O que um dia foi um casal entrou
pela porta da sala de audiências. Ele, o autor de uma ação de conversão de
separação judicial em divórcio, acompanhado de seu advogado. Ela, sozinha nesta
primeira tentativa de conciliação. Os dois aparentando estar perto dos setenta
anos. Documentos conferidos, na tela do computador o termo de acordo quase
pronto. Todos os bens já divididos, todos os filhos já maiores, mais de um ano desde a separação. Requisitos presentes,
caso fácil, acordo certo. Só homologar e “jogar” para a estatística. Havia,
porém, qualquer coisa no ar. Talvez algum resquício de remorso ou as lembranças
inevitáveis de uma vida passada juntos. O arrependimento insinuando-se entre
culpas, o rancor entre as feridas. Quando, então, coube-me perguntar: “há
possibilidade de reconciliação?”. Artificial e legalista. Mais de trinta anos...
Sob olhares quase mudos, conclui em voz alta dirigindo-me ao escrevente:
“reconciliação infrutífera”. A lei estava cumprida. A pior parte resolvida. Rumo
ao acordo. Acordo? Impossível. A senhora se negava a assinar, não queria o
divórcio. Instante inesperado. Expliquei-lhe a norma, o protocolo, o processo. Ante
a presença dos requisitos, a lei é a lei. Quando percebi que tremia, tremia
muito ao falar e mover os braços. Estava nervosa e sofria. Estranhei que, até
aquele momento, ignorava completamente este fato. Realmente eu ainda não os
havia notado. Pela primeira vez li os nomes na capa do processo. E os vi, os
dois, o casal e a sua tragédia. Li nos seus rostos a crise, as brigas, a dor da
separação, o desespero dos filhos. Pela primeira vez desde o início da
audiência, que parecia tão certa, tão óbvia. Qualquer coisa foi dita sobre
traição, outra mulher. A senhora tremia, insistindo que não queria o acordo.
Pouco importava a demora, pouco importava o fizesse o juiz depois de alguns
meses. “Eu não assinarei”. Perguntei-lhe, então, o por quê? Ela levou as mãos
trêmulas à bolsa e retirou uma Bíblia. Levantando-a em punho disse com firmeza:
“Por isso!”. O advogado da parte contrária disfarçou um riso sádico (talvez
mais tarde, na roda dos amigos...). O escrevente percebeu e também riu,
demonstrando certa impaciência ante a atitude tão descabida. O marido tinha os
olhos atentos e calados. Por um instante me surpreendi com a sua coragem. A
sensação de estar diante de um milagre ou, pelo menos, de uma manifestação do
Espírito. Agradeci. Mas, em seguida, uma grande angústia atropelou a surpresa.
A obrigação de ofício me levou a explicar a divisão das competências, a
diferenciar o civil do religioso. Em minha mente, pensava na laicidade do
Estado e na constituição laica clamando a proteção de Deus. Pensava na doutrina
social da Igreja, no reinado social de Cristo. Lembrava os crucifixos retirados
das repartições públicas. Ela sorriu para mim, com a Bíblia nas mãos (como um
mártir?). O livro todo num único versículo: “dai a César...”. Então, calei-me e
ela suspeitou que lhe dava razão. Compreendeu a explicação, mas insistiu em não
assinar. O juiz que o fizesse. Ela não, não podia. “O senhor compreende, eu não
posso, mesmo assim, não posso, minha consciência”. Guardou o livro sagrado novamente
na bolsa e teve a sua vontade atendida. O acordo infrutífero, a audiência
encerrada. Colhemos as assinaturas em silêncio e a ata foi afixada aos autos. Estávamos
livres do rito. No entanto, o diploma, o bacharelado parecia pesar-me sobre as
costas. Minha assinatura no papel, as minhas roupas, a faculdade, os livros
jurídicos, o prédio do Fórum. Sentia-me culpado, como um cúmplice. Por fim,
despedi-me das partes, interrompendo a divagação. Era necessário me recompor e prosseguir
com o restante das audiências do dia.
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