quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Whiplash: o gênio e a redenção


Se Whiplash é uma obra de arte? Se pode ser considerado um grande filme? Se deveria ter ganhado o Oscar? Se pretende defender que os fins justificam os meios? Se o filme faz apologia do bullying? Essas perguntas não me interessam. O que sei é que o filme foi para mim hipnotizante e conseguiu, na minha visão, compor a história de modo maravilhoso, sem perder o ritmo, sem cair em estereótipos ou forçar uma estética que tome o lugar da narrativa.

Como hoje o direito de falar bobagem foi consagrado para todos pela internet, é possível encontrar tantas opiniões sem ligação com a película que resolvi escrever uma coisa ou outra, para partilhar um pouquinho de minhas experiências e reflexões, a um só tempo dando vazão ao que guardei para mim e opondo-me aos chavões do homem-massa contemporâneo.

É bastante evidente, creio eu, que o filme é a respeito da superação humana. Mas não se trata de um elogio ao trabalho duro, numa espécie de exaltação do que alguns dizem ser a ideologia americana. De maneira distinta, se trata da história da superação do homem para que deixe de ser medíocre e venha a ser sublime. Em apertada síntese: é a história do nascimento de um gênio.

Ora, que os gênios nasçam com a criança, posso até concordar, desde que estejamos falando da potência para a genialidade, que certamente existe em poucos. Mas quem poderá sustentar que o gênio do homem sobrevém sozinho, independente de qualquer esforço consciente, de uma persistência tenaz, de uma determinação constante? Por acaso Mozart seria Mozart se o pai não o instruísse e guiasse desde a tenra idade? Aristoteles seria Aristoteles se não tivesse bebido na fonte de Platão e se esforçado por ser aluno e depois professor na academia antes de se tornar o mestre do liceu? Enfim, é uma ilusão, uma fantasia, uma ideia irrefletida acreditar que o gênio nasce assim, gênio por inteiro, sem tirar nem por, tão logo tenha saído de sua mãe. Não, para mim, o gênio nasce podendo ser gênio, e vem a sê-lo integralmente só depois, em seu segundo nascimento.

Justamente, Whiplash fala do nascimento de um gênio. Sim, é verdade que estamos falando de um gênio muito menor do que aqueles arquétipos citados no parágrafo anterior, um gênio contemporâneo, da vida atual, um gênio de uma parcela menor da música, do jazz, mas ainda assim, um gênio. Como a história termina com o mero nascimento, nem ao menos sabemos ao certo o que viria a partir de então, se a genialidade de Andrew seguirá e quais realizações ele logrará. Porém, isto também não importa. O filme não quer nos falar das grandes obras que o gênio fará, quer apenas que sejamos testemunhas de seu surgimento.

Neste caso, o nascimento é bastante interessante porque se dá em circunstâncias específicas. Não é a pobreza, não são os inimigos, não é um problema amoroso ou uma condição pessoal difícil, nenhum destes é o tema do enredo. O conflito existe com alguém em particular: Terence Fletcher, o professor do conservatório.

A personalidade de Fletcher é fascinante. Em primeiro plano, temos sua qualidade inquestionável. Em momento algum é possível vislumbrar de quem quer que seja a menor dúvida sobre a capacidade do maestro. Ele é o melhor professor, ponto final. Fletcher, contudo, é sádico e impetuoso. Humilha, ameaça e chega a agredir seus alunos se estes contrastam com a perfeição exigida. Ele pouco explica. Faz uma demanda e espera ser atendido. Se for frustrado, atacará seu aluno com toda força. Por outro lado, Fletcher também pode ser cativante, quando se expressa de modo dúbio, pois não sabemos ao certo se consiste em ironia ou em alguma humanidade que remanesce naquele inegável amor que ele tem à música. Ah, sim, não duvidem que Fletcher ama. Ele ama a música e este é um dos motivos para odiar o erro, que maculam seu campo sagrado. Como lidar com este mestre, com sua inegável competência, seu ar misterioso atraente, suas ironias e sua ira temível?

Andrew nos é apresentado com certa inocência. É o garoto que deseja ser músico, mas que apenas está sendo introduzido no mundo musical. Aos poucos, outros caracteres de Andrew vão sendo revelados. Seu orgulho crescente, que o faz desprezar seus pares e restar isolado, e que no início caminha ao lado de sua insegurança. Depois, sua fraqueza inicial, quando sai demolido após o primeiro ataque do mestre, seguida de uma súbita obstinação quase masoquista, em treinamentos ininterruptos e uma vida reclusa.

