sábado, 29 de maio de 2010

Café com Bruno Tolentino

Para que serve a poesia?

Acho que ela não serve para nada. Esse negócio de tudo servir para alguma coisa acaba por instrumentalizá-lo. A palavra é uma provocação, uma oportunidade que a pessoa tem, que o espírito tem para se manter a um nível sempre mais elevado e procurar uma expressão mais justa para aquilo que não lhe ocorreria normalmente. Para que serve a filosofia? Para nada, também. Neste sentido, a poesia não serve para grande coisa. Você é que vai fazer a serventia das coisas. È a relação que você estabelece com aquele meio especial de expressão que você vai estabelecer se aquilo tem ou não uma serventia. Então a poesia serve para elevar o seu nível, como de resto também a filosofia e todas estas coisas que não são de massa, não são comunicação de massa, não tem um sentido de mobilização da linguagem comunicativa, de jornal, por ex. Isto serve para alguma coisa, porque se o sujeito não souber o que está acontecendo hoje, enfim, alguma coisa estará lhe faltando. Mas a poesia não entra ai nessa categoria. Ela já pertence à vida reflexiva. À vida contemplativa do espírito. Se você não tiver isto, você está se diminuindo muito, alguma coisa no ser humano diminuiu demais. E estou dizendo poesia especificamente, e não a arte em geral. Porque a poesia é um modo de uso da linguagem particularmente exigente, muito exigente. Ou seja, exigente com a linguagem. O Fernando Pessoa definia a poesia como a música que se faz com as idéias. Não é uma música qualquer, é das idéias, o sujeito tem de estar pensando. Não é uma série de suspiros, enfim. Você tem que pensar, mas com isso tem que fazer uma música, tem que tornar aquilo mais perceptível. Aquilo que antes não era muito perceptível, nem para você. Você formula aquilo no máximo de tensão de linguagem possível. O máximo de tensão de linguagem sem perder a relação com a linguagem comum, porque se você se afastar demais ai você já entrou em órbita, não está mais fazendo poesia, já está fazendo uma espécie de alquimia, sabe-se lá o que. Entrou muito na moda esta bobagem. Mas Goethe dizia que a cortesia do gênio é a clareza. Se você é um gênio, a primeira obrigação é não fazer os outros se sentirem débeis mentais. Você tem que se comunicar de tal maneira, ser tão claro, tão preciso naquilo que vai dizer. Você não está dispensado disso porque você é muito inteligente. Muito pelo contrário, se é que você é muito inteligente. Porque se você é mesmo tão inteligente assim, a primeira intuição que você vai ter é essa de não fazer papel de palhaço na frente dos outros. Esse sujeito está falando do que? Há mil maneiras de arrogante você cair no ridículo total com a impressão de que você está (abafando...). É muito comum isto e intelectual adora esse negócio. Então essa chamadinha do Goethe é uma coisa muito importante, porque se você esquece isso... Por outro lado, também, o Ezra Pound no princípio do século, há uns cem anos atrás, quando ele e Eliot estavam fazendo uma espécie de rearrumação meio incômoda na poesia de língua inglesa, que era muito enfeitada na época. Era muito cheia de penduricalhos, como aqueles lustres de cristal... Havia certo lazer de que se abusava e esse lazer fazia com que se enfeitasse cada vez mais aquilo que não precisava ser enfeitado coisa nenhuma. Então perguntaram ao Pound o que eles queriam fazer com aquela revolução e ele disse: A idéia é conseguirmos escrever poesia pelo menos tão bem quanto prosa. Aquilo pareceu assim uma provocação, mas tinha toda razão. Porque o que você pede a um texto de prosa é inteligibilidade, a não ser que seja um texto de filosofia francesa contemporânea, porque se tiver inteligibilidade será expulso do grêmio. Mas você quer antes de mais nada entender aquilo. Se você tiver que dar cambalhotas para entender aquilo, inclusive quando acaba um parágrafo e começa o outro, do que é que o sujeito está falando, e de qual é o assunto, não vale a pena. A idéia seria trazer a poesia a este mesmo nível. E eles conseguiram de resto, tirar todas aquelas anquinhas, aqueles negócios todos, aqueles saltos altos, aquelas perucas empoeiradas que faziam a beleza feminina daquela época. Quando você acabava de desmontar aquela boneca saia de lá e dizia: mas não valeu a pena o trabalho, porque a maioria das coisas não vale a pena mesmo. Então o texto é a mesma coisa. Por isso que eu li que o texto tem que ser que nem a mulher nua. Tem que impressionar pelo menos tanto quanto, com a mesma imediatez, não pode ter nada que não seja pertinente ali. Então não serve para nada. Serve para simplificar a vida e ao mesmo tempo que a eleva e eleva o espírito etc. Qualquer outra explicação é uma presunção. Contentemo-nos com isso que já não é pouco.

