terça-feira, 15 de maio de 2012

Degustação Musical III: Os Mestres Cantores de Nuremberg – Prelúdio – Ato 1º, de Richard Wagner

(todos os textos apresentados sob o tópico Degustação Musical não passam de minha pessoal compreensão e explanação do que aprendi com o músico Sérgio Molina em suas aulas, acrescentando-se algumas reflexões, como resultado da impressão que me fica cada vez que deixo, elevado e tocado, a sala São Paulo).



Bem vindos amigos, bem vindos ao fantástico teatro musical de Richard Wagner! Todos nós já ouvimos falar de Wagner, mas na verdade poucos conhecemos sua obra. De minha parte, sabia ser ele o autor da Cavalgada das Valquírias, utilizada como trilha sonora no filme Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, quando helicópteros americanos chegam em rasante nos campos de guerra no Vietnã. Além disso, tinha a idéia absurdamente equivocada de que Wagner tinha algo a ver com o nazismo, porque era o compositor predileto de Adolf Hitler. Bobagem.
Então, chega de conversa mole e permitam que eu apresente algo deste grande músico: Richard Wagner.
Como poderíamos esperar, Wagner foi bastante influenciado por Beethoven. Nasceu em 1813, em Leipzig, e faleceu em 1883, em Veneza. Para alguns, Richard foi o último romântico, em alusão ao tipo de composição. No texto sobre o Concerto estudado de Beethoven dei uma imagem simplificada da distinção entre classicismo e romantismo. Pois bem, Wagner pode ser considerado um compositor de tipo romântico, porque sua música atinge diretamente nossas emoções de maneira abrupta, tem contrastes claros, é recorrentemente eufórica, eu diria. Seus contemporâneos são Verdi (nosso próximo maestro a ser saboreado), Liszt, Mendelssohn, Brahms e Mahler.
Wagner dedicou sua vida a escrever óperas. As históricas que conta são grandiosas, repletas de heróis, inspirando-se em novelas de cavalaria, em mitos germânicos e coisas do gênero. Suas principais obras são: Rienzi (1842), O Holandês Voador (1843), Tannhauser (1845), Lohengrin (1850), Tristão e Isolda (1859), Os Mestres Cantores de Nuremberg (1868), a tetralogia O Anel do Niebelungo, que agrega O Ouro do Rêno (1869), A Valquíria (1870), Siegfried (1876) e O Crepúsculo dos Deuses (1876), e por fim Parsifal (1882).
Este texto refere-se aos Mestres Cantores de Nuremberg, feito logo antes da famosa tetralogia. Mas, antes de adentrarmos na peça, deixem-me dizer algo mais.
A história de relacionar Wagner ao nazismo é uma grande besteira. De fato, Hitler teve entre seus admiradores Winifred Wagner, que não era descendente de Wagner, mas sim a viúva de seu filho caçula, Siegfried. Wagner viveu muito antes do nazismo. É verdade que o partido nazista utilizou Wagner como propaganda, para afirmar a superioridade da música alemã frente aos judeus, como Mendelssohn. Nesse contexto, alguns enxergam na obra de Wagner anti-semitismo, o que em minha visão é uma leitura ideológica exagerada.
Em primeiro lugar, é possível fazer outra exegese dos personagens ditos representantes do judaísmo. Segundo, quem ousaria acusar Shakespeare de anti-semitismo apenas porque utilizou uma figura judia como vilão na peça O mercador de Veneza? O preconceito é reforçado porque Wagner escreveu ensaios criticando a cultura judia, como parte do debate que tinha contra seus concorrentes, Mendelssohn, por exemplo.
Mas ocorre que Wagner ao longo de sua vida sempre contou com amigos judeus, e muitos de seus colaboradores eram judeus. Um erro muito comum hoje em dia é julgar um personagem antigo com os olhos de hoje. Qualquer pessoa que tenha feito críticas ao povo judeu é visto como contribuinte do nazismo. Bravata! De acordo com tal linha de pensamento, se no futuro algum facínora comandasse um assassinato em massa de argentinos, os torcedores da amarelinha seriam todos taxados de genocidas.
