deus. E o Bruno, depois de pensar um pouco: ‘Olha, tem um colchão sobrando no meu apartamento. Você pode dormir na sala. Quando terminar a mesa e as cadeiras, se quiser, pode ir embora.”
“Caramba.”
“Foi assim que conheci o poeta Bruno Tolentino, Yuri.” E percebi que Antônio, ao enxugar o suor do rosto, disfarçadamente secou uma lágrima. Ele finalmente compartilhava da emoção do poeta naquele dia — ou assim parecia. Ficou um breve minuto meio perdido com as ferramentas na mão, como se apenas fingisse trabalhar. “Depois que terminei a mesa e as cadeiras”, prosseguiu, com a emoção já sob controle, “ele me pediu pra fazer uma escrivaninha. E, claro, fui ficando. Um dia, ele chegou da revista com um bolo de dinheiro — uns dois mil reais, acho — colocou toda a grana na minha mão, disse que não se sentia bem, que precisava descansar, e me pediu pra depositar tudo na conta dele. Aí virou as costas e se trancou no quarto. Eu fiquei de cara: como aquele sujeito podia ser tão crédulo, tão inocente?! Por que ele confiava tanto em mim, Yuri? Ele tinha me encontrado na rua! Só porque eu disse que acreditava em Deus? E se fosse mentira? É claro que senti uma tentação enorme, fazia muito tempo que não botava a mão em tanto dinheiro. Era o salário dele inteiro! Acho que ele estava me testando, mas nunca falamos sobre isso. Só sei que fui no banco rapidinho e depositei tudo, antes que me desse vontade de sumir, comprar alguma droga ou de tentar ajudar algum amigo que vivia na rua. A partir desse dia, comecei a trabalhar como secretário dele. Cuidava de tudo: do salário, das contas, dos remédios pra AIDS, da agenda…”
“E ele voltou a dar aulas aqui no Brasil, né?”
“Voltou. E você precisava ver a cara de alguns alunos dele quando davam de cara comigo lá onde a gente morava.”
“Não iam com a sua cara?”
“Sei lá, eles ficavam super desconfiados de mim, né. Eu ainda me vestia com as roupas que usava na rua. Eles não entendiam quem era aquele mendigo preto que morava com o professor deles”, e riu.
“Bom, talvez rolasse uma inveja, né, Antônio. Muita gente, por exemplo, fica puta da vida quando descobre que estou morando com a Hilda Hilst.”
“Isso é verdade. Um cara que apareceu lá com o Bruno me perguntou uma vez: ‘Você é formado em Letras?’ E eu: não, sou formado na vida mesmo. Ele fez uma careta e passou a fingir que eu não estava mais lá. Conversou um tempão com o Bruno e, mesmo quando o Bruno pedia minha opinião sobre alguma coisa, o cara não me olhava enquanto eu respondia.”
“Você acha que era racismo?”
“Racismo nada, ele era negro também, mais preto do que eu!”, e sorriu. “Depois o Bruno me disse que esse fulano chegou a perguntar se ele não tava precisando de um secretário de verdade. E o Bruno: ‘Mais verdadeiro que o meu secretário? Impossível’.”
Ficamos em silêncio, pensativos, e Antônio retomou seu trabalho. O banco já estava quase pronto. Ele teria de emassá-lo, lixá-lo e envernizá-lo mais tarde. A cor da nova perna ainda destoava da madeira restante. Antônio procurava algo na caixa de ferramentas.
Bruno Tolentino… Naquela ocasião, eu ainda não o conhecia muito bem, mas chegaria a conhecê-lo melhor nos nove meses seguintes, tempo que ele moraria ali conosco: uma figura simplesmente extraordinária, com uma trajetória de vida de arrepiar os cabelos. Claro, sua “biografia oficial” pode ser lida na Wikipédia ou em qualquer site literário: oriundo duma família carioca influente, alfabetizado em português, inglês e francês, Bruno se mandou do país em 1964, após o Golpe Militar. Foi secretário de Ungaretti, conhecido poeta italiano, lançou livros de poesia em francês e inglês, foi professor de literatura em Essex, Oxford e Bristol. Acusado de tráfico de drogas, foi preso e passou pouco mais de um ano na tal, segundo o próprio Bruno, “Ilha do Diabo inglesa”. Provada sua inocência (no caso em questão), foi solto. Voltou ao Brasil, polemizou com os irmãos Campos, publicou sua obra maestra, “O Mundo como Idéia” (que ele concluiu no quarto ao lado do meu, na Casa do Sol) e faleceu em 2007, em decorrência de AIDS, adquirida na cadeia. Eis um resumo da sua “biografia oficial”. Mas aqueles meses de convívio comum fizeram com que Bruno me apresentasse mais detalhes da sua vida. Eu o conheci no dia 24 de Outubro de 1998, na Casa do Sol. Lembro-me bem porque ele apareceu justamente no dia em que eu recebia alguns amigos para comemorar meu aniversário. Na ocasião, Antônio não o acompanhava. Certamente havia permanecido no apartamento que compartilhavam em São Paulo, cuidando dos assuntos do Bruno ou fabricando móveis. Tal como Antônio, até então, eu tampouco sabia quem era Bruno Tolentino. Havia lido alguns de seus artigos na revista Bravo, mas não ligara o nome à pessoa. Bruno participou da minha