O encontro com a garota Nicole é o ponto fraco do filme. Não teria certeza para dizer que é desnecessário na história, mas nos momentos em que figura o relacionamento entre eles o filme perde bastante de sua intensidade e chega até mesmo a perder o fio de ansiedade que talvez fosse a costura da narrativa. De qualquer modo, ali temos a lembrança de que Andrew é também um garoto qualquer, com seus problemas e interesses corriqueiros, e vislumbramos seu ego inflamado, que de modo equivocado pretende se afirmar imperturbável pelas trivialidades do que é comum, no momento preciso em que anuncia tacitamente precisar do banal. Todos podem perceber que Andrew está apaixonado pela garota e precisa de seu amor e carinho, todavia, ele faz um discurso pleiteando afastamento, sob a escusa de que seu projeto de vida acabará por machucar a pobre Nicole, que é comum, e então por verdadeira caridade interrompe o namoro precocemente. Na minha impressão, Andrew está agindo não por caridade e determinação, mas por medo e imaturidade. Ele não quer que Nicole perceba suas fraquezas e a incapacidade que ele tem de lidar com Fletcher e arruma uma desculpa para preservar sua imagem, sendo insensível aos sentimentos da garota cujo amor cultivara.

Olavo de Carvalho já escreveu que o ideal é a um só tempo fonte de força e de estrutura. O ideal nos motiva a seguir um caminho e também traça o percurso que devemos seguir. Andrew tem para si o ideal dos grandes músicos, estampados nos pôsteres de sua casa. Entretanto, ao longo do filme não sabemos se Andrew é o gênio a ser revelado ou se não passa de um jovem com exaltação imaginativa, que pensa ter agora as qualidades que apenas almeja. Afinal, Andrew será um grande músico realmente ou é somente um garoto orgulhoso que se vê muito maior do que verdadeiramente é?

Esta dúvida é acompanhada por outra, a respeito de Fletcher: o professor de fato está buscando a grande música e por isto flagela seus alunos ou é apenas cruel e aproveita as deficiências dos pupilos para desaguar seu ódio e quem sabe um rancor advindo de suas próprias frustrações?

O diretor acerta em cheio aqui. Quando estamos praticamente desistindo do mistério, para confortavelmente nos fiarmos no sadismo de Fletcher, eis que sobrevém a notícia da morte de um ex-aluno e a demonstração de uma ternura muito bonita do mestre, ao exaltar seu pupilo agora falecido. Então, quem sabe, Fletcher não é tão mau assim...

A fúria do maestro, porém, retorna com toda força de imediato. O grupo vai participar de uma competição em cidade próxima e na viagem o destino interpõe a Andrew agruras inesperadas. O ônibus quebra e o deixa atrasado. Ele insiste. Corre. Chega ao local ofegante e valente. Quer seu lugar. Fletcher o desafia uma vez mais. E ele, uma vez mais, aceita o desafio. Quando está para retomar as rédeas, sofre um acidente absolutamente não previsto por quem assiste. Nossa, o garoto se machucou... Mas ele volta e sai correndo, meio cambaleante e meio insano. Ensanguentado, ele pega suas baquetas e se senta na bateria. Não há tempo para Fletcher reorganizar sua banda e a música começa ou pelo menos deveria começar. Assistimos Andrew tentar e não conseguir, sua derrota inevitável se anuncia e vai chegando aos poucos, olhamos atônitos sua persistência, que se antes era admirável, agora nos parece incompreensível. Louco, Andrew parece louco. A atuação do grupo cessa e Fletcher, após polidamente se desculpar com a plateia, numa educação reservada apenas ao público, silenciosamente dá a Andrew o recado de sua ruína. Enfurecido e pela primeira vez contra-atacando, Andrew investe contra Fletcher e daí sabemos que tudo acabou e que o futuro de Andrew não mais existe.

A historia do gênio que poderia ter sido parece terminar. Voltamos à mediocridade contemporânea. As acusações jurídicas de aluno contra professor, tão banais, quase mesquinhas, entram em cena, e Andrew consente em servir de testemunha da brutalidade de Fletcher após ser informado de que o aluno que havia morrido sofria de depressão, possivelmente ocasionada pelas humilhações que lhe infligira o professor. Que Andrew não se preocupasse, pois seria testemunha anônima.