Eu não sou estudioso de Richard Wagner, nem pretendo ser seu biógrafo, mas acredito que a difamação contra sua pessoa é devida em boa parte à ignorância, ao preconceito, e à cegueira ideológica. Deixemos essa acusação ociosa, e reconheçamos o grande artista alemão, que nos deixou um legado de música, de histórias e de valores cantados nas mais finas notas e acordes.
Pois bem, nossa análise não será sobre a ópera inteira, mas apenas do prelúdio.
É procedimento comum entre os compositores trabalhar o prelúdio ao final. O método faz todo o sentido, porque após ter a obra praticamente completa, o artista faz um breve resumo da história que contará, uma síntese para acostumar os ouvidos, um anúncio do que há de vir, enfim, um prelúdio.
Nem sempre é assim. Outras vezes, o músico pode utilizar o prelúdio como peça autônoma, sem repetir ou, melhor dizendo, sem antecipar o conteúdo posterior. Segundo aprendi, em Lohengrin o prelúdio é algo assim, autônomo.
Mas aqui não. Imaginemos a cena. Munique, 1868: estamos chegando a um teatro em nossa carruagem, nossa dama perfeitamente vestida, falando sobre a vida social das outras madames, ambos ansiosos pela estréia da ópera, bem como por encontrar os conviventes do mundo da arte. Entramos no recinto, retiramos nossa casaca, nosso chapéu, talvez tomemos um drink ao bar, fumamos um charuto, e nos dirigimos para os nossos lugares, cumprimentando cordialmente nossos conhecidos ao longo do caminho.
As cortinas permanecem fechadas. Entra a orquestra, seguida pelo maestro Hans von Bülow, todos aplaudidos efusivamente. E assim começa a música, sem descerrar o véu que esconde ainda os atores. É o momento para nos acostumarmos com o novo ambiente, para pouco-a-pouco sermos transportados para aquele universo de fantasia.
Este prelúdio é assim. Vamos ouvir como que o resumo da ópera. Wagner compôs uma peça repleta de trilhas, com uma simultaneidade de assuntos, camadas sobrepostas, com diversas coisas acontecendo ao mesmo tempo. Por isso, como já aprendemos antes, é preciso que encontremos aquilo a que nos agarrar, um ponto para nos fixarmos, e de onde então seremos capazes de olhar para o restante: o tema.
Ouçamos pela primeira vez. Pode-se seguir o texto com a música tocando (eu aviso quando é necessário repetir ou ouvir uma parte específica).
A abertura é forte, em tutti orquestral (todos os músicos tocam), apresentando o tema A. As cordas tocam Do maior, seguido de três vezes a nota Sol. Trata-se de uma quarta descendente: Do (tempo) – Sol (tempo) – Sol (meio tempo) – Sol. O caráter é predominantemente rítmico. Reparem nos ataques dos tímpanos (uma espécie de tambor).
Ouçam até 0:36, duas vezes seguidas e depois deixem seguir livremente.
Nós embarcamos na melodia facilmente. Não demora nada para sermos levados para o mundo da música. Note-se que aqui temos um motivo musical bem sucinto, que será explorado depois. Ou seja, temos como que uma célula musical sintética, que pode explorada de várias formas.
Do mesmo que na 5ª sinfonia de Beethoven (pam, pam, pam, paaam), temos também poucas notas em conjunto, mas de caráter acentuadamente rítmico, como já assinalamos. Ou seja, aqui a célula musical criada se insinua mais pelo ritmo.
Isto é feito mediante uma técnica: o uso dos intervalos de quarta. Quero dizer que a distância entre uma nota e outra, isto é, o intervalo – como se fala em música – é de quatro, de quatro notas, obviamente. A música está sendo composta como de células com o mesmo tamanho, que se iniciam em um ponto x e que terminam no ponto x+4.
Assim: uma das vozes (um dos grupos de instrumentos) toca notas descendentes de Do até Sol (Do-Re-Mi-Fa-Sol: entre Do e Sol temos um intervalo de quatro notas). Isto é feito com diversos grupos de notas, sempre com intervalos de quarta.