reunião de aniversário por cortesia, depois se isolou por algum tempo com a Hilda no escritório dela. Foi o momento, conforme ela me contou mais tarde, em que ele solicitou sua ajuda, já que estava sem emprego, sem dinheiro e precisando entregar o apartamento. Havia também alguma encrenca pessoal envolvendo a dona da editora para a qual ele trabalhara, mas isso não vem ao caso. O fato é que ali acertaram sua vinda à Casa do Sol, onde, juntamente com seu secretário, permaneceria alguns meses. Depois da visita, ele partiu de carona com meu amigo Rodrigo Fiume, à época, jornalista do jornal O Estado de São Paulo e, hoje, da Folha. Isso, claro, após ter sido fotografado comigo e com Hilda Hilst — eu, no meu aniversário, entre dois dos maiores poetas deste país — foto que nunca vi, já que Dante, o fotógrafo, um cara totalmente avesso a essas frescuras de literatos, sumiu com o filme. Sim, um detalhe fútil…
Assim, no início de 1999, Bruno e Antônio chegaram de mala e cuia e geladeira, fogão, livros, roupas, mesas e um computador 386 contaminado com vírus Melissa. Ocuparam um quarto com janela que — para suplício do Bruno — dava para o canil e seus oitenta cães. E na rotina dos dias, no marasmo ou na agitação das horas, Bruno Tolentino foi desfiando suas histórias para mim e para Hilda. Claro, ele também viajava com freqüência, já que vinha organizando grupos de estudo independentes, em diversas cidades e estados, voltados a quem estivesse interessado em seus conhecimentos literários, tão assombrosos, vale lembrar, que a própria Hilda vivia me dizendo à parte: “Yuri, meu Deus! Esse homem devia ter aparecido aqui antes, quando eu ainda estava começando e me interessava mais profundamente por literatura. Nossa, ele sabe coisa demais, leu todo mundo — até os chatos! — e ensina o tempo todo… Credo! Que pena eu não ter mais nada a ver com isso…” E então ela sorria, cansada. Sim, outra condição enfrentada por ele: depois de lecionar em Oxford e de assombrar a própria Hilda com a extensão de seus estudos, Bruno não podia lecionar nas universidades brasileiras, já que não era formado em nada. Tal como o escritor argentino Jorge Luis Borges, que, após aceitar um convite de Darcy Ribeiro para lecionar na Universidade de Brasília, fora impedido por não ter um diploma, Bruno era um mestre com a boca tapada por razões puramente burocráticas. No Brasil é assim: mais vale um papel com selos e carimbos do que a evidência do mérito pessoal; mais vale um imbecil diplomado que um gênio autodidata.
Enquanto Antônio preparava os últimos retoques ao banco do pátio, fui ter com a Hilda, que certamente estaria ansiosa para saber o que eu havia descoberto sobre nosso hóspede. Pedi licença ao secretário-marceneiro, que apenas me dirigiu um sorriso tranqüilo de alívio, e entrei na casa. Na sala de jantar, antes de adentrar o escritório, retirei o CD que o compositor José Antônio de Almeida Prado havia trazido em sua última visita, e que havia acabado de tocar, e o troquei pelo Adagietto da Quinta Sinfonia de Mahler. Além de ser uma das músicas prediletas da Hilda, serviria para acalmá-la de antemão. Entrei. Ela estava com os óculos na ponta do nariz, o cigarro na mão direita, concentrada em sua milésima releitura da biografia de James Joyce. Quando me viu, abandonou o livro e sorriu: “E então?
Falou com ele?”
“Falei, Hilda.”
CAsadoSol
Casa do Sol. Foto de Carlos Bassan.
“Então pegue o Porto e sirva duas taças pra gente. Tá quase na hora do almoço. Você me conta enquanto a gente bebe.”
Fui até a sala contígua de onde trouxe a garrafa de vinho. Servi as duas pequenas taças e me sentei diante de sua mesa. O silêncio, o Sol brilhante, a casa rústica, as árvores lá fora… eu adorava aquele clima de convento laico.
“Eu amo essa música”, disse ela, dando o primeiro gole. “É a mesma daquele filme do Visconti, lembra?”
“Lembro. Morte em Veneza. Adaptação do Thomas Mann.”
“Esse mesmo”, e tornou a sorrir. Então apagou o cigarro e me encarou, curiosa. O Sol, entrado pela janela de trás de sua cadeira, dourava-lhe os cabelos. “Diga logo, quem é esse Antônio, Yuri? Devo ficar com medo dele?” E riu.
“Acho que não, Hilda. Ele me parece uma boa pessoa.”
“É mesmo? E quem é ele afinal? Onde o Bruno o encontrou?”
“Ah, Hilda, o Bruno o encontrou morando na rua. Ele é apenas um fugitivo da polícia…”, e sorri, encarando-a com ironia.
Ela arregalou os olhos, num misto de excitação e temor: “Meu Deus, Yuri! Meu Deus!! Que incrível!! Vá, coloque mais vinho pra você e me conte tudo… Conte tudo…”
Rimos. Tornei a encher minha taça. E lhe contei tudo.

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Este texto é parte do livro “O Exorcista na Casa do Sol — e Outros Escritos da Virada do Milênio”, a ser lançado em breve.