Conseguiríamos viver sem a poesia?

Não, eu acho que não. Ninguém consegue viver sem beleza. Nós temos necessidade de uma corda, alguma coisa de ordem estética que precisa ser respondida. Você não pode deixar aquilo enferrujar. Nós não conseguiríamos viver sem poesia, até porque a linguagem iria ficar cada vez mais ou enfeitada como aqueles lustres etc, ou então iria ficar cada vez mais banal, até que deixasse de ter qualquer função que não fosse imediata. Que não fosse: “Isto é um copo d’água”. A metáfora, a dimensão simbólica da vida é alguma coisa a que o ser humano tenderá sempre, tenderá sempre a se exprimir naqueles termos. A tentativa de reduzir tudo a um montante conceitual, a uma coisa óbvia e evidente etc vai sempre fracassar porque ficará sempre sobrando uma margem que ficará inatendida. Você ficará insatisfeito com aquela margem, alguma coisa em você de muito profundo. E a medida que isso se acumula você vai secar, vai ficar cada vez mais seco. A dimensão da aventura, da fantasia, da vida humana, todo muito sabe que é indispensável. Ai o sujeito vai dizer: mas hoje está sobrando. Não está sobrando não. A caricatura disso está sobrando, mas a realidade disso não. A poesia que nós queremos é esta assim, que tenha esta imediatez, esta precisão. Ela tratará necessariamente de coisas mais sérias, digamos de assuntos mais graves. Esta música que se faz com as idéias... Mas sem cair na abstração, ela não pode se tornar puramente abstrata, porque senão ninguém se interessa, não tem mais a ver comigo.

Existe alguma relação entre felicidade, tristeza e fazer poesia? Entre a inteligência e a mediocridade, até que ponto as pessoas que não buscam uma intelectualidade são mais felizes do que as outras que são mais inquietas?

Isso me faz recordar umas das frases mais justas e mais cruéis que eu já ouvi na vida: “A felicidade neste mundo e, sobretudo neste país, é nascer burro, crescer ignorante e morrer de repente”. Sim, existe sim. Primeiro, antes de mais nada, como dizia o Millôr Fernandes: “o ser humano é inviável, meu bem”. Não é a sul do equador que ele é inviável, não. Aqui se nota mais depressa. E é claro que isso dá uma certa tristeza. Ou então um estado de beatificação meio bestificada. Você tocou numa chaga bastante particular. Porque eu resolvi que esse negócio de poeta ter que ser infeliz, só faltava agora, eu um garotão vou ser infeliz só para ser poeta... Eu disse, não! Então eu vou ser poeta, mas não vou ser infeliz. Pois é. Nunca consegui não ser poeta, bom ou ruim, essa era a única cosia que eu sabia fazer. O resto eu era pior ainda, então era melhor insistir nisso. Agora, quanto a não ser infeliz... Olha, eu fiz das tripas coração e não adiantou nada.
(Trechos da entrevista concedida para o programa Sempre um Papo, gravado em 2006 e disponível no site http://www.sempreumpapo.com.br/audiovideo/player.php?id=68)

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