Como já sabem, não vou me aventurar em dar muitos pitacos técnicos, já que estaria abusando do direito de falar sobre o que não sei. Então, vamos para uma abordagem mais artística, onde o direito de errar é maior, já que não é importante assegurarmos nossa visão como a única ou a melhor, bastando que seja possível e que nos ajude a apreciar melhor a beleza do espetáculo.
Esta peça musical tem uma lógica interna tão bem acabada que se sustenta sozinha. É dizer, o prelúdio podia muito bem ser o movimento de uma sinfonia. Tanto é assim que a Osesp tocou apenas trechos da peça, acompanhando o prelúdio, prescindindo de encenar a ópera inteira.
Neste caso, sendo o prelúdio um típico resumo da ópera, vale a pena sintetizarmos a peça.
Os Mestres Cantores contam a história de Walter, o herói que se apaixona por Eva, a princesa querida por todos. O rei organiza um concurso de canto, e quem o vencer se casará com a princesa Eva.
Vamos ouvir mais uma vez o começo do prelúdio.
Para mim a entrada é simplesmente perfeita, trazendo o clima certo para o início de uma história romântica. Podemos imaginar um vassalo do rei lendo em praça pública o anúncio do concurso, a princesa olhando pela janela da torre, o herói sentindo crescer a força necessária para o desafio.
Mas para concorrer, é preciso ser aceito na confraria dos Mestres Cantores. Walter faz sua apresentação, mas é rejeitado! Dizem que ele é demasiado original...
O herói se lamenta com a derrota tão precoce. Porém, um senhor percebe seu valor e ajudará Walter a entrar no concurso.
O concorrente de Walter é Beckmester, que acaba por espionar o herói, para roubar-lhe a composição. Eu não assisti à ópera inteira, então, meu relato pode estar cheio de imprecisões. Mas como aqui o importante é a arte, e não a fidedignidade, não vou conter minha imaginação.
Pensei em Walter nos bosques próximos, fazendo sua canção (aos 4:05 do vídeo). A canção aqui é justamente nosso tema B (para gravarmos bem este tema, ouçamos pelo menos mais duas vezes o trecho entre 4:05 e 4:20, depois, deixem seguir).
Temos a tensão pela presença do bisbilhoteiro, que deseja roubar a música: vejam aos 5:10. A peça, entretanto, tem graça, e ouvimos vários sons cômicos em seguida, contrastando tensão e comédia.
Nestes momentos de comédia, penso em Beckmester, espertalhão, que cria o maquiavélico plano de roubar a melodia alheia, porém é desastrado, e acaba se dando mal. Ele canta a canção, mas sem densidade, sem verdadeira paixão, sem habilidade (ouçam aos 5:22, é o tema B, mas sem brilho, meio brincalhão).
Aos 6:34, temos uma queda brusca, denotando muita tensão, o clímax. As trompas tocam o tema A. Neste trecho, penso na dúvida se o herói realmente conseguirá competir e ganhar a mão de sua amada.
Desembocamos em seguida na canção de Walter, o tema B, mas agora lindamente apresentado, de forma completa, harmonizando a orquestra inteira (início aos 6:52).
Aos 7:41 se iniciam alguns ataques do tema A. Estes ataques acontecem diversas vezes – 7:46, 7:49 etc. –, seguindo esta mesma forma até 8:01, quando os tímpanos voltam a ressoar, trazendo a marcha inicial da peça.
Aos 8:24 já percebemos que o final do prelúdio está próximo (e o começo da ópera, para os que estão no teatro, se avizinha).
Nosso herói é o vencedor. Ganha o concurso, se casa com a princesa, e o resto vocês já sabem...
Aos 9:18, o tema A é repetido de forma mais solene, um clima mais régio, de coroação. E, finalmente, aos 9:23, o ritmo é reduzido, e aos poucos a orquestra termina.
O mundo de Wagner é assim: nos deixa intensamente comovidos, desejando que este prelúdio realmente faça as cortinas abrirem, e que possamos apreciar todos os detalhes desta ópera do mestre dos mestres.

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