De futura estrela ao anonimato. Adeus aos pôsteres, às aulas em conservatório, à bateria, que é guardada no armário. Andrew deixa os sonhos de grandeza e se contenta com a vida que todos levam. Serve em uma lanchonete e vê um pedinte tocando uma bateria improvisada na rua, por alguns trocados. Num repente, um cartaz informa que no bar de jazz havia naquela noite um convidado especial: Terrence Fletcher.

Andrew ingressa para ouvir seu antigo professor ao piano, tocando muito bem, nos levando novamente a cogitar se Fletcher não fora incompreendido, tão bela e delicada sua performance. O olhar do mestre quase perde Andrew por pouco, mas o relance é suficiente para que o reconheça e, ao se dirigir à saída, Andrew é chamado por Fletcher e ambos se sentam para tomar um drink e conversar.

Segue-se um diálogo ameno e interessante. Fletcher finalmente confessa seu método e seu objetivo, pois de fato queria encontrar um grande músico nos tempos atuais e somente colocando à prova seus alunos, para que se superassem, poderia ter alguma chance de descobrir um novo gênio. Fletcher não sabe que Andrew foi o responsável por sua demissão e este aproveita para perguntar se não era possível que alguém promissor desistisse diante de tamanha pressão. Negativo, responde o mestre, um verdadeiro gênio jamais desistiria. Neste ponto, se concordamos com a filosofia de Fletcher, temos que concluir que, afinal de contas, Andrew não era o gênio que pensara inicialmente.

Quando vão se despedir, Fletcher comenta que vai se apresentar como regente de um conjunto em um festival de jazz e que precisam de um baterista. Andrew aceita o convite insinuado e fica empolgado com a ideia de voltar à música.

No dia do evento, os artistas estão reunidos nos bastidores e Fletcher dá um aviso: todas as pessoas importantes do meio do jazz estão ali, gravadoras, agentes, enfim, todos aqueles que detêm algum poder no meio musical. Quem fizer uma boa exibição poderá obter um bom contrato, boas ligações, fazer seu nome, em contrapartida, quem cometer um erro poderá abandonar a carreira de músico, pois aquelas pessoas não se esquecem.

Andrew se ajeita na bateria, está ansioso, mas sorridente (vejam a cena final aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Tkh5I9w4ySY). Tocarão as obras que Andrew treinara no conservatório com Fletcher. Todos já posicionados no palco, Fletcher se aproxima de Andrew e lhe diz baixinho: “você pensa que sou idiota? Sei que foi você”. Fletcher vai ao microfone e anuncia que vão começar com uma composição nova. A câmera dá um zoom em Andrew, revelando seu desespero, e volta a Fletcher, que lhe lança um olhar maldoso. Os demais têm suas partituras, menos Andrew, que jamais ouvira aquela música.

A banda começa a tocar e Andrew não faz ideia do que fazer, tenta improvisar alguma coisa, mas destoa terrivelmente do grupo. Os outros passam a olhar atônitos para ele, e um até mesmo o interpela: o que você está fazendo? Andrew acaba com a apresentação. Após deixar o fracasso de Andrew se arrastar por um tempo para assegurar sua completa humilhação, Fletcher interrompe o grupo e se desculpa com a plateia. As luzes iluminam Andrew, e todos agora sabem quem foi o baterista lastimável. Fletcher se aproxima dele e diz que talvez ele realmente não tenha o que é preciso.

Andrew encara a plateia alquebrado, engole em seco e se retira. Corre para a saída, onde seu pai o aguarda para consolá-lo. Pelo visto, Fletcher era muito pior do que pensávamos, era um verdadeiro demônio que preparou a tortura final a Andrew como vingança. Andrew abraça seu pai de olhos fechados, entretanto, de súbito retorna ao palco. Senta à bateria novamente. Fletcher o olha e, quando ia proclamar a próxima balada, quem sabe uma nova peça contra Andrew, este começa a tocar sozinho. Andrew se vira para o instrumentista ao lado e diz que dará a deixa para que este ingresse na melodia, e a banda então se vê obrigada a tocar caravan. Fletcher, a contragosto, tem que reger o conjunto. Ele tenta ameaçar Andrew, mas este rebate tocando o prato da bateria, quase um contragolpe. Andrew não vai desistir agora, está decido a lutar até o fim, e vai mostrar todas suas armas. Não tem mais medo. Aceita sua condição de hostilizado. Ele acredita em si. Ele sabe que é bom o bastante. O desempenho do grupo e de Andrew é magnífico.

Durante o espetáculo, vemos Fletcher se render aos talentos de Andrew, ele sorri e orquestra o diálogo entre a banda e a bateria. Fletcher faz seu gesto típico, punho cerrado da mão direita, para indicar o fim da música, mas Andrew não pára de tocar... Fletcher olha consternado. Andrew segue numa exibição solo. Fletcher vai até ele, mas agora é diferente. O mestre não vem para ameaçá-lo, para acusá-lo, para puni-lo. Ele simplesmente não compreende, está surpreendido e pergunta: “Andrew, o que você está fazendo, cara?”. Andrew responde que dará a deixa para ele e segue tocando. Fletcher assente com a cabeça. Este ponto é importantíssimo. É a primeira vez que Fletcher é desobedecido (pois Andrew não parou de tocar com o restante), mas não reage negativamente, e se dobra à vontade de Andrew, reconhecendo que a situação, portanto, é outra.

Por um momento, o som que Andrew toca desaparece e ouvimos um barulho de vento ou de mar, como se Andrew estivesse entrando em outra esfera, fora do tempo, fora daquele lugar, algo está acontecendo, algo grandioso, quase místico.

A câmera corta para o pai de Andrew, que assiste a tudo por uma abertura na porta dos bastidores. Sua expressão vai de incompreensão a atônita e depois a deslumbramento, como se estivesse vendo seu filho se tornar algo diferente, que inicialmente não entende, depois o assusta e finalmente o encanta.

Fletcher volta à bateria com Andrew, para ajudá-lo. Ajeita um dos pratos. Assente com a cabeça, confirmando e incentivando. Sim, Andrew, muito bem, eu sei o que você está fazendo. Ele orienta Andrew, que segue a direção indicada pelo mestre, diminui o ritmo lentamente, depois o eleva, indicando o clímax. Fletcher faz um gesto vibrante com as mãos, indicando a força do baterista, e também algo de admiração; vai apontando a Andrew as variações, como que tocando junto com ele, ambos em sintonia, o tempo todo Fletcher assentindo com a cabeça. A cena abre para mostrar um dos instrumentistas, ao lado de Andrew, estupefato com a performance do surpreendente rapaz. Fletcher volta ao centro para reger a orquestra e até mesmo se despe do casaco para ficar com os braços livres, tamanha a excitação e a eletricidade daquele instante. Ele prepara o conjunto para o gran finale. Os olhares de Andrew e Fletcher se encontram. Andrew olha para o mestre a aguarda uma reação. Fletcher está com o olhar maravilhado e sorri para Andrew, que sorri de volta ante a aprovação. Fletcher dá o sinal para o final, em tutti orquestral, e com sua mão esquerda aponta para Andrew, mostrando a todos seu aluno, sua descoberta, que agora nasceu.

A busca deu frutos. A tensão foi resolvida. Os contrários se dissolveram. É como se o gênio de Andrew redimisse a brutalidade de Fletcher. É o sublime como redenção do violento. Parece-me que de alguma forma Fletcher ansiava desesperadamente por este instante de epifania. Toda sua sordidez, sua grosseria enraizada, seus pecados, enfim, poderiam ser diluídos acaso lhe sobreviesse um gênio, um pupilo exitoso, irrompendo a mediocridade e galgando as alturas do que, na sua perfeição, torna irrelevantes as deformidades periféricas. No fim, é Andrew que assume o papel de salvar Fletcher. Se olharmos para o início da história, tudo isto fica claro, mas somente porque Andrew teve a força, a coragem e a graça de rebentar as amarras do medo para encontrar o que é ilustre. Se Andrew tivesse desistido, Fletcher teria mais uma vítima na sua conta. Mas não. Andrew suportou o sofrimento que Fletcher lhe impôs e, por assim fazer, conseguiu despertar naquele uma natureza que estava recôndita muito profundamente. A entrega de Andrew é irresistível para Fletcher, que não apenas se curva ao brilhantismo do aluno, mas recebe deste o perdão de que carecia, e pode então retribuir o ato, formando um encontro que completa o quadro e coroa a harmonia fugidia, agora presente, e que permite aos então combatentes repousar e contemplar juntos, em triunfo e com